Todas as pessoas da cidade no caderno de Jason

Jason Polan está parado numa esquina enquanto a cidade se move como um organismo vivo. É isso que o atrai nas cidades. Gente atarefada, entrando nos escritórios, saindo das estações de metro, subindo elevadores, chegando a casa, despachando sandes e sopas ao almoço, buzinando no semáforo e correndo para ultrapassar o tempo.

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Vistos da sua esquina, são pessoas andando de lá para cá, cruzando-se entre elas e continuando o seu percurso cronometrado com objetivos, compromissos, resultados e metas. Não divergem assim tanto das artérias dos organismos a transportarem nutrientes, oxigénio, vitaminas e tudo o que for necessário para a máquina continuar a pulsar.

As cidades nunca estão paradas, tudo se desfaz no instante a seguir para dar lugar a um outro instante. Jason Polan era um colecionador desses instantes que as cidades tão depressa produzem como destroem. Ele sabia quão rápido tinha de ser para agarrá-los em traços acelerados e despachados.

Todos os dias, ele desceu às ruas de Nova Iorque para desenhar estas pessoas que fazem girar a máquina. Apanhou-as a dormir nos transportes públicos, a mendigar na rua, a ler o jornal na esplanada, a comerem bolachas enquanto escrevinham, a darem de comer aos pombos, a contemplarem a arte nos museus, a falarem ao telemóvel, a rirem com os amigos, a esperarem pelo comboio, a transportarem pinheiros de Natal ou no banco do jardim sem tema de conversa.

Jason guardou milhares de instantes urbanos no bloco de notas. E outros tantos milhares planeava guardar não tivesse sido travado aos 37 anos por um cancro do cólon que o afastou para sempre das cidades no dia 27 de janeiro deste ano. O objetivo dele era desenhar todas as pessoas de Nova Iorque – imaginem todas as pessoas de uma megacidade com 8,6 milhões de habitantes. Todas as pessoas teriam o seu instante cristalizado numa folha A5 que ele foi mostrando regularmente no seu blogue Every Person in New York.

Em 2015, já tinha qualquer coisa como 30 mil pessoas no livro lançado com o mesmo título do blogue. E continuou a desenhar nos anos seguintes, publicando pela última vez no dia 16 de dezembro de 2019. Até esse dia, esteve todos os dias a desenhar pelas ruas de Nova Iorque. Em muitos desses instantes, os nova iorquinos não deram pela presença dele, mas houve qualquer coisa neles que chamou a atenção dele.

Noutros casos, os encontros foram previamente acordados. Quem conhecia o seu trabalho podia pedir para ser desenhado. Bastava enviar-lhe um email e marcar com antecedência o dia, a hora, o local e descrevendo também a roupa que levaria. Podia ser no intervalo do almoço ou ao fim de um dia de trabalho. Ele estaria lá, como combinado, mas manter-se-ia à distância.

Fazia o possível para não ser notado, embora ao longo destes anos, muitas câmaras fotográficas e de vídeo o tenham captado concentrado nos seus desenhos. E procurava também não interferir com a rotina do nova iorquino. Dois minutos, no máximo, era o que precisava antes de ambos prosseguirem os seus caminhos e desaparecerem no anonimato da cidade.

O resultado daquele encontro acabaria, dias mais tarde, publicado no seu blogue. E o resultado era aquele instante capaz de concentrar as histórias de cada habitante da cidade.

Essas mesmas histórias levadas para trás e para a frente sem mais ninguém se aperceber do peso (ou da leveza), do significado (ou da banalidade) e das emoções (ou do alheamento) que representam para cada um.

Os dedos irrequietos a teclar no telemóvel, o olhar ausente a atravessar a estrada, o cansaço a dormitar no comboio, a cabeça apoiada no braço, a mão estendida ou descaída, o passo apressado ou arrastado, as rugas, o sobrolho, os ténis rasgados, a transpiração ou cigarro na ponta dos dedos.

Jason Polan cristalizou as histórias de cada nova iorquino. Transformou instantes efémeros em traços eternos. E ficou, por fim, cristalizado na memória da cidade.

All Day Pass with Jason Polan (Noah Kalina)
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Nota final: Jason Polan é um bicho-carpinteiro do site quebichotemordeu. Estava na lista para ser escrito e publicado em breve. Mas, ao sermos surpreendidos com a notícia da sua morte, migrou para o blogue Cantinho dos Papás. Não é porque as crianças devam ser privadas da história dele. Pelo contrário. O seu percurso está carregado de humor e de momentos de generosidade que ofereceu a quem se cruzou com ele. É sobretudo porque a morte é um tema complicado. Se o é para os adultos…

E não é também porque a morte é um assunto tabu para as crianças. É somente porque são os pais e os educadores que devem escolher o momento e a forma de o fazer. O texto sobre Jason leva-nos a fazer perguntas para as quais nem sempre temos respostas. Pelo menos, respostas prontas na ponta da língua. Embora, digam os especialistas, não faça mal nenhum admitir às crianças que há certas perguntas para as quais não sabemos ou não temos a certeza das respostas.

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Créditos

Foto de abertura: frame do vídeo de Wilson Cameron

Desenhos: Jason Polan

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