Praticar o bem para ativar o circuito neurológico da bondade

Fazer o bem sem olhar a quem não é uma beatice impingida pelas religiões. É um facto científico, que molda a atitude perante a vida e traz benefícios no rendimento escolar, no bem-estar emocional e na saúde, em geral. Para quem estuda os circuitos neurológicos das emoções, a bondade é o fundamento para um cérebro saudável. E Rousseau afinal tinha razão ao defender a teoria do bom selvagem. Os investigadores da neurociência afetiva confirmam agora que a bondade é inata. Mas é tão frágil que precisa de treino diário para não desaparecer.

 

Sim, é verdade. A bondade tem um circuito neurológico próprio e, quando ativado, faz ir à luta, cria conexões entre as pessoas, devolve a tranquilidade e conduz a uma vida mais preenchida. Os cientistas estão convencidos até de que estimular a ternura e a gentileza em crianças e adolescentes melhora os resultados académicos e promove o bem-estar emocional deles. Se formos bondosos para os outros, não é só o reino dos céus, o paraíso ou o nirvana que se abrem para os crentes. A bondade é recompensada aqui e agora e é o grande pilar para manter um cérebro de boa saúde. 

Estamos perante uma emoção que é tudo menos abstrata.  A bondade tem uma forma concreta e um lugar específico no nosso cérebro. Há quem diga que está alojada no topo da espinha dorsal. Chamam-lhe nervo vago, um feixe neural que o psiquiatra Stephen W. Porges, da Universidade de Illinois, em Chicago, também designa de «nervo da compaixão». Além de estimular vários órgãos como o coração, o pulmão, o fígado ou aparelho digestivo, é também responsável por desenvolver sentimentos de compaixão, gratidão ou amor. Nancy Eisenberg, psicóloga da Universidade Estadual do Arizona, concluiu ainda que crianças com atividade alta do nervo vago são mais propensas a ajudar os outros.

Mais recentemente, em 2016, cientistas da Universidade de Oxford, no Reino Unido, dizem ter descoberto  uma região do cérebro com ligação direta ao tipo de ação que leva a tomar decisões solidárias. Está localizado no chamado córtex cingulado e é uma zona com graus de ativação a variar de pessoa para pessoa.

 E, um ano antes dessa investigação, a psicóloga Sarina Saturn, da Universidade de State Oregon, nos Estados Unidos, mediu a atividade cerebral e o ritmo cardíaco de estudantes universitários enquanto assistiam imagens de atos heroicos. Os resultados foram picos de atividade nos sistemas nervosos simpático e parassimpático. Ou seja, dois sistemas em simultâneo desencadeiam uma única emoção, concertando uma reação de luta e uma outra de acalmia, que surge mais tarde.

O elo da sobrevivência

A bondade define-nos como humanos e faz parte da nossa natureza desde o primeiro dia. É isso que dizem os especialistas, entre os quais o psicólogo Dacher Keltner, no seu livro «Born to be good: the science of a meaningful life». A obra do diretor do Laboratório de Interações Sociais da Universidade da Califórnia reúne vários trabalhos que demonstram como a bondade é inata, sendo vital para a evolução e sobrevivência da humanidade. Compaixão, gratidão e respeito pelos outros são capacidades que têm origem no cérebro e são desenvolvidas pela prática social, permitindo a convivência em grupo.

A noção dessas normas, aliás, já está bem presente em crianças de 3 anos, como demonstrou um outro estudo, conduzido por investigadores alemães. A conclusão surgiu após um teste em que elas foram testemunhas do roubo de um brinquedo que pertencia a outra criança. O que se seguiu foi um chorrilho de protestos infantis em solidariedade para com o companheiro. Apesar de o brinquedo não lhes pertencer, todas elas condenaram o ato e decidiram reclamar. 

 Um circuito para sentir e outro para agir

A bondade é algo que todos somos capazes de reconhecer, mas é um sentimento complexo, mistura emoções como empatia ou compaixão. O cérebro, todavia, distingue cada uma delas, avisa Richard Davidson, professor de psicologia e psiquiatria na Universidade de Winsconsin- Madison (EUA). A empatia, esclarece o investigador americano, é a capacidade de sentir o que os outros sentem e a compaixão é o que nos leva a agir para aliviar o sofrimento dos outros. Cada um destes estádios tem o seu circuito neurológico e envolve outros sentimentos.

E a bondade pode até ter mecanismos cerebrais próprios e manifestar-se nos primeiros anos de vida, mas é tão vulnerável que se não for exercitada desparece sem disso darmos conta. Uma das razões é que ela surgiu como uma resposta para facilitar a convivência entre grupos pequenos, explica Michael Tomasello, especialista em Antropologia Evolutiva. 

Acontece, porém, que as sociedades evoluíram e agora a convivência é feita entre milhares de estranhos. A bondade não acompanhou essa evolução, estando mais atrofiada em grandes centros urbanos do que, por exemplo, nas aldeias, onde as redes de entreajuda são ainda fortes. 

Uma das grandes causas está na forma como tendemos a interpretar a natureza humana, atribuindo facilmente características negativas que foram sendo reforçadas pela cultura e, mais recentemente, pela força dos meios de comunicação social, que nos trazem à luz do dia o lado negro das guerras, da violência, da injustiça ou da corrupção. Tudo isso molda a nossa perceção, fazendo-nos perder a fé na humanidade.

A mudança das boas experiências

Essa perceção sobre os outros é em muito determinada pelas vivências pessoais. E o cérebro é particularmente sensível às experiências negativas. O livro do neuropsicólogo Rick Hanson e do professor de meditação Richard Mendius explica isso muito bem. «O cérebro de Buda» enfatiza essa nossa tendência para registar e armazenar as más experiências para tomarmos consciência de que é urgente fazer justamente o oposto se quisermos contrariar esse defeito de fabrico. Mas é preciso empenho para interiorizar as experiências positivas. De cada vez que absorvemos um acontecimento positivo, construímos também uma nova estrutura neuronal. 

O segredo está em dedicar mais tempo a assimilar boas experiências. Quanto mais tempo essas vivências estiveram retidas no cérebro, maior é a peugada deixada na nossa memória. É o mesmo que construir uma reserva de boas lembranças que nos vão valer nas horas difíceis. É mais fácil lidar com vivências dolorosas quando nos lembramos como no passado fomos capazes de lutar e ultrapassar situações complicadas.

A realidade, afinal, não passa de uma criação individual que ganha consciência através das nossas experiências e pensamentos. Muito do que vemos é criado pelo cérebro. É uma realidade virtual. E o mundo é feito de muitas realidades virtuais. Cada um pode optar por qual circuito quer seguir. Ou valorizar o que há de bom ou ficar contaminado pelas más experiências, julgando que o mundo se esgota nessas experiências individuais.

De atos heroicos a pequenos gestos

Seguir o caminho da bondade é o melhor exercício para tonificar o cérebro, diz Richard Davidson, alertando que esse é um treino que se faz todos os dias e é recomendável em qualquer idade. Não se trata apenas de atos heroicos ou manifestações de extrema generosidade, mas também de pequenos gestos que preenchem e dão sentido ao nosso quotidiano. A cortesia entre os automobilistas no trânsito, dar passagem aos idosos, ajudar quem está desorientado, cumprimentar, sorrir e ser gentil para estranhos são as ferramentas para cultivar esses bons sentimentos.

Uma das formas de praticar a gentileza e a bondade é desejar o bem a pessoas que se cruzam na nossa vida, inclusive aos desconhecidos. Ao fazermos isso, diz o investigador americano, estamos a “aumentar o nível de boa energia circundante”, mudando não só a nossa experiência como a dos outros que são afetados pela nossa gentileza. 

Desta forma, alargamos todos os dias a rede da bondade, que a pouco e pouco entra nas escolas, nos escritórios, nos transportes públicos, nas finanças e, por fim, atravessa fronteiras, continuando o seu circuito, enquanto houver quem sorria e seja gentil com os outros.

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