Substituam o medo das crianças da escuridão pelo medo dos adultos em dar um salto no escuro. Deixar um emprego que nos consome sem saber o que virá a seguir. Cair de amores por alguém sem recear a deceção. Tirar as máscaras sociais sem temer o julgamento alheio. Largar uma relação desgastada sem medo de dormir num quarto vazio. Não é o escuro que mete medo. É o inesperado que assusta grandes ou pequenos, corajosos ou medricas.
Se há sentimento infantil que os adultos serão capazes de entender é o medo do escuro. Quem não o sentiu (ou ainda sente)? A escuridão para uma criança é um poço sem fundo. Quanto mais ela tenta alcançar o seu fim, mais fundo ele fica. E, quanto mais fundo ele é, maior a incerteza sobre o que esconde. Criaturas viscosas, rastejantes, desdentadas, gretadas e tudo o que uma imaginação solitária é capaz de construir enquanto as silenciosas horas noturnas não passam.
De onde vêm esses seres arrepiantes? De muitos lados, dizem os especialistas. O primeiro de todos é o desconhecido, esse lugar que deixa toda a gente vulnerável, grandes ou pequenos, corajosos ou medricas. Não é a escuridão que assusta. É o que ele encobre. Esse medo, afinal, não é somente um temor infantil. É qualquer coisa que nos acompanha desde os primórdios da existência humana. É o que se revelou como uma vantagem evolutiva quando era vital estar alerta em locais rodeados de predadores.
Hoje, não precisamos mais de temer a escuridão. Mas o medo ficou, escondido na nossa psique e manifestando-se quando o desconhecido se cruza connosco. Os medos da escuridão na infância vêm da insegurança que o inesperado provoca. As crianças acreditam em tudo. Que do escuro surjam malfeitores e os arrastem para longe dos pais. Que alguém venha roubar os brinquedos. Ou que um gigante de olhos reluzentes salte do armário. A escuridão tem formas e tamanhos ilimitados para assombrar o cérebro das crianças.
Um salto no escuro
Tudo tão somente porque elas não são capazes de ver e de antecipar. Tal como nós. Substituam o medo que as crianças têm do escuro pelo medo dos adultos em dar um salto no escuro. Deixar um emprego que nos consome por dentro, sem saber o que virá a seguir. Perdermo-nos de amores por alguém sem recear a deceção. Tirar as máscaras sociais sem temer o julgamento alheio. Largar uma relação desgastada sem medo de dormir num quarto vazio.
Essa é a raiz do medo que – sim, é verdade – começa de pequenino e sempre que é preciso experimentar algo de novo. Também nós, certo? Só que, no caso das crianças, quase todos os dias, quase tudo é novidade. A primeira vez que enfrentam as ondas da praia, que escalam um penhasco, que viajam de avião, que entram na creche, que vão ao dentista, que montam uma bicicleta – o medo tem muitas oportunidades para crescer, sobretudo à noite.
O pavor do escuro atinge as crianças por volta dos 2-3 anos, quando elas já têm idade para imaginar, mas ainda não distinguem a fantasia da realidade. Sem essa fronteira traçada e sem distrações para entreter a mente, os miúdos têm, no silêncio da noite, as condições propícias para descerem ao submundo dos horrores. Uma sombra no canto do quarto, um estalido de um móvel de madeira, um galho que se quebra lá fora, tudo isso e muito mais se transforma rapidamente num monstro de sete cabeças.
O combustível do medo
A televisão, advertem os especialistas, fornece a maior parte da matéria-prima que as crianças usam para engordar o medo. A televisão é um viveiro de imagens e sons que se tornaram banais para os adultos, mas podem servir para aterrorizar os mais novos. Nem mesmo os programas infantis são inocentes. Uma criança de 3 ou 4 anos pode estar a ver desenhos animados inapropriados para a idade dela com o irmão mais velho. O televisor pode estar casualmente ligado e passar uma notícia violenta. É o que basta, mas os livros inadequados, tal como a internet ou os vídeos sem vigilância parental, também provocam danos ao passarem imagens intimidantes que mais logo vão fertilizar a imaginação e ressuscitar medos que não fazem sentido para os adultos.
O suspiro de alívio, no final deste texto de horrores, é saber que, com a idade, o medo do escuro passa. Ou melhor, o medo torna-se em algo que as crianças aprendem a gerir. Pelo menos é o que se espera. Ou será que ainda sente um calafrio quando atravessa o corredor às escuras para ir à casa de banho?
[animate type=”flash”][/animate]Ajudando uma criança com medo do escuro
Peça-lhe para falar sobre os medos e o que especificamente a assusta.
Mostre que entende os medos dela, mas deixe claro que não têm razão para existir.
Faça-a sentir que está segura.
Não tente tranquilizá-la verificando se há criaturas estranhas no armário ou debaixo da cama para ela não julgar que as suas fantasias são reais.
Se o medo do escuro é por causa de invasores que deambulam lá fora, mostre como a casa é segura. A porta de entrada está trancada, as janelas bem fechadas. A casa é um lugar seguro de noite e de dia.
Peça sugestões sobre o que fazer para a criança se sentir mais segura. Dê igualmente sugestões. Um brinquedo, um peluche ou um edredão em particular podem ser um bom companheiro.
Procure perceber se o medo do escuro vem de outras preocupações. Algumas crianças, por exemplo, podem ter medo de que os pais se separem ou morram. Essa ansiedade piora quando estão sozinhas no escuro. Tenha uma conversa honesta, mas otimista, sobre essas questões.
Crie uma rotina para dormir de forma que a criança se sinta confortável na hora de deitar. Ler uma história tranquila ou divertida ao som de uma música igualmente tranquila e em volume baixo, por exemplo. As rotinas, sendo por definição previsíveis, ajudam a combater a ansiedade.
Coloque uma luz noturna no quarto dela ou deixe uma lâmpada (de baixo consumo) no corredor acesa. Coloque um candeeiro ao lado da cama para que ela possa acender a luz e sentir que tem algum controlo sobre a situação.
Certifique-se de que os programas de televisão, os sites e as leituras são adequados à idade dela.
Verifique se há qualquer coisa no quarto que possa originar medos. Um brinquedo ou uma foto que projetam sombras assustadoras, por exemplo.
Não recorra a avisos ameaçadores para corrigir o comportamento dela: “Se não te portares bem, o senhor polícia vem aí e…”
Ilustração do monstro a preto e branco: © Julia P – CC BY-SA 2.0