Coco não gosta de modas só porque sim. Há alguma razão para só os homens vestirem calças? Ou para o preto ser uma cor tão séria? Coco baralhou as etiquetas sociais e entrou para a história da moda feminina. Mas ela tem um lado sombrio. Nunca gostou dos judeus só porque sim. Ensinaram-na na infância que eles são os culpados de todos os males. E ela, que na moda recusou sempre preceitos sem sentido, não conseguiu contrariar a regra mais disparatada de todas.
Coco é baixinha, nunca será a atração principal do Grand Café. Canta só uma canção nos intervalos para entreter o público, enquanto as grandes estrelas se preparam para brilhar no palco. Ainda assim, dá nas vistas. Pelo menos para Étienne Balsan. O ex-oficial e magnata da indústria têxtil acha tanta graça quando ela começa a cantarolar «Qui a vu Coco dans l’Trocadéro?» que todas as noites está na primeira fila.
Ela já reparou que ele reparou nela. E vai-lhe deitando uns olhinhos doces para derreter ainda mais o seu coração.
Quem sabe se não está ali o homem que a vai tirar finalmente desta vida tripla? De dia, Coco trabalha na Casa Grampayre, subindo bainhas e aplicando rendas nos enxovais das raparigas. De noite, é cantora de cabaré e, aos fins-de-semana, desenha e costura peças de vestuário para meia dúzia de clientes da cidade de Moulins.
Não há tempos mortos, há sim trabalho, muito trabalho. Só assim poderá vir a ser uma mulher moderna e independente. Já basta a má sorte na infância. Os pais mataram-se a trabalhar, a mãe como lavadeira e o pai como vendedor ambulante nas feiras e nos mercados de Saumur, onde ela nasceu em 1883. Mal havia comida na mesa para os cinco filhos. Quando a mãe morreu de tuberculose, foi pior ainda.
Coco tinha 12 anos quando o pai a entregou, juntamente com as duas irmãs, ao cuidado das freiras do convento de Aubazine, em Corrèze. Foi ali que aprendeu a costurar e foi ali que viveu até completar 18 anos e se mudar para a cidade de Moulins para fugir aos tristes dias da infância. Ela quer tanto cortar com o passado que até arranja um outro nome.
Coco Chanel, essa mulher que se tornaria famosa anos mais tarde, foi batizada de Gabrielle Bonheur Chanel.
Assim que chega a Moulins, inspira-se na canção «Qui a vu Coco dans l’Trocadéro?» para encontrar uma nova identidade. Como se pudesse alterar instantaneamente a má fortuna. Bom… Não foi imediato, mas foi quase.
Do alto do castelo para o centro do mundo
Coco muda-se com Arthur para a capital francesa, à procura do seu lugar na moda feminina.
Com Étienne, Coco larga o cabaré, a loja de enxovais, a costura aos fins-de-semana e vai direto para o castelo de Royallieu. Conhece um mundo de festas e de glamour da alta burguesia, mas nem por isso se deixa deslumbrar. Vaguear pelos salões e corredores, dando ordens aos empregados, não é propriamente o sonho dela. O que ela quer é ocupar o seu lugar na moda feminina.
E Paris é o centro do mundo. Por isso, quando conhece Arthur Capel, outro industrial que fez fortuna com o transporte de carvão, não hesita. Deixa Étienne para trás e vai viver com o novo companheiro para a capital francesa. Com o dinheiro dele, inaugura a sua primeira loja, Chanel Modes, uma chapelaria no n.º 31 da Rue Cambon.
Começa com chapéus comprados nas Galerias Lafayette e modificados por ela, uns toques elegantes, menos flores, sem plumas e outros penduricalhos. A princípio, as mulheres parisienses estranham, mas depressa deixam-se encantar pelo estilo de Coco. O negócio cresce a bom ritmo. Em quatro anos, abre duas boutiques, uma em Deauville e outra em Paris.
Além dos chapéus, as roupas começam também a atrair as atenções. Quem é aquela mulher que desenha e costura sem se importar com as boas maneiras? O estilo atrevido intriga a sociedade parisiense e ela provoca mais ainda com outras perguntas.
Porque não podem as mulheres vestir calças, camisolas de marinheiros ou roupas desportivas? Porque vivem sufocadas em folhos e saiotes, se podem vestir peças simples, práticas e elegantes?
E porque não? – Respondem as parisienses, cada vez mais fascinadas com ousadia dela. Em 1916, Coco já comanda um exército de 300 funcionários e inaugura mais uma loja em Biarritz. Cinco nos mais tarde, fixa-se definitivamente no n.º 31 da Rue Cambon, onde a Maison Chanel tem até hoje as portas abertas.
A fama para lá do Atlântico
Greta Garbo, Grace Kelly ou Marlene Dietrich só gostam de ser vestidas por Coco, famosa tanto na Europa como nos EUA.
A década de 1930 são os anos de ouro. Coco dá emprego a mais de 4 mil funcionários e vende quase 30 mil peças por ano, tornando-se conhecida tanto na Europa como nos Estados Unidos.
Toda gente quer ser vista com ela, sobretudo os famosos como o pintor espanhol Pablo Picasso, o realizador de cinema italiano Luchino Visconti, ou a atriz sueca Greta Garbo. As roupas desenhadas por ela vestem grandes estrelas como Grace Kelly, Marlene Dietrich, Marilyn Monroe, Ingrid Bergman ou a primeira-dama americana Jacqueline Kennedy.
São tantas as peças de vestuário e acessórios que se tornaram ícones da marca Chanel que é difícil enumerar todas. E tantas as revoluções que ela provocou na moda, que é também tarefa complicada descrever o impacto de cada uma até aos dias de hoje (ver glossário em baixo).
Só que, entretanto, chega a II Guerra Mundial e interrompe a carreira dela. Tal como paralisa tudo o resto, quando a França é ocupada pela Alemanha, em maio de 1940. Fechar as maisons de couture é a única saída, mas perder as mordomias é que não. Nem que, para isso, passe para o lado do inimigo.
Coco muda-se para uma suite do Hotel Ritz e alia-se aos vencedores. O alto espião do serviço secreto alemão, o barão Hans Günter Dincklage, com quem tem um longo romance, é quem a apresenta aos nazis. Pouco tempo depois, é recrutada como agente n.º F-7124.
O passado sombrio de Coco
Com o fim da guerra, ninguém ousa investigar as ligações de Coco aos nazis, mas as suspeitas levam-na a deixar o país.
Coco não é uma espiã, mas uma agente de informação. Isto é, alguém influente que os alemães usam para obter vantagens dos seus contactos entre figuras da política e da alta burguesia. E ela também usa a sua influência para libertar o sobrinho, André Palasse, do campo de prisioneiros alemão.
Coco negará até ao fim a sua ligação ao regime nazi e, apesar das suspeitas, o governo francês nada investiga. Logo após a derrota e a retirada dos alemães em Paris, em agosto de 1944, o general Charles de Gaulle inicia uma perseguição aos «traidores da pátria».
Chanel chega a ser interrogada, mas sai em liberdade, ao contrário de outras mulheres, arrastadas para fora de casa ou obrigadas a rapar o cabelo. Ainda assim, já não se sente em casa quando percorre as ruas parisienses.
Há sempre alguém a olhar para ela de lado.
Não demora muito a mudar-se para Lausanne, na Suíça, onde o barão Dincklage vai mais tarde ao seu reencontro. Ali fica 10 anos até a poeira assentar e voltar a Paris em 1954, retomando os negócios na moda.
Coco continua a trabalhar quase até ao último dia. Morre em 1971, aos 88 anos e após doença repentina. É encontrada deitada na cama do quarto no Ritz, bem vestida, penteada e maquilhada. É a imagem que fica.
Só há meia dúzia de anos, surgiram as primeiras investigações ao seu passado, como a biografia Hal Vaugan, «Sleeping with the Enemy: Coco Chanel”s Secret War» (Dormindo com o inimigo: a guerra secreta de Coco Chanel). O jornalista americano mostrou que, afinal, as grandes figuras não são perfeitinhas. E Coco tinha muitos defeitos. O pior de todos foi julgar os judeus como os culpados de todos os males.
Ela nem sequer sabia porque nunca gostou deles. Era ainda criança quando essa ideia começou a crescer dentro dela. No orfanato, as religiosas ensinaram-lhe que os judeus são «assassinos de Cristo», repetindo um disparate tão antigo, que se perdeu no tempo. Assim começam, muitas vezes, os ressentimentos.
São sementinhas plantadas muito cedo nas cabecinhas das crianças, ganhando raízes pela vida fora. Acabando quase sempre em rancores contra crenças, raças ou modos de vida diferentes.
10 ícones de Coco Chanel
Chemisier
Coco Chanel prova que é possível dar um toque feminino às camisas, até então usadas só por eles. Transforma-as em túnicas com um cinto fininho a contornar a cintura.
Little black dress
É um simples vestido preto com corte direito até ao joelho, mas torna-se popular em 1926, quando a Vogue americana realça que qualquer mulher com bom gosto, pobre ou rica, deveria usar. E mais popular se torna quando a atriz britânica Audrey Hepburn o veste no filme «Bonequinha de Luxo».
Camélia
Flor asiática serve de inspiração para Coco Chanel fazer os broches que completam os tailleurs. A peça torna-se marca da Chanel.
Cardigan
Casaco feminino de malha, com mangas compridas, sem gola e abotoado à frente.
Jersey
Tecido de malha fino e delicado que, até Coco usar nos vestidos, era destinado à confeção de saiotes, combinações e outras roupas íntimas.
Tailleur
O casaco e a saia são adaptados às mais diversas ocasiões, tanto para o dia-a-dia como para eventos pomposos, sendo hoje um símbolo das mulheres executivas. Os quatro bolsos do casaco com botões dourados são uma imagem de marca do tailleur de Chanel.
Tweed
Quem se lembraria de usar um tecido de lã tão tosco e sem graça? Coco não pensa assim e transforma os casacos, de tecelagem normalmente em ponto sarja, num clássico da moda feminina. Além de elegantes, são resistentes, quentinhos e impermeáveis à humidade.
Pérolas
As pérolas, falsas ou verdadeiras, fizeram megassucesso nos anos 1920. Coco gostava de usá-las ao pescoço, em voltas simétricas ou desiguais e como se de uma peça de roupa se tratasse. Nunca precisou de motivo ou dias especiais para exibi-las.
Mala 2.55
É a primeira mala a tiracolo do mundo. As correntes metálicas, inspiradas nas carteiras dos soldados, libertaram as mãos e os braços. É acolchoada, imitando os casacos dos jockers, e tem sete bolsos de vários tamanhos: um, escondido na pala, serve para as cartas de amor, outro, chamado de “O sorriso de Mona Lisa” por ter as pontas ligeiramente arrebitadas, destina-se aos trocos. Há mais um a merecer especial atenção: um bolsinho com o tamanho ideal para guardar o batom. O nome tem origem na data do seu lançamento oficial: fevereiro (02) de 1955 (55).
Chanel Nº 5
Foi o perfume mais vendido da Maison Chanel, lançado em 1921, e o primeiro a usar o nome de uma estilista. Criado pelo perfumista Ernest Beaux, tem a baunilha como matéria-prima e juntou pela primeira vez o aldeído, um composto de substâncias químicas que faz sobressair o aroma dos ingredientes naturais existentes na fórmula. O frasco em estilo art deco não é menos importante. E, por fim, o nome tem três explicações: foi o quinto aroma a ser produzido pela marca, é o número da sorte de Coco e foi apresentado no dia 5 de maio.
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Fontes consultadas:
El Pais | Fashion Bubbles | Détours en France | Veja | Wikipedia | Glossário de Moda | Blue Cashemere | essenzaboutique.com | modacout | I-D |
Fotos
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