1524 é a data oficial do nascimento de Luís Vaz de Camões, mas alguns estudiosos acreditam poder ter sido no ano seguinte. Muito pouco se sabe sobre a sua vida. Não é possível dizer com rigor quando e em que cidade nasceu, qual o ano em que morreu, se estudou em Coimbra ou tão-pouco se frequentou a corte. Nem sequer afirmar que as ossadas, no Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa, são mesmo dele. Resumindo: não sabemos nada, quase nada, sobre o maior poeta português.

Há uma boa razão para tanto desconhecimento sobre a vida de Camões. Não existem documentos, exceto um ou outro papel que resistiu, comprovando ter passado por algumas cidades portuguesas, por África e pelo Oriente. Das poucas certezas que restam, é que viveu os últimos dias sozinho e sem um tostão no bolso.

Camões morreu anónimo. Só muito mais tarde, o livro «Os Lusíadas» ganhou estatuto de obra nacional e alcançou fama mundial. À medida que os estudiosos se debruçaram sobre essa grande epopeia, perceberam que, além da aventura de Vasco da Gama pelo caminho marítimo da Índia, estão lá todas as inquietações deste povo.

Quem somos? Que missão nos cabe na História? O que esperar do futuro?

O poeta enchia o peito de orgulho pelo país, mas também levantava a voz e o sobrolho para apontar os defeitos. Foi um típico português. Apaixonado, irrequieto e com enorme coragem para partir à aventura e recomeçar do zero em paragens longínquas e desconhecidas.  E ainda boémio e gastador, com uma grande propensão para se meter em brigas e confusões.

Camões nunca pretendeu exaltar somente os grandes feitos dos portugueses. Quis também mostrar os erros para que pudéssemos aprender com eles e avançar. Por tudo isso, é o nosso poeta e não podia ser de mais ninguém.

Neste começo de 2024, ano em que se comemora o quinto centenário do nascimento de Camões, o Bicho-que-Morde recolheu os bocadinhos das histórias que já se escreveram sobre o poeta. Muito do que se conta são suposições ou aconteceram em datas imprecisas. Mas é o que temos. O importante é que a sua obra e memória são imortais.

Comecemos, então, está singela homenagem pelo:

Poeta aventureiro

Em 1549 (?) Camões terá partido para Ceuta, no Norte de África, em busca de melhor sorte. Juntou-se ao exército do rei D. Sebastião na luta contra os mouros, regressando a Portugal em 1551 (?).  Numa dessas batalhas, perdeu a vista direita. Por isso o vemos, muitas vezes, representado com um tapa-olho, como se fosse um pirata à procura do seu tesouro.

Em 1553 (?) deixa Lisboa e parte para o Oriente, passando por China, Goa e Macau, onde vive numa gruta e onde se diz que escreveu uma boa parte de «Os Lusíadas». Um busto e uma placa junto dessa caverna assinalam ainda hoje a passagem do poeta por terras macaenses.

De volta a Portugal, é subitamente apanhado num naufrágio, na foz do rio Mekong, no Sudeste da Ásia. Tripulação e passageiros são atirados borda fora. Camões consegue nadar até à margem e salvar «Os Lusíadas», mas perde a sua amada Dinamene, que viajara com ele desde a China.

Poeta arruaceiro

Em 1552, é preso durante um ano. Dessa época, sobreviveu um dos raros documentos que permite contar a história como deve ser: a carta de perdão de D. João III, de 7 de março de 1553. Nela se diz que Luiz Vaz de Camões, filho de Simão Vaz, cavaleiro fidalgo, está detido na Cadeia do Tronco, em Lisboa, por ter ferido, em dia de procissão do Corpo de Deus, Gonçalo Borges, encarregado dos «arreios do Rei».

O episódio está longe de ser o único. Dos seus tempos de estudante de Coimbra, chega o relato de que, num sarau literário, os seus versos enfureceram um tal de Juan Ramon, sobrinho de um professor universitário que, logo ali, o desafiou para um duelo. O ofendido acabou ferido e o poeta na cadeia sob fortes protestos dos estudantes.

Julga-se que também esteve preso em Goa, entre 1556 e 1561, mas os motivos não são claros. Uma das razões apontadas são as dívidas contraídas. Mas também se coloca a hipótese de se ter envolvido numa grande embrulhada à propósito de uma sátira anónima a criticar a corrupção e imoralidade dos reinantes. A autoria do texto acabaria por lhe ser atribuída, razão pela qual as Ordenações Manuelinas decretam a sua prisão.

Em 1562 (?) Camões é mais uma vez preso por dívidas acumuladas. Não por muito tempo. Conta-se que escreveu uma ode ao novo vice-rei da Índia, suplicando pela libertação. D. Francisco Coutinho terá apreciado tanto o seu talento que não só concede a liberdade, como o faz seu protegido.

Poeta pinga-amor

Não faltam sonetos de amor dedicados às mulheres que arrebataram o coração do poeta. D. Maria, a irmã do rei D. João III, D. Violante, casada com D. Francisco de Noronha ou Catarina, uma das principais musas de Camões, cuja identidade é ainda um mistério. A principal suspeita é Catarina de Ataíde, dama da rainha, mas pode ter sido também a neta de Vasco da Gama ou a mulher de um nobre de Aveiro, descendente de uma rica e conhecida família – os Sousa.

Não se esqueçam de Dinamene, a mulher chinesa por quem o poeta se apaixonou durante uma das suas viagens ao Extremo Oriente. Após morrer no naufrágio, Camões dedicou-lhe dois sonetos – «Ah! Minha Dinamene, assim deixaste» e «Quando de minhas mágoas a comprida».

Poeta mendigo

Regressado do Oriente, em 1570, Camões nunca mais consegue rendimentos regulares. Vive os anos seguintes em casa de amigos. Diogo Couto, por exemplo, paga-lhe muitas vezes as despesas e as viagens.

O poeta até tem uma pensão real de 15 mil reis anuais, atribuída pela publicação de «Os Lusíadas», em 1572. A renda chegaria para viver, mas o que se conta é que D. Sebastião não era muito certo com as datas de pagamento. A situação financeira agrava-se quando o rei morre na batalha de Alcácer Quibir, em 1578.

Filipe II de Espanha usurpa o trono e acaba de vez com a regalia. Até morrer, vítima da peste, Camões terá sido sustentado pelo escravo Jau – que viera com ele da Índia – mendigando por bocados de pão e moedas partilhados depois com o seu amo.

📝Dados biográficos

  • ❓❔ Datas e cidade de nascimento: estima-se que tenha sido em 1524, mas alguns historiadores desconfiam ter sido em 1525. Há, pelo menos, quatro cidades a reclamar ser a sua terra natal: Coimbra, Chaves, Alenquer e Lisboa. Chaves é de onde a família paterna era oriunda, mas os registos da Casa das Índias indicam que deverá ter nascido em Lisboa.
  • ❓❔ Data da morte: com base no documento que o rei Filipe I entregou à mãe do poeta, a data da morte é 10 de junho de 1580. O ano, porém, não corresponde ao que estaria na lápide que D. Gonçalo Coutinho, fiel amigo, colocou na sua campa. Dizia assim:
«Aqui jaz Luís de Camões. Príncipe dos poetas do seu tempo. Viveu pobre e miseravelmente e assim morreu, no ano de 1579. Esta campa lhe mandou aqui pôr D. Gonçalo Coutinho, na qual não se enterrará pessoa alguma.»

Com o Terramoto de 1755, os restos mortais desapareceram, tendo sido encontrados em 1854 e levados para o Mosteiro dos Jerónimos. Os estudiosos, contudo, duvidam que as ossadas sejam do poeta, dado que, no século 19, não havia forma de determinar cientificamente a quem pertenciam.

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📷 Crédito da ilustração (abertura): Camões de Júlio Pomar – imagem de Pedro Ribeiro Simões \ CC BY 2.0