Estar em casa a ver o professor, através de um ecrã, é agora o dia a dia de boa parte dos alunos, nestes tempos excecionais. Mas foi assim que mais de 500 mil crianças portuguesas frequentaram as aulas entre 1965 e 2004. Não era porque uma pandemia obrigava as pessoas a viver isoladas nas vilas e nas aldeias. Mas sim porque o país era ainda mais desigual, não só entre o campo e a cidade, como entre os que podiam pagar pela educação e os que largavam os estudos para ajudar os pais. Agora chega de conversa, que o professor da Telescola já chegou. Carrega no botão (sim, não há controlo remoto) e presta atenção.
O salão da paróquia parece-se em quase tudo com uma escola. Carteiras, uma ardósia preta, um crucifixo, a fotografia do chefe do governo, Oliveira Salazar, um mapa de Portugal e…uma televisão. Ao início da tarde, pouco depois da hora do almoço, chegam os alunos e sentam-se nos seus lugares.
O professor-monitor liga o televisor e a aula começa com uma lição de francês. «Quelle heure est il?» – pergunta o professor que aparece na TV –. «Répondez-vous, s`il vous plaît». A turma olha para o relógio na parede e responde num coro afinado: «Il est trois dans l’après-midi.»
Nos lugares mais distantes das cidades, os rapazes e as raparigas aprendiam com uma televisão a preto e branco.
É a telescola, o programa que arrancou em outubro de 1965 e que, a partir dos estúdios da RTP no Monte da Virgem, no Porto, chegava, todas as tardes, de segunda a sábado, a escolas primárias, cooperativas agrícolas, associações ou edifícios recuperados pelas câmaras municipais. Durante praticamente quatro décadas, os professores da televisão levaram o 5.º e o 6.º anos a quase meio milhão de alunos que nunca pensaram poder ir além da 4ª classe.
Um ano antes da estreia do modelo, o Estado Novo – o regime político liderado pelo senhor da foto pendurada nas salas de aulas – alargou o ensino obrigatório de 4 para 6 anos. Poderia aumentar até mais anos que serviria de pouco. As escolas preparatórias estavam nas cidades e nas vilas, as estradas eram más ou não existiam e os professores poucos e a dar aulas nas sedes de concelho.
As crianças das aldeias
Deixar a escola era o destino mais provável para as crianças da aldeia.
A educação não era para todos. Quem ia estudar depois da primária eram os filhos de pais ricos e remediados. Ou, então, fugia-se à pobreza enfiando os miúdos nos seminários dos padres. A maioria arranjava trabalho ou ajudava os pais no campo. O destino estava traçado, até aparecer a Telescola. Ou melhor, a televisão, acabadinha de estrear poucos anos antes, em 1957.
O aparelho era tão raro nas casas das aldeias que todos queriam vê-lo de perto. Mesmo que as brincadeiras estivessem proibidas e mesmo que, durante uma tarde inteira, tivessem de seguir à risca as instruções dos professores da TV.
Eram exemplares os alunos da telescola. Ou quase exemplares.
Impossível estar sempre atento, quando no ecrã havia gente tão diferente do costume.
Penteados modernos e blusas às pintinhas das professoras, camisas engomadas e gravatas às riscas dos professores, nada a ver com as vestes tristes e cinzentas dos adultos das aldeias.
Nada a ver com nada, principalmente quando a Telescola pegava em turmas inteiras e viajava com elas até à Torre Eiffel, em Paris, ao Big Ben, de Londres, e ao Mosteiro dos Jerónimos, na capital. Ou então abria as portas para a Matemática Moderna, para as notas de música desenhadas nas pautas, para a poesia que a professora Manuela Melo trazia para as aulas de português, para a divisão das células ou para a composição da água.
Tudo ao vivo e em directo, fazendo com que a Telescola chegasse a qualquer ponto do país, incluindo às crianças da cidade, que também papavam as lições à espera dos desenhos animados. A grande diferença é que, em casa, não estavam acompanhadas por dois professores-monitores, um para as Letras e outro para as Ciências, que, no fim de cada aula, lançavam um questionário à turma e faziam exercícios para saber o que aprenderam com o professor da TV e o que ficou por aprender.
O progresso foi chegando devagarinho
Entre os anos 80 e 90, quase 20% dos alunos do 2.º ciclo frequentava a Telescola.
A Telescola arrancou com cerca de mil alunos, distribuídos por 80 postos de receção, isto é, escolas improvisadas em edifícios desocupados. Na década de 70 do século passado, quando a escolaridade obrigatória passou para oito anos, eram quase seis mil. Na década seguinte, o programa acompanhava 60 mil crianças e, entre os anos 1980 e 1990, a percentagem de alunos do 2º ciclo a frequentar a Telescola chegou quase aos 20% do total.
O progresso foi, entretanto, chegando aos bocadinhos. Em 1983, o transporte escolar dos alunos no ensino obrigatório passou a ser gratuito. Boa parte deixou o ciclo preparatório na TV e foi estudar numa escola à séria.
Pouco tempo depois, surgiram as primeiras vozes a perguntar se a Telescola ainda fazia sentido.
Os mais insistentes eram os senhores da RTP, preocupados com os custos avultados das emissões em directo e a quererem usar o tempo de antena para outros programas e outros públicos.
No ano letivo de 1988/89, as emissões em direto foram substituídas pelas videocassetes. As lições, agora a cores, passaram a ser gravadas no estúdio, reproduzidas em série e distribuídas nos postos de receção de todo o país.
Era o princípio de um fim que ainda se iria arrastar por mais uma década e meia. As vozes contra a Telescola foram subindo de volume, ao ponto de a OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico – ser chamada a avaliar o modelo e decidir se estávamos ou não perante um ensino de segunda categoria.
Era justamente o contrário. Portugal – que andava numa correria esbaforida para encurtar a distância com os países mais desenvolvidos – tinha um dos melhores sistemas de ensino alternativo da Europa, concluía o relatório.
Só que a OCDE focava-se, sobretudo, no passado, quando a telescola era o único caminho para chegar às zonas rurais ou às periferias urbanas com escolas sobrelotadas. Um caminho – dizia-se – com taxas de sucesso na ordem dos 90%.
Agora, e segundo as correntes pedagógicas mais recentes, os professores da televisão já não são o melhor para as criancinhas. Elas precisam de adultos de carne e osso a ensinar e necessitam igualmente de brincar com colegas de todas as espécies e feitios para crescerem.
O princípio do fim
As crianças foram para as cidades. As aldeias ficaram para os velhos.
O país também já não é o mesmo. As famílias mudaram-se para as cidades. As crianças desapareceram dos campos e as aldeias foram ficando para os velhos. Em 2002/2003, entre um total de 320 postos de recepção da Telescola, haveria uma centena com menos de 10 alunos inscritos e salas de aula com três ou quatro crianças apenas.
A fazer lembrar os tempos dos mega agrupamentos, o então ministro da Educação, David Justino, anunciou o fecho dos postos com menos de uma dezena de alunos.
O fim do 5.º ano aconteceu logo de seguida. No ano lectivo seguinte, em 2003/2004, acabou-se com o 6.º ano e deu-se o programa como encerrado. A Telescola tinha, nessa altura, pouco mais de 5 mil alunos e houve protestos de muitas associações de encarregados de educação.
O país tinha a ambição de pertencer à Europa dos ricos, mas faltava ainda um bom bocado.
Era a esse bocado que os encarregados de educação se agarravam. Os transportes urbanos falhavam demasiadas vezes e as crianças passavam quase tanto tempo num autocarro como na escola. Muitas vezes, os filhos faziam longas viagens para, num dia, terem apenas duas ou três aulas, por falta de professores.
Ainda assim, por mais que os pais teimassem, a Telescola já não aliciava os miúdos. A outra televisão tinha-lhes mostrado demasiado mundo para agora ficarem deslumbrados com professores bem vestidos e com aulas virtuais de educação física, mostrando meninos de calções brancos a praticarem desporto num estúdio da RTP. Ou aulas de música sem instrumentos para tocar e ainda manuais a preto branco impressos em papel baratucho, para diminuir os custos ao Estado.
A Telescola existiu até se concluir que não se precisava mais dela. Se era ou não verdade, essa não era mais a questão. Chegara o momento de avançar para o nível seguinte. Mas quem sabe se não voltará nos próximos tempos? Já se ouvem algumas vozes a defender o seu regresso à RTP durante o período de isolamento e como forma de diminuir as desigualdades entre os alunos com e sem acesso à internet. As voltas que esta vida dá…
Uma aula de História através da Telescola (1993)
Factos e números
Quem eram os monitores que orientavam os alunos?
Os monitores eram professores do ensino primário das aldeias. Era-lhes exigido o 3º ciclo do ensino liceal ou curso médio como habilitação mínima ou então diploma de professor de qualquer grau de ensino oficial. Em cada posto, deveria haver, no mínimo, um monitor por sala. Cabia-lhes a responsabilidade de tratar das matrículas dos alunos e assegurar os trabalhos após cada lição – esclarecimento de dúvidas, fichas com a revisão da matéria, exercícios, entre outras tarefas.
E quem eram os professores da TV?
Os professores da televisão eram recrutados entre os mais qualificados do ensino oficial, através de convite ou provas de seleção. Uma boa parte tinha ainda de frequentar um estágio no estrangeiro na área do ensino audiovisual. A Telescola tinha um diretor, nomeado pelo ministro da Educação Nacional. Cada curso tinha ainda um responsável pelos docentes da sua área.
Quem podia abrir uma telescola?
Paróquias, juntas de freguesia, câmaras municipais ou qualquer entidade pública ou privada estavam autorizados a abrir um posto de recepção. Para isso deveriam ter as condições mínimas – uma sala de aula para um grupo de 25 alunos e material didáctico aprovado pelo Instituto de Meios Audiovisuais de Educação. Cada aluno pagava 200 escudos (1 euro) por ano letivo, que serviam para pagar os salários dos monitores e despesas com a compra do televisor e de material diverso.
Qual era a percentagem de alunos a frequentar o ensino básico no tempo da Telescola?
A taxa de escolarização do 2.º ciclo do ensino básico, em 1965, era de 11,8%, segundo os dados do Pordata, nunca tendo atingido os 100% durante a existência da Telescola. Em 1970, apenas 22% da população tinha completado o 5.º e 6.º anos. Em 2003/2004, ano em que o programa terminou, a taxa atingia os 82,5%.
Quantos nomes teve a Telescola?
A Telescola começou como Curso Unificado da Telescola (CUT) e, mais tarde, passou a designar-se de ciclo preparatório TV (CPTV). A partir de 1988, muda para ensino básico mediatizado (EBM), coincidindo com o momento em que as lições passaram a ser gravadas e distribuídas pelos postos. Esta designação manteve-se até ao fim, mas a Telescola passaria por mais alterações. Nos anos 1990, passou a ser também uma alternativa para quem abandonava a escola e para os que já não estavam na idade escolar adequada.
Quais eram as disciplinas da Telescola?
No início, as disciplinas estavam organizadas por áreas de Letras e de Ciências. Os alunos tinham quatro aulas de Língua e História Pátria, quatro lições de Francês, três lições de Matemática e um número igual de aulas em Ciências Geográfico-Naturais. Desenho e Trabalhos Manuais com duas lições, Educação Física e Religião e Moral (uma lição) completavam a carga lectiva de segunda a sexta. Ao sábado, Canto Coral, Religião e Moral, Desenho e Educação Física.
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Fontes consultadas:
- A Telescola – Perspectiva dos Monitores (2012), de Raquel Barros.
- Telescola, um método de Ensino (2010), de Maria Amélia Valente.
- A Telescola modelo de Ensino e Práticas Pedagógicas (2003), de Anabela Maria Guerreiro Estêvão.
- Arquivos RTP -TV: Espectáculo de toda a Gente.