Ao escrever o poema «Todas as Palavras», saberia António Manuel Pina quantas eram ao certo? Ninguém melhor do que um escritor e poeta para conhecê-las tão bem, mas daí a saber quantas são e o que significa cada uma delas… São tantas as palavras na língua portuguesa que só uma pequena parte sai dos dicionários e ganha vida nas histórias dos livros ou nas conversas entre amigos. Alguém lembrar-se-ia de dizer, por acaso, bíbulo ou eflúvio à mesa do jantar?
Segundo o Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, haverá qualquer coisa entre 200 e 300 mil palavras, se não se contabilizar as suas derivações (formas verbais). O maior dicionário de português é a edição do Dicionário de Moraes e conta com 306 949 palavras na sua 10.ª edição. São 12 volumes publicados entre 1948 e 1958 pelo historiador e linguista português José Pedro Machado e é o mais completo de todos.
A edição portuguesa do Houaiss, considerado também um dos maiores dicionários da língua portuguesa, tem 228 mil verbetes (palavras com os respetivos significados). O Grande Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora terá à volta de 410 mil entradas e o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, disponível na Internet, incluía em abril de 2021 um total de quase 134 mil verbetes.
Boa parte das palavras veio de civilizações tão antigas como a árabe ou a romana, esta última, muito mais aliás. O vocabulário da língua portuguesa, que continua a receber influências de línguas africanas ou orientais, foi sendo construído essencialmente com o latim falado pelos soldados do Império de Roma, que ocuparam a Península Ibérica.
São palavras que parecem nunca mais acabar. A língua portuguesa estará entre os idiomas que mais verbetes tem. O Dicionário Oxford do Inglês, o maior da língua inglesa, traz 290 mil verbetes. No Dicionário Larousse da Língua Francesa há mais de 135 mil palavras. E dicionário da Real Academia Espanhola conta com 93 mil palavras. O maior no mundo ocidental, no entanto, é o dicionário da língua holandesa, o Het Woordenboek der Nederlandsche Taal, segundo o Wikipédia. Tem 43 volumes, demorou 150 anos a ser feito e conta com 350 mil entradas, boa parte com palavras que, entretanto, caíram em desuso.
Os dicionários do Bichinho das Contas
Horas a fio a consultar o dicionário da língua portuguesa deram nisto: o Bichinho das Contas decidiu inventar quatro historietas com algumas das palavras que nunca ouviu ou leu. Consegues descobrir o que raio quer ele dizer com este chorrilho de palavras estrambólicas?
1 – O Tesouro (ou uma história com palavras difíceis)
🤔Ui! Isto sem um dicionário ao lado, não vai ser fácil…
À sombra de um flamboaiã (1) florido, encontrei um palimpsesto (2). Percebi pelo aspeto achamboado (3) que era algo vetusto (4), mas antes de avançar com qualquer tipo de elucubração (5), mostrei o achado a um perito. Assim que soube ter um tesouro em mãos, apressei-me a escondê-lo num latíbulo (6) do períbolo (7).
2 – O tagarela (ou uma história com palavras divertidas)
😏Vê lá se consegues:
Com as bochechas cheias de guloseimas, um laparoto (1) chegou-se ao pé de mim a garrular (2). Tinha uma voz tão monotónica (3) que em menos de nada me fez sopitar (4). Acordei babado e com a roupa tão encorrilhada (5) que parecia um grandessíssimo papalvo (6).
3 – O susto (ou uma história com palavras esquisitas)
🙄Isto está cada vez mais esquisito…
Tão túrbida (1) estava a noite que não via um palmo à frente. Senti de repente um ósculo (2) na minha cara. Fremi (3), pensei que fosse um avejão (4). Mas era só a minha vizinha que se aproveitou da escuridão para demonstrar o seu desvelo (5). Fiquei cheio de opróbrio (6), mas ainda bem que tudo aconteceu antes do dilúculo (7). Nem por nada queria que ela me visse rubicundo (8).
4 – A viagem (ou uma história simples com palavras bonitas)
🤗Não tem nada que saber…
Viajei numa pluma (1) gigante e minudências (2) encontrei pelo caminho. Um caco de vidro, um velho herbário (3) de papoilas e partes de um escafandro (4) enferrujado no areal da praia. Levei tudo comigo.
Das palavras dadas às emprestadas
O português é uma grande salganhada. Latim, grego e árabe são uma fatia muito importante, mas não esqueçamos a influência de outros povos, desde iberos, celtas, bascos, fenícios ou cartagineses até vândalos, alanos, visigodos ou alamanos. Todos juntos cozinharam ao longo de séculos a língua portuguesa, que aumentou ainda mais o seu léxico com as aventuras dos portugueses em terras de África, da Ásia ou das Américas.
Se a maioria das palavras foi herdada pelos que por aqui passaram, outras fomos buscá-las aos países vizinhos. A língua anda de boca em boca e com os ouvidos bem abertos. Ouvindo aqui, acolá, deixando-se contagiar pelas modas, pela gastronomia, pela música ou pelos avanços das tecnologias que acontecem nas vizinhanças.
Prova disso são os estrangeirismos, nada mais do que pedir emprestado palavras de outros idiomas. Exemplos não faltam na língua portuguesa. Quando o empréstimo vem do francês, dá-se o nome de galicismo. Se for do inglês, diz-se anglicismo, e italianismo do italiano.
O estrangeirismo tem duas formas:
- a grafia e a pronúncia são adaptadas ao português;
- palavra é conservada na sua forma original.
Aqui ficam alguns exemplos para mostrar como estamos tão habituados a certas palavras que já nem nos lembramos que têm origens noutras línguas:
GALICISMOS Abajur (abat-jour) | Ateliê (atelier) | Baguete (baguette) | Balé (ballet) |Batom (bâton) | Bege (beige) | Bijuteria (bijouterie) | Boutique (boutique) | Capô (capot) | Carrossel (carrousel).
ANGLICISMOS Airbag (air bag) | Bangalô (bungalow) | Basquetebol (basketball) | Bife (beef) | Boxe (boxing) | Casting (casting) | Coquetel (cocktail) | CD (sigla para compact disc) | Clipe (clip) | Design (design) | Detective (detective) | Email (email) | Folclore (folklore) | Marketing (marketing) | Nylon (nylon) | Part-time (part-time) | Queque (cake) | Repórter (reporter) | Self-service (self-service) | Ténis (tennis).
ITLALIANISMOS Adágio (adagio) | Alteza (altezza) | Bagatela (bagatella) | Bandido (bandito) | Barítono (baritono) | Capricho (capriccio) | Cappuccino (cappuccino) | Cicerone (cicerone) | Diletante (dilletante) | Esparguete (spaghetti) | Gueto (ghetto) | Imbróglio (imbroglio) | Filigrana (filigrana) | Lasanha (lasagna) | Nhoque (gnocchi) | Mozarela/muçarela (mozzarella) | Ricota (riccota) | Risoto (risotto) | Salsicha (salsiccia) | Piza (Pizza).
Arabescos na ponta da língua
Os árabes influenciaram não só a língua, como a arquitetura, gastronomia ou avanços nas ciências.
Os estrangeirismos estão sempre a acontecer, mas há outras interferências na língua que ocorreram há muitos séculos e ajudaram a moldar a língua portuguesa. É o caso dos árabes, que chegaram à Península Ibérica em 711 e ficaram até 1249 em Portugal. Mais de 500 anos é tempo suficiente para deixarem aqui a sua marca.
Com os árabes aprendemos novos saberes como a álgebra, a astronomia, a aritmética ou a numeração decimal que ainda hoje usamos. Na agricultura, eles ensinaram-nos a cultivar o arroz, a plantar as oliveiras, as vinhas ou as árvores de fruto e, na indústria, desenvolveram o têxtil e a cerâmica.
As influências estão por todo o lado, na arquitetura, na gastronomia, e evidentemente, na forma como falamos, apesar de nunca terem imposto a sua língua como única. Coisa que não aconteceu aliás com a Inquisição em 1552, quando o árabe passou a ser proibido e usado apenas às escondidas.
Ainda assim sobreviveu e, hoje, entre substantivos, adjetivos, verbos, pronomes, artigos ou interjeições haverá mais de 18 mil termos, segundo Dicionário de Arabismos na Língua Portuguesa”, de José Adalberto Alves. Consulta em baixo a lista com alguns exemplos.
Palavras do árabe
Achaque (ashshaka) | Açoite (assaut) | Açougue (assok) | Açude (assudd) | Açúcar (assukar) | Alcachofra (Alkharshof) | Álcool (alkohul) | Alcorão (Alkuran) | Alcova (al-qabu) | Alface (al-khaç) | Alfaiate (al-khayyât) |Almirante (amir-al-bahr) | Almofada (almukhadda de khadd) |Falua (faluka) | Fulano (Flan) | Garrafa (garrafâ) | Harém (Harim) | Javali (jabali) | Laranja (naranj) | Limão (laimun) | Masmorra (matmura) | Matraca (mitraka) | Nora (na’ûra) | Olá (wa Allah) |
O vizinho do lado
O português e o castelhano partilham as influências dos muitos povos que passaram pela Península Ibérica
E, já agora, os nuestros hermanos, aqui ao lado, também contribuíram para enriquecer o nosso vocabulário. O português e o espanhol partilham muita coisa em comum, a começar pelo o latim e o grego, e a continuar na civilização árabe. A imposição do latim vulgar como língua única pelos romanos não foi suficiente para travar outras tantas influências de povos que já antes por aqui andavam (iberos, celtas, bascos, gregos, fenícios e cartagineses). Mais tarde, no século V, os germânicos (vândalos, alanos, visigodos, alamanos, suevos, entre outros) trouxeram igualmente novas palavras que passaram a fazer parte das nossas conversas.
Tanto os germânicos como, mais tarde, os árabes foram modificando os dialetos usados no tempo dos romanos. Uma dessas mudanças foi o galego-português, em Portugal e na Galiza, que passou a ser cada vez mais escrito e falado após os cristãos expulsarem os árabes, no século XI. Ou o castelhano, o catalão, o navarro-aragonês e o astur-leonês, falados respetivamente nas regiões de Castela, Catalunha, Aragão e Navarra, Leão e Astúrias.
Com percursos tão próximos não admira que muitas das palavras portuguesas tenham origem na língua espanhola. As semelhanças, por vezes, são tantas que se torna complicado distinguir aquelas palavras que vieram do país vizinho e as que são mesmo nossas. Confere a seguir alguns dos termos que chegaram de Espanha.
Palavras do castelhano
Abarrotar (abarrotar) | Amistoso (amistoso) | Ampulheta (ampolleta) | Apanhar (apañar) | Apetrechos (petrechos) | Chorrilho (chorrillo) | Descalabro (descalabro) | Deslumbrar (deslumbrar) | Desmoronar (desmoronar) | Empurrar (empujar) | Encalhar (encallar) |Mamarracho (mamarracho) | Manada (manada) | Mariposa (mariposa) |Mochila (mochila) |Novilho (novillo) | Ninharia (Niñeria) | Pandeireta (pandereta) | Repolho (repollo) | Riacho (riacho) | Sovina (sobina) | Tapeçaria (tapicería) | Tertúlia (tertulia) | Tijolo (tejuelo) | Tiracolo (tiracuello) | Velhaco (bellaco) | Vislumbre (vislumbre) | Zaragata (zaragata).
Do abacaxi dos tupi ao jindungo do quimbundo
As palavras do Brasil, Angola ou Moçambique também viajaram para o vocabulário da língua portuguesa.
Ao viajarem pelos mares ao longo dos séculos 15 e 16, os navegadores portugueses levaram a sua língua a muitos lugares, do Brasil a Timor-Leste, passando por Angola, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau e Moçambique. Mas não foram só os portugueses que mudaram os modos e os idiomas falados por estes povos. O contrário também aconteceu com várias expressões e palavras das línguas nativas desses países a entrarem no português. As principais influências chegaram das línguas banto de Angola (quimbudo) e Moçambique ou das línguas tupi – guaranis, da América do Sul.
🤙Alguns exemplos que o Bichinho das Contas recolheu:
Abacaxi
Vem do tupi-guarani e é usada para designar as plantas do género Ananás, cultivadas em climas tropicais.
Bazar
Vem do quimbundo, língua da família banto falada em Angola. Significa fugir ou sair apressadamente.
Banzé
A sua origem é imprecisa, provavelmente vem do quimbundo. Significa confusão, barulho, briga.
Batuque
Origem controversa, atribuída às línguas africanas, significa dança com sapateado e palmas ao som de instrumentos de percussão.
Berimbau
Palavra do quimbundo para designar um instrumento musical composto por um arco de madeira com uma corda de arame vibrada por uma vareta. Tem ainda uma cabaça oca que funciona como uma caixa de ressonância.
Bué
Calão de Luanda, significa muito ou demasiado e é usada em linguagem informal entre adolescentes.
Cachimbo
Origem controversa atribuída aos americanos, por um lado, ou ao quimbundo, por outro. Designa um tubo com uma cova na extremidade para se colocar o tabaco e fumar.
Cafofo
Vem das línguas banto, faladas nos países africanos a sul do Equador, nomeadamente em Moçambique. Significa esconderijo, buraco, cova, local onde se guardavam os escravos antes de serem vendidos
Candonga
Palavra usada como sinónimo de mercado negro, contrabando ou economia paralela (atividades que escapam aos impostos). A sua origem é atribuída às línguas banto, significando esperto, astuto ou ardiloso.
Capanga
Vem de kappanga, do quimbundo, e significava uma bolsa pequena para transportar bens de valor junto ao corpo. Mais tarde, passou a significar também guarda-costas.
Carimbo
Vem do quimbundo: instrumento de borracha, marca, sinal.
Cota
Pessoas mais velha (calão de Luanda, Angola)
jindungo
Vem do quimbundo: variedade de malagueta.
Kuduro
Ritmo angolano criado nos anos 1980 pelo dançarino e produtor Tony Amado. A palavra, que significa «rabo duro» surgiu para dar nome a um novo estilo de música e de dança que mistura batidas eletrónicas com o folclore angolano.
Musseque
Palavra do quimbundo, foi deixando de ter uso, acabando por ser substituída por subúrbio.
Jacarandá
Vem do tupi-guarani para designar árvore originária da Argentina, Bolívia e sul do Brasil. É também a segunda espécie de árvore mais encontrada na cidade de Lisboa.
Mandioca
Vem do tupi-guarani para designar planta tuberosa da família das Euphorbiaceae.
Pamonha | Panhonha
Vem da palavra tupi pa’muñã, que significa pegajoso. Usa-se para dizer que alguém é palerma, molenga, desajeitado ou preguiçoso. É também uma iguaria feita à base de milho.
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Fontes consultadas: Ciberdúvidas | Wikipédia | Ciberdúvidas (1) | Ciberdúvidas (2) | Ciberdúvidas (3) |Wikipédia (1) |Histórias de Portugal em Marrocos | Brasiliano | BBC |Dicionário Priberam |Dicionário de Arabismos da Língua Portuguesa, de Adalberto Alves, Imprensa Nacional Casa da Moeda (2013), Lisboa.