Há 110 anos, no dia 5 de outubro, o povo agarrou nas armas, enfrentou as tropas monárquicas e proclamou a República. Talvez por isso, este seja o feriado preferido dos Bichos no Sótão, que hoje desenterram as memórias das últimas horas antes do novo regime. Mas, não se assustem, não se trata de uma enfadonha aula de História. Esta revolução tem tudo para ser a melhor aventura de sempre: conspirações, batalhas navais, assaltos a quartéis, heróis e heroínas e tiroteios nas ruas de Lisboa.
Meia centena republicanos está secretamente reunida, na Rua da Esperança, em Lisboa, para decidir se avança ou não com a revolução. A morte de Miguel Bombarda, há poucas horas, é um duro revés. O médico é um dos principais estrategas, mas foi assassinado à queima-roupa. Aparício Santos estava internado no Hospital Psiquiátrico de Rilhafoles com sintomas de perseguição e comportamentos violentos. Naquela manhã de 3 de outubro de 1910, assim que entra no consultório do psiquiatra, saca da pistola e dispara até as balas acabarem. Bombarda morreu seis horas depois no Hospital de São José, mas não sem antes conseguir queimar os papéis que detalham os planos para instaurar a República.
_ Há muita coisa em jogo, não podemos desistir agora – avisa José Relvas, um dos membros da comissão eleita, no ano anterior, com o objetivo de preparar a revolta contra a Monarquia.
São oito da noite, os militares e civis estão a postos, o Almirante Cândido dos Reis, que lidera as operações, nem admite recuar. Quase todos concordam que já não é possível travar o movimento.
_ É agora ou nunca! – Decide Relvas, ordenando que a revolução comece à uma da madrugada do dia seguinte.
Quatro horas depois, o comissário naval António Machado Santos sai de casa, trajado a rigor, e apanha o elétrico, como se fosse um dia normal. Desce em Campo de Ourique e junta-se aos cabos, sargentos e a umas boas dezenas de civis, que, sob o comando dele, assaltam o quartel da Infantaria 16.
Nesse mesmo momento, em Alcântara, está o tenente Ladislau Parreira a liderar o assalto ao quartel do corpo de marinheiros. À espera deles estão as tropas fiéis à monarquia que lançam um contra-ataque violento. Vale a intervenção do povo que, das janelas, das varandas e dos telhados, lança bombas aos pés dos cavalos, permitindo aos revoltosos aguentarem-se sem dar parte fraca.
A missão mais complicada, porém, está a decorrer nas águas do Tejo. Os navios Adamastor e São Rafael são tomados pelos marinheiros revoltosos, mas a embarcação D. Carlos mantém-se no comando dos monárquicos. O plano dos republicanos não corre exatamente como o esperado.
Os marinheiros, assim que tivessem tomado os navios, deveriam disparar duas salvas de canhão. Ao ouvir o sinal no Cais do Gás, onde hoje está o Museu da Eletricidade, o almirante Cândido dos Reis deveria embarcar para assumir o comando militar da revolução a bordo do D. Carlos.
Mas não se ouvem nem salvas nem tiros. O rio está tão quieto e mudo como a noite.
_ O que fazemos agora, meu almirante? – Pergunta um dos oficiais. – Ouvi dizer, mas a informação não está confirmada, que as outras unidades também fracassaram.
O almirante Reis olha desesperado para o Tejo e balbucia entre dentes:
_ A revolução está perdida!
_ O que fazemos agora, meu almirante? – Insiste o oficial, mas ele já nem o ouve. Afasta-se do cais com o passo cambaleante e deambula pela cidade.
_ A revolução está perdida – vai repetindo o almirante para si próprio.
Ele julgara que a vitória, à terceira tentativa, seria certa. Antes, já duas revoluções tinham falhado. A de 31 de janeiro de 1891, no Porto, com os revoltosos condenados ao degredo em África. E a de 28 de janeiro de 1908, que, ainda assim, não eliminando todos os focos de dissidentes, terminaria com o regicídio de D. Carlos, substituído depois por D. Manuel II.
Os reveses da revolução
Ao chegar a notícia da morte do Almirante Reis, um dia após o assassinato de Bombarda, o desânimo toma conta dos revoltosos.
Cândido dos Reis não se imagina a viver num país que não republicano. Foi por isso que prometeu dar tudo por tudo, até a vida, se necessário. Agora sente-se desorientado. Vagueia até parar numas azinhagas à volta do que hoje é a Praça do Chile, puxa da arma e aponta-a à cabeça.
Morreu na hora, sem desconfiar que a revolução dele continua em marcha, agora com os revoltosos a saírem dos quartéis em Alcântara e Campo de Ourique rumo ao Palácio das Necessidades onde está o rei D. Manuel II.
Só que pelo caminho são intercetados pela Guarda Municipal. Começa a troca de tiros nas esquinas das ruas em Campo de Ourique. Os revolucionários ainda conseguem descer e chegar ao Largo do Rato. Tentam avançar para o quartel do Carmo, mas todos os caminhos estão bloqueados. A única fuga é a rotunda da Avenida, que hoje é do Marquês de Pombal, mas nessa altura sem a estátua.
Barricam-se todos ali e montam o contra-ataque. Já o Sol desponta quando chega a notícia da morte do Almirante Reis. O desânimo toma de assalto as tropas revoltosas. Também elas acham que a revolução está por um fio. Como ter esperança na vitória sem o almirante nem ninguém ao comando?
A maioria abandona a rotunda, uns atrás dos outros, até que Machado Santos sobe para o local mais alto que encontra e tenta travar a debandada:
_ A vitória ainda é possível. Estamos no melhor local para ripostar! – Grita ele, apontando para a vista panorâmica sobre os principais pontos de Lisboa.
E tem razão! Assim que chega à rotunda, Machado Santos percebe que aquele é um lugar estratégico. Fica no alto como um castelo erguido no cimo da cidade. Ninguém poderia chegar perto dela sem antes passar pela fúria dos republicanos.
_ Não veem como aqui estamos protegidos? Vamos lutar até ao fim! Quem está comigo?
Os oficiais vão-se embora e levam com eles uma boa parte dos revoltosos. Ficam os sargentos, os cabos, os marinheiros e o povo.
Não são muitos. Chegaram a ser mais do que 500 e, agora, bem perto das 7 da manhã, sobram cerca de 100 soldados e meia centena de civis com 5 canhões e umas poucas dezenas de espingardas.
As tropas monárquicas estacionam no Rossio, comandadas por Paiva Couceiro e procuram o melhor sítio para ripostar. Não demoram muito a encontrar, no Torel, uma colina acima da rotunda, o local mais estratégico para atirar sobre os revoltosos, que retaliam com as poucas armas e munições que sobraram.
Entre a derrota e a vitória
Os republicanos barricam-se na Rotunda, local estratégico para ver os principais pontos da cidade. As tropas monárquicas estacionam no Rossio.
A situação complica para os lados dos republicanos. Até que a reviravolta surge quando já ninguém a esperava. Do Tejo, os marinheiros nos navios Adamastor e São Rafael bombardeiam o Palácio das Necessidades, obrigando o rei a fugir para o Palácio de Mafra.
O ânimo dos revoltosos volta a subir, mais reforços, civis e militares vão chegando à rotunda, levando armas e munições. São cada vez mais e, ao fim da tarde, já ultrapassam os 1500 resistentes a fazer pontaria contra as tropas monárquicas.
Desta vez, são os militares fiéis à coroa que estão a perder terreno. Pedem reforços aos regimentos da província, mas os acessos à cidade foram destruídos. Ninguém entra e ninguém sai. Ao longo da madrugada, os membros da Carbonária trataram de isolar Lisboa. Dinamitaram pontes, estradas e linhas férreas.
A Carbonária é uma organização secreta, que se infiltrou nos bairros mais castiços de Lisboa, como Xabregas, Beato ou Alcântara, e recrutou algumas dezenas de milhares de operários.
É sobretudo o povo que, descontente com o desemprego, os impostos e a inflação, se junta a este movimento e é decisivo para a derrota dos monárquicos.
Na Margem Sul, aliás, a Carbonária toma o poder sem dificuldade logo no dia 4 de outubro. Em Lisboa, o tiroteio prolonga-se durante toda a noite e madrugada do dia 5. De um lado e do outro da barricada, as ordens são para resistir, mas, inesperadamente, um homem franzino surge no meio da confusão a agitar uma bandeira branca. Ambas as partes estão confusas.
O engano que precipita o fim
O embaixador alemão pede tréguas para os estrangeiros e os monárquicos julgam que é a rendição. Os revoltosos saem das trincheiras para festejar.
_ Quem é o sujeito a pedir tréguas? – Perguntam os soldados, suspendendo momentaneamente o fogo cruzado.
As tropas monárquicas, aquelas que se sentem agora mais acossadas, são as primeiras a largar as armas, julgando estar perante a rendição da coroa. Logo a seguir, são os revoltosos que saem das suas trincheiras para festejar.
Só que não se trata, afinal, de uma rendição. O misterioso homem é o embaixador da Alemanha, que apenas pede uma trégua para os residentes estrangeiros abandonarem a cidade em segurança.
O engano acelera o fim do conflito. O povo sai à rua para celebrar a vitória. Em Mafra, D. Manuel II e a família real correm até à praia da Ericeira e embarcam no iate D. Amélia rumo a Gibraltar para pedir exílio aos ingleses.
Há festa por toda cidade, marinheiros, vendedores, comerciantes, varinas, estivadores, advogados, médicos ou militares abraçam-se, pulam de alegria e dirigem-se à Praça do Município para assistir aos discursos oficiais de vitória.
Às 9 da manhã, os dirigentes do Partido Republicano sobem à varanda da Câmara Municipal de Lisboa e proclamam a República.
_ Unidos todos numa mesma aspiração ideal, o Povo, o Exército e a Armada acabaram de, em Portugal, proclamar a República -, grita José Relvas, dado início ao novo regime.
A população aplaude eufórica e, logo de seguida, é nomeado o governo provisório chefiado por Teófilo Braga. Naquela manhã, toda a gente acredita na mudança.
_Viva a República!
_ Vivaaaaaa!
As figuras da revolução
MIGUEL BOMBARDA (1851-1910). Foi apenas dois anos antes da revolução de 5 de outubro que Miguel Bombarda entra na vida política, mas já tem um longo percurso na carreira médica, especializando-se em doenças do sistema nervoso. Dirigiu o Hospital Rilhafoles e foi também médico no Hospital de São José, além de presidir a Academia Real das Ciências Médicas de Lisboa. Morreu nas vésperas da implantação da República, tal como o Almirante Reis. O povo prestou-lhes homenagem, enchendo as ruas da cidade durante as cerimónias fúnebres que aconteceram a 16 de outubro de 1910.
MACHADO SANTOS (1875-1921) – Sempre disse que era um conspirador incorrigível este comissário naval que, após o 5 de outubro, foi aclamado o herói da Rotunda e pai da República. Já tinha, de facto, conspirado na revolta de 28 de janeiro de 1908 e voltara a salvar a República em 1919 quando derrota os monárquicos acampados na Serra do Monsanto. É também dos primeiros a criticar o rumo da República, participando no golpe de 1917 que coloca Sidónio Pais no poder. Funda o Partido da Federação Republicana e, pouco depois de se retirar da vida política, é assassinado na revolta radical de marinheiros e arsenalistas, conhecida como a Noite Sangrenta de 19 de outubro de 1921
JOSÉ RELVAS (1858-1929) era ainda um jovem a estudar no Curso Superior de Letras quando se deixou seduzir pelos ideais da República. Mas só perto dos 50 anos é que se filia no Partido Republicano Português. É uma das principais figuras que encabeçou o diretório responsável por preparar a revolução. Foi ministro das Finanças do governo provisório e, mais tarde, embaixador de Portugal em Espanha.
TEÓFILO BRAGA (1843-1924). Tinha fama de pouco amistoso, mas Teófilo teve desde cedo de lutar pelo que queria. Ainda adolescente, começou a trabalhar na tipografia do jornal açoriano «A Ilha» para se libertar da madrasta. Foi depois para Coimbra estudar Direito e pagou o curso fazendo traduções, escrevendo poemas ou dando explicações. Concorre a alguns cargos académicos que, contudo, são-lhe negados por causa dos seus ideais republicanos. É autor de uma tão vasta obra, que é quase impossível enumerar. Assume, a 5 de outubro de 1910, a presidência do governo provisório, até ser substituído por Manuel de Arriaga.
CÂNDIDO DOS REIS. Aos 17 anos ofereceu-se como voluntário na Marinha e é também por volta dessa idade que se torna republicano. O almirante Reis esteve bastante envolvido no fracassado golpe de 28 de janeiro de 1908, caindo em desânimo, mas recuperando forças para voltar a organizar as operações militares da revolta de 5 de outubro.
AMÉLIA SANTOS «Para empunhar uma arma, tanto serve um homem como uma mulher», pensou Amélia antes de agarrar na carabina e juntar-se aos revoltosos na Rotunda da Avenida. Muito antes da revolução já ela era republicana, embora guardasse segredo por haver quem achasse «ridículo que as mulheres tenham ideias avançadas», contou ela ao jornal A Capital. Ficou conhecida como a heroína da República nos postais comemorativos.
Se também tens um fraquinho por intrigas palacianas, vais gostar deste artigo: D. Teresa. O 1º rei de Portugal foi, afinal, uma rainha.
Fontes consultadas:
Jornal i (edição em papel de 2 de janeiro de 2010), Entrevista a Fernando Rosas. | O Correio do Minho | Cem anos da República | Hemeroteca de Lisboa | História de Portugal, de António H. Oliveira Marques, vol. III, 3ª edição, Palas Editores, 1986 (Lisboa)