Hoje vamos viajar com o Bicho-que-Morde até aos anos 70 do século passado. A televisão é a preto e branco e só existem dois canais. A emissão começa e acaba à hora certa e os programas infantis são praticamente inexistentes. Os rapazes jogam à bola, as raparigas à macaca e ao elástico e as famílias fazem serões à volta do monopólio.

 

Ao fim da tarde, eles e elas suspendem as brincadeiras e sentam-se frente ao televisor. Um homem de óculos, cabelos grisalhos e meio careca aparece no ecrã. Está sentado numa cadeira e levanta muito as sobrancelhas enquanto diz devagar nomes estranhíssimos de autores e de filmes de animação.

Nomes tão estranhos que ele próprio se engasga algumas vezes ao pronunciá-los. A gaguez, embora ligeira, também não o ajuda a desprender a língua no momento de soletrar apelidos impronunciáveis como Huszczo ou títulos como Zaczarowany Olowek.

Vasco Granja marcou para sempre as infâncias dos anos 70 e 80. Começou na RTP logo após o 25 de Abril de 1974. Era para fazer meia dúzia de sessões, mas acabou por ficar 14 anos e apresentar 1040 programas – Cinema de Animação (1974-1976), Os Mestres da Animação (1977-1984) e Imagens e Imagens (1985-1988).

É um mistério como tantas e tantas crianças naqueles tempos estavam viciadas nos desenhos animados que vinham da antiga União Soviética, da Checoslováquia, da Polónia, do Japão ou do Canadá.

Não era só por serem países dos quais pouco ou nada sabiam, era sobretudo porque as animações eram esquisitas. Muitas vezes nem sequer pareciam ter uma história, outras vezes só tinham história se se ficasse a matutar nelas algum tempo. Nem sempre eram cómicas e, com alguma frequência, não se assemelhavam a coisas para crianças.

Ainda assim, a miudagem via tudo até ao fim. É certo que não havia muito mais para fazer, mas só isso não explica como um programa de televisão aguentou uma década e meia. Vasco Granja, já nessa altura, sabia como prender os espectadores ao ecrã, sem precisar de se preocupar com audiências e estratégias de marketing. Só depois dos polacos, dos japoneses ou dos canadianos surgia, por fim, o que todos ansiavam: a Pantera Cor-de-Rosa, a animação da Disney ou os cartoons do Looney Tunes.

E foi assim que a criançada viu coisas maravilhosas. Sombras chinesas, desenhos animados de papel recortado, de cartolina ou de plasticina, marionetas, animações com latas, alfinetes ou parafusos.

Muitos anos se passaram e as crianças dos anos 70 e 80 cresceram. De vez em quando, ainda regressam aos desenhos animados do Vasco Granja. São hoje adultos, mas gostam de voltar à infância. Aprenderam com ele que, basta ser curioso, para descobrir que a televisão pode até ter começado a preto e branco, mas o mundo é grande e cheio de cores.

 

Ficha biográfica
Nome: Vasco de Oliveira Granja
Nasceu em: Campo de Ourique (Lisboa), a 10 de julho de 1925
Morreu em: Cascais, a 4 de maio de 2009
Alcunha: pai da Pantera Cor-de-Rosa

Percurso profissional: começou rapazito nos Armazéns do Chiado e na Casa Travassos, no Rossio, em Lisboa, onde vendia a lotaria. Em adulto, foi trabalhar para a Livraria Bertrand, onde ficou quase 30 anos, atividade que desenvolveu a par dos programas infantis da RTP.
Foi director da segunda série da revista “Spirou” (edição portuguesa). Antes disso, foi o editor do “Quadrinhos”, um dos primeiros fanzines publicados em Portugal (1972). Esteve ainda ligado à fundação da primeira livraria especializada de BD em Lisboa, O Mundo da Banda Desenhada (1978). E fez muito mais nas áreas da animação e do cinema que não cabem neste resumo.

 

Os bonecos de Granja

Professor Baltazar

No seu laboratório atafulhado de engenhocas movidas a chapéus-de-sol ou cata-ventos, o professor Baltazar é mais do que um cientista careca e de barbas brancas. Parece um alquimista a inventar gerigonças e a combinar poções. Líquidos e soluções fumegantes que, depois de atravessar labirintos de tubos, canalizações e torneiras, saem em gotas coloridas para acabar com os obstáculos que surgem em cada história contada em pouco menos de 10 minutos.

 

Ficha técnica
Autor: Zlatko Grgić, diretor de desenhos animados no estúdio Zagreb Film
País: Croácia (território então integrado na antiga Jugoslávia)
Episódios: 59 feitos entre 1967 e 1974.
Estreia em Portugal: 1974 no “Cinema de Animação” de Vasco Granja

 

Lápis Mágico

Piotr é um rapaz com sorte, tem um cão amarelo como companheiro e um amigo duende que lhe empresta um lápis com poderes mágicos. Tudo o que Piotr desenha, animais ou objetos, ganha vida, acabando por resolver qualquer problema ou dissipar todas as ameaças. O presente funciona apenas em momentos de perigo e, nas mãos erradas, é somente um lápis normal.

 

 

Ficha técnica
Título Original: Zaczarowany Olowek
Autores: Adam Ochocki (argumento), Karol Baraniecki (arte), Zbigniew Czernelecki e Waldemar Kazanecki (música), da produtora Se-Ma-For
País: Polónia
Episódios: 39 feitos entre 1964 e 1975
Estreia em Portugal: anos 70 no programa de Vasco Granja, “Cinema de Animação”. Regressou em 1991 no programa Canal Jovem, da RTP, em 1991

 

O pequeno Inventor

Em cada episódio, surge um problema na quinta do avô de Dobromir, uma carroça danificada, fruta madura de mais ou um chuveiro avariado. Para todos os percalços, o rapaz tem uma solução. Por vezes, é preciso pensar muito antes de ir para o sótão e rabiscar os esboços das geringonças que inventa.

 

 

Ficha técnica
Autor: Roman Huszczo
Título original: Pomyslowy Dobromir
País: Polónia
Episódios: 20 episódios produzidos de 1973 a 1975
Estreia em Portugal: 1987, no programa Imagens e Imagens, de Vasco Granja

 

A Pantera Cor-de-Rosa

A Pantera Cor-de-Rosa é originalmente uma personagem do filme Pantera Cor-de-Rosa, de Blake Edwards e com Peter Sellers (inspetor Closeau) entre os protagonistas. A comédia tem como gatilho o roubo do maior diamante do mundo, com a particularidade de mostrar no seu interior a imagem de uma pantera.

O papel da Pantera Cor-de-Rosa resume-se a uma breve aparição no genérico. Foi o que bastou para se tornar famosa e passar a estrela animada do cinema e da televisão americanas. É claro que boa parte do sucesso se deve também à banda sonora, de Hary Mancini. Uma série de curtas-metragens são transmitidas primeiro nos cinemas e depois exibidas em bloco na televisão sob o título The Pink Panthern Show.

 

Ficha técnica
Título Original: The Pink Panther Show
Autores: estúdios DePatie-Freleng Enterprises.
País: EUA
Animação: Don Williams, Bob Matz, Norm McCabe, LaVerne Harding
Argumento: John W. Dunn
Episódios: 121 exibidos originalmente entre 1969 e 1980 nos Estados Unidos.
Estreia em Portugal: 1974 na estreia do programa “Cinema de Animação” de Vasco Granja, mantendo-se regular até aos anos de 1980. Regressou em 1994 no canal SIC.

 

Os autores de Granja

 

Norman Maclaren (1914-1987)

 

Escocês, a viver no Canadá, Norman McLaren foi um dos autores que mais técnicas introduziu na animação. O stopmotion é, por exemplo, uma invenção dele – as figuras e objetos são fotografados ou filmados frame a frame e montados depois numa película para dar a impressão de movimento.

Norman McLaren fez, ao todo, 59 filmes de animação, desenhou sobre telas de raio-x da sua própria cabeça, fez experiências com luzes e profundidade e trabalhou a sincronização de imagens e sons, criando filmes até hoje inovadores. A sua obra mais conhecida é uma curta-metragem, que lhe valeu um Óscar em 1953. “Neighbours” (“Vizinhos”) é um filme de oito minutos contra a estupidez da guerra, que Vasco Granja apresentou na estreia do seu programa, em 1974.

 

Lotte Reiniger (1899 – 1981)

Com doses infinitas de talento e de paciência, Lotte Reiniger criou mundos encantados de princesas e de cavaleiros, fábulas das Mil e Uma Noites e contos de fadas, narrados através de silhuetas em papel recortado. Usou tesouras e cartolinas pretas para transportar o teatro de sombras chinesas até ao cinema. Lotte Reiniger iniciou o seu percurso na Alemanha, onde nasceu, e mais tarde no Reino Unido, para onde se refugiou durante a 2ª Guerra Mundial.

 

Tex Avery (1908-1980)

 

A fórmula do mestre Walt Disney ditou durante décadas as regras da animação. Princesas delicadas, personagens fofas, castelos, florestas e bosques encantados. E assim foi até Fredrick Bean Avery – ou simplesmente Tex Avery – chegar à Warner Bros, em 1935, e desarrumar o mundo perfeito dos desenhos animados. Logo no ano seguinte, surge a sua primeira criatura esgrouviada, o Daffy Duck.

Pouco tempo depois, chega Bugs Bunny que, não sendo uma criação de Tex Avery, ganhou dele o seu carisma, acabando por formar com Duffy Duck um duo ainda mais alucinado. E, por fim, Elmer Fudd, o caçador trapalhão que nunca consegue apanhar nem o coelho nem o pato.

 

Koniek *

* Fim em checo (a palavra que todas as crianças de Granja conhecem)

 

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Foto (abertura): ilustração feita a partir da fotografia de Manuel de Sousa.