Quem diria que, por causa das invasões francesas, a povoação de Boticas iria inventar um novo método de fazer vinho? Ou que proibir galos e galinhas na panela daria origem ao Capão de Freamunde? O Bicho-Que-Morde explica aqui o que está por detrás dos pratos da cozinha tradicional portuguesa. Ninguém vai adormecer, é uma promessa. Estas histórias metem guerras, perseguições, rituais religiosos, lendas e até a triste sina de um frango que nunca cantou de galo.
A sopa para trabalhar o dia inteiro
Caldo Verde
O primeiro caldo
E tudo começou no Minho
Escapar à fogueira com um enchido a fingir
Alheira de aves
Uma das histórias que se conta é que os judeus inventaram a alheira para não serem queimados na fogueira da Inquisição. Na verdade, o que eles fizeram, não foi mais do que substituir a carne de porco pelas carnes de aves. Nos fins do século 15 e princípios do 16, eles não tinham escapatória senão fazer quase tudo o que os cristãos faziam. Comer carne de porco, porém, estava fora de questão e esse era um dos seus pontos fracos. Como não faziam nem defumavam os enchidos de porco, eram facilmente identificados pela Inquisição.
No entanto…
O galo que nunca cantou
Capão de Freamunde
O capão da freguesia de Freamunde é um dos maiores orgulhos de Paços de Ferreira, mas as aves escolhidas para honrar o prato mais tradicional desta cidade têm uma vida difícil. Não passam de frangos que, antes de começarem a cantar de galo, são capados para ficarem gordos e com a carne tenra e saborosa. Seguem depois para a Feira dos Capões em Freamunde, que, desde 1719, acontece todos os anos a 13 de dezembro, dia de Santa Luzia.
Ainda antes de irem para o forno durante três horas, são embriagados com um cálice de Porto na véspera e marinados ao longo de 24 horas em vinho branco, azeite, sal, pimenta e dentes de alho esmagados. Tudo para serem servidos em ocasiões especiais, como a consoada de Natal.
A tradição é antiga, conta-se que o capão já era famoso na Idade Média, aparecendo até nos textos de Gil Vicente (1465-1536). Mas a sua origem estará mais distante ainda, no Império Romano. De tão longe veio este costume que ninguém sabe, ao certo, como começou.
Uns dizem que foi algures no ano 162 antes de Cristo (a.C.), quando o consumo de carne de galinha terá sido proibido para precaver a escassez de cereais.
Os criadores terão descoberto então que, ao caparem os galos, eles engordavam tanto que não precisavam de ser alimentados com muita ração.
Há quem acredite numa outra história, também passada em Roma. Nesta versão, o culpado é o cônsul Caio Cânio. Atormentado pela cantoria dos galos todas as noites, terá conseguido aprovar uma lei para os banir da cidade.
Mas como a população não estava preparada para ficar sem eles, decidiu capá-los, retirando-lhes assim a alegria e vontade de cantar de dia ou de noite. E nasceu assim o capão, triste e calado, mas gordo e afamado por todas as terras do império por ter a carne mais apetitosa de todas as aves. Bem vos avisei que a vida do capão não foi nem é fácil.
Vinho dos mortos
Ao ficar no escuro e a uma temperatura constante, o vinho ganhou um gás natural que o tornou ainda mais apreciado.
Só mais uma colher para a História
Todos ao molho na panela
Cozido à Portuguesa
O que levanta menos dúvidas é o facto de ser um prato de gente pobre que aproveitava todas as sobras para fazer um novo prato. Os restos de carnes e vegetais eram cozidos juntos para apurar e misturar os sabores.
Tão rico ficou este prato que as famílias mais abastadas também quiseram tê-lo à mesa, como comprova o tratado de culinária de 1680 «Arte da Cozinha», de Domingos Rodrigues, cozinheiro da Casa Real de Portugal.
O certo é que o cozido está no top da gastronomia portuguesa com mais de 60 maneiras diferentes de o cozinhar.
Com batata-doce e hortelã, no Algarve, cozido nas furnas, no Açores, com arroz feito no forno e couve tronchuda, no Minho, alheira e feijão verde, em Trás-os-Montes, ou ainda cuscuz e tomilho na Madeira.
Este tema só fica completo com a leitura de: «Doces histórias preparadas na cozinha portuguesa». 😉
- As Tabafeias e a sua Origem – in Almocreve, Carção, Trás-os-Montes 2012 – Raízes dos Judeus em Portugal, de Inácio Steinhardt, Lisboa, Nova Vega, coleção Sefarad.
- Judeus, «joia da coroa transmontana», de Ana Catarina Leria Rocha Pinto, Universidade de Coimbra (2015).
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