Era uma vez uma carta de uma tia, em Portugal, para uma sobrinha na América. Uma carta que chegou atrasada, mas trouxe uma bela prenda de aniversário: uma caixa cheia de filmes de Jacques Tati. Já ouviram falar dele? Foi quem nos deu a conhecer o senhor Hulot. O personagem mais trapalhão dos filmes franceses mostrou-nos que de nada vale ter um grande carro na garagem ou o melhor smartphone no bolso se, depois, na correria das cidades, esquecemos de cuidar uns dos outros.
Olá Eva, minha maluquinha. ❤
Aqui está a minha prenda de aniversário para ti com séculos de atraso! Desculpa a demora, mas o lado positivo é que podes sempre esticar mais um bocadinho a tua festa. Faz de conta que o relógio andou para trás e que hoje é outra vez o teu dia. Esta é uma prenda muito especial como, na verdade, são todas as prendas que se oferecem com o coração cheio. Dentro desta caixa que o carteiro trouxe vais encontrar os principais filmes de Jacques Tati, realizador, argumentista e ator nascido em França, que eu adoraria ter conhecido quando ainda era criança. Será que já o conheces?
Jacques Tati fez filmes cómicos que, além de fazerem rir, fazem também pensar. E com a vantagem de pessoas de qualquer país e com qualquer idade conseguirem entendê-los com muita facilidade porque praticamente não existem diálogos. Os efeitos sonoros, a música e a mímica são a chave para perceber as histórias que ele conta quase sem palavras. O Sr. Hulot é a personagem mais popular que Tati criou e que ele próprio interpreta. É um homem de meia-idade, solteiro e nada preocupado com estatuto, dinheiro, marcas de automóveis ou outras coisas artificiais.
O mundo para o Sr. Hulot tem outros lados mais interessantes e por vezes bem estranhos, que ele só vê porque não se deixa arrastar pelo ritmo acelerado das cidades modernas. Se não fosse uma invenção saída dos filmes de Tati e andasse pelas ruas de Paris, de Lisboa ou de Nova Iorque, o senhor Hulot seria visto como mais um maluquinho à solta por muito boa gente com dificuldade em entender que as pessoas não têm de parecer todas iguais.
No cinema, porém, a sua estatura alta, magra e desengonçada dá vontade de rir. Mas as suas peripécias fazem-nos pensar também como muitas coisas dos adultos são, no mínimo, absurdas.
O mundo, segundo o Sr. Hulot
Hulot seria visto como um doido à solta por muita gente com dificuldade em entender que as pessoas não têm de parecer todas iguais.
O Sr. Hulot é trapalhão, está sempre a fazer asneiras, mas isso só mostra que errar é também uma boa maneira de aprender. As embrulhadas em que se mete, contudo, nem sempre são culpa dele. É mais porque tudo nas cidades acontece rápido, não dando tempo para ele se ajustar à pressa que toda a gente tem na rua, no escritório ou no trânsito para chegar sabe-se lá onde.
Mas atenção, o Sr. Hulot não detesta as novas tecnologias ou o conforto dos grandes centros urbanos, como às vezes parece. Só aponta os seus aspetos mais ridículos para mostrar que, por mais que as modernices facilitem o dia-a-dia, não podemos usá-las para nos afastarmos uns dos outros. Nem tão-pouco para virarmos clones uns dos outros, conduzindo os mesmos modelos de carros, trabalhando em cubículos perfeitinhos, habitando caixotes envidraçados, ou buscando unicamente o lado prático e produtivo das cidades sem reparar que vida ficou, entretanto, cinzenta e sem piada.
A melhor parte disto tudo é que o senhor Hulot também tem um sobrinho de quem gosta muito. Quando estão juntos, Gérard brinca que se farta na parte velha da cidade, entra em muitas aventuras com outras crianças, lambuza-se com doces, suja-se de terra e pó e faz toda a espécie de traquinices.
Não é apenas porque o tio o deixa à vontade que o miúdo gosta tanto dele. É principalmente porque Hulot é diferente dos adultos que ele conhece, mais preocupados com carros novinhos em folha, eletrodomésticos de última geração ou casas tão limpas e organizadas, que mais parecem montadas para catálogos de decoração do que feitas para as famílias viverem lá dentro.
O tio, pelo contrário, não se importa de viver num bairro desarranjado, mas ao mesmo tempo preenchido com rotinas deliciosas. Os vizinhos cumprimentam-se todos os dias, o varredor distrai-se à conversa e esquece de limpar os montinhos de folhas secas, os cães rafeiros brincam sem trela por entre as ruínas e há sempre barafunda nas bancas de fruta e hortaliças. É um mundo novo para Gérard, habituado às boas maneiras e aos gestos contidos que os papás ensinaram.
Um tio e um sobrinho quando se juntam…
Quando está com o tio, Gérard lambuza-se com doces, suja-se de terra e pó e faz toda a espécie de traquinices.
«O Meu Tio» é, aliás, um dos filmes de Jacques Tati, senão o filme, com mais sucesso internacional. Ganhou o Prémio Especial do Júri em 1958 no Festival de Cannes, conquistou o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro no ano seguinte e tornou-o milionário. Só que a fortuna durou pouco. O filme seguinte, «Play Time – A Vida Moderna», com um prejuízo de 8 milhões de francos, levá-lo-ia seis anos mais tarde à ruína.
Tati apostou em grande neste filme, construiu uma cidade de raiz num estúdio em Saint Maurice, com 15 mil metros quadrados, onde cabiam edifícios de ferro e vidro, ruas, estradas, escritórios, centro comercial, aeroporto e escadas rolantes. Os cenários eram tão impressionantes, que durante as rodagens ficaram popularmente conhecidos como a «cidade de Tati». Ele achava que a cidade desempenhava o papel principal no filme e acreditava que era mais fácil montar uma do que parar, por exemplo, o trânsito numa avenida movimentada de Paris ou fechar um supermercado para fazer as filmagens.
Além disso, estava convencidíssimo de que o sucesso do filme iria compensar a trabalheira e o investimento. Só não contava com tantos contratempos. Além dos problemas logísticos para fabricar uma cidade, teve ainda o azar de ver quase tudo destruído por um temporal que o obrigou a injetar mais dinheiro e a arrastar as filmagens por três anos. Quando «Play Time» estreou, em 1967, as pessoas só comentavam a loucura que foi enterrar 15 milhões de francos num filme, por mais inspirado que fosse. A crítica também não ajudou, com os jornais franceses mais influentes a deitarem abaixo a obra de Tati.
Foi uma golpada profunda no prestígio e no orgulho dele, mas apesar do fracasso comercial, Tati regressou ao cinema para fazer mais dois filmes que ficaram para a História do Cinema – «Trafic – Sim, Sr. Hulot» (1971) e Parade (1974). Hoje, mais de três décadas depois de ele morrer, o estranho mundo que Tati inventou continua a levar muita gente às salas de cinema.
Mas, olha, estava tão embalada que acho já contei mais do que devia. Vou ficar por aqui para não estragar a surpresa, se bem que, por mais que conte as aventuras de Jacques Tati ou do Sr. Hulot, nada, mesmo nada, nos prepara para os filmes dele.
Espero que gostes tanto como eu e aposto que os teus papás vão adorar revê-los contigo. Há mais de 60 anos que o Sr. Hulot diverte crianças e adultos. Os meus filmes preferidos são o «O Meu Tio», «Play Time» e as «As Férias do Senhor Hulot». Diz-me, depois, de qual ou quais gostaste mais. Ou até se nenhum deles é propriamente a tua praia, não fiques atrapalhada. 😜
Beijos e muitas saudades da tua titi ❤
Ficha biográfica:
- Nome completo: Jaques Tatischeff
- Nome artístico: Jaques Tati
- Profissão: realizador, argumentista e ator (durante a juventude, foi também jogador de rugby do Racing Club de France e, antes de entrar para o cinema, foi ainda mímico e comediante de boulevard).
- Nasceu: 9 de outubro de 1907, em Le Pecq
- Morreu: 5 de novembro de 1982, em Paris
Filmes
- 1947 – Escola de Carteiros (curta-metragem)
- 1949 – Há Festa na Aldeia
- 1953 – As Férias do Sr. Hulot
- 1958 – O Meu tio
- 1967 – PlayTime – Vida Moderna
- 1971 – Trafic – Sim, Sr. Hulot
- 1974 – Parada