O que há em comum entre uma história para dormir, um banho de mar, uma bússola misteriosa ou um disco de Bach? São tudo memórias de crianças que cresceram e protagonizaram grandes feitos na literatura, na ciência, na arte ou na política. Einstein, Frida Kahlo, Sophia ou Mandela nunca esqueceram os momentos mais felizes da infância. É das boas coisas que guardamos toda a vida e às quais podemos regressar sempre, mesmo nos períodos difíceis. Por isso, se ainda és criança, faz o impossível para seres feliz. E se és adulto, agarra-te às tuas boas recordações para fazeres feliz uma (ou muitas!) criança(s).
A montanha-russa de Qunu
Quem foi Nelson Mandela?
Nascido na aldeia de Qunu, Mandela deveria ocupar um cargo de chefia na sua tribo, mas, aos 23 anos, recusou esse destino e seguiu para a maior cidade da África do Sul, Joanesburgo. Estudou Direito e entrou na política, lutando pela liberdade dos negros. A rebeldia valeu-lhe 27 anos de prisão. É libertado em fevereiro 1990 e, quatro anos depois, torna-se no primeiro negro a ser eleito presidente da África do Sul. Todos temiam a sua terrível vingança contra os brancos, mas, em vez disso, Mandela lutou pela reconciliação do país: «O perdão liberta a alma, faz desaparecer o medo. Por isso, é uma arma tão poderosa.»
Uma memória feliz
A autobiografia «Um Longo Caminho para a Liberdade («Long Walk to Freedom») está cheia de histórias felizes que Nelson Mandela viveu na povoação onde nasceu. «Qunu fica num vale estreito e verdejante atravessado por riachos e cercado por colinas», escreveu Nelson Mandela na abertura de «Uma infância no campo», o 2.º capítulo do livro. Continuemos então a ler mais sobre a aldeia de Mandela, com «algumas centenas de pessoas» a viver em «cabanas de paredes de barro em forma de colmeia.»
«Não tinha mais de cinco anos quando me tornei pastor, cuidando de ovelhas e bezerros nos campos. Descobri o apego quase místico que o povo Xhosa tem pelo gado, não apenas como fonte de alimento e riqueza, mas como uma bênção de Deus e uma fonte de felicidade.»
«As colinas acima de Qunu eram pontilhadas por grandes rochas lisas que transformávamos na nossa própria montanha-russa. Sentávamo-nos em pedras planas e escorregávamos pelas rochas grandes. Fizemos isso até as nossas costas ficarem tão doridas, que mal podíamos sentar.»
«Aprendi a cavalgar sentando em cima de bezerros desmamados – depois de várias vezes atirado ao chão, apanhei finalmente o jeito.»
O primeiro voo de Tonio
Quem foi Antoine de Saint-Exupéry?
Escritor, ilustrador e aviador, Antoine de Saint-Exupéry ficou mundialmente conhecido com a única obra que escreveu para crianças – O Pequeno Príncipe. Quase todos os seus livros estão de alguma forma relacionados com a aviação. Pilotar aviões foi um gosto que ganhou asas nas férias escolares passadas no Castelo de Saint-Maurice-de-Rémens, da tia-avó Gabrielle Tricaud. Localizado na vila de Ain, a 40 km de Lyon, é neste lugar que estão os melhores momentos da sua infância e que marcam todo o seu trabalho, como admitiu várias vezes nas cartas escritas a amigos e família.
«De onde eu sou? Sou da minha infância como de um país.»
Piloto de Guerra (1942)
Uma memória feliz
Dos verões passados no castelo da tia-avó, o de 1912 foi o mais memorável. Todas as tardes, «Tonio» – como era tratado pelos irmãos e pela mãe – agarra na bicicleta e pedala até ao aeródromo Ambérieu-en-Bugey. Mecânicos e aviadores deixam-no ficar ali horas a fio a espreitar o interior dos aviões e a fazer perguntas: «como é que isto funciona?», «para que serve esta peça?», «para onde é que este já voou?». Numa dessas tardes, Tonio chegou a tremer de entusiasmo, assegurando ao piloto Gabriel Salvez que a mãe o autorizara a fazer o seu primeiro voo. Esse foi o dia em que fez o seu batismo no W2 bis (W de Wroblewski) 7.8, a aeronave construída em Villeurbanne pelos irmãos Pierre e Gabriel Wroblewski dit Salvez. De regresso ao castelo, mas ainda com a cabeça nas nuvens, Exupéry escreve este poema, dedicado à sua eterna paixão:
As asas tremeram sob a respiração da noite
O motor da sua música abalou a alma adormecida
O sol roçou contra nós com sua cor pálida.
Clica aqui se quiseres saber também mais sobre Saint Exupéry e O Principezinho.
O escritório do avô
Quem foi Sophia de Mello Breyner Andresen?
Sophia está entre os poetas portugueses mais importantes do século 20, mas também escreveu vários clássicos infantis, como «A Menina do Mar», «Fada Oriana», «O Cavaleiro da Dinamarca» ou «Rapaz de Bronze». De origem dinamarquesa pelo lado do pai, ela nasceu no Porto, dividindo a sua infância entre esta cidade e Lisboa. A Praia da Granja, em frente à Casa Branca, onde ela passou os verões, em Vila Nova de Gaia, é uma das memórias de infância e de juventude mais recorrente de Sophia, inspirando-a em boa parte da poesia e de obras como «A menina do Mar»:
«Era uma vez uma casa branca nas dunas, voltada para o mar. Tinha uma porta, sete janelas e uma varanda de madeira pintada de verde. Em roda da casa havia um jardim de areia onde cresciam lírios brancos e uma planta que dava flores brancas, amarelas e roxas.»
Mas é em Lisboa que estão as primeiras memórias felizes da infância, ligadas ao seu gosto pela música e também pela dança. Fiquem com o curto, mas belíssimo, excerto retirado da entrevista disponível no Espólio de Sophia da Biblioteca Nacional.
Uma memória feliz
«E quando eu era ainda muito pequena, quando estava em Lisboa, logo de manhã ia para o escritório do meu avô – que eram três grandes salas seguidas, cheias de livros, de quadros, de retratos, de mapas e de mil coisas misteriosas – um lugar onde eu entrava em bicos de pés – e o meu avô punha sempre a tocar um disco de Bach – talvez por isso a música de Bach foi sempre a que melhor entendi. E na Granja, à tarde, o José Ribeiro tocava violoncelo, nuns outonos de tardes oblíquas. E quando estava no Porto ia para Matosinhos para casa do Eduardo e do Ernesto Veiga de Oliveira e ouvíamos Das Lied von der Erde do Mahler, que nesse tempo ainda não estava na moda. E em casa do António Calém a música estava sempre no centro de cada encontro.»
Pousando no estúdio do pai
Quem foi Frida Khalo?
Considerada uma das maiores artistas plástica do México, ela cresceu com as três irmãs na Casa Azul, a moradia da família na Cidade do México, onde hoje está instalado o Museu Frida Kahlo. Aos seis anos, contraiu poliomielite e teve de passar nove meses na cama. A doença deixou graves sequelas, ficando a perna direita dela mais fina do que a esquerda, obrigando-a a coxear pelo resto da vida. O pai, Guillermo Kahlo, é a figura que esteve sempre presente nesse período difícil e durante toda a infância da artista. Foi ele quem incentivou «Frieducha» a praticar desportos para ajudar na sua recuperação. Ela jogava futebol, fazia natação e luta livre, atividades pouco comuns para raparigas daquela época.
Uma memória feliz
O pai é a recordação mais feliz da infância de Frida. Guillermo Kahlo, descendente de alemães, era fotógrafo e tinha um estúdio na Cidade do México para onde levava muitas vezes a filha, deixando-a explorar os cantos da casa, os filmes, os produtos e as máquinas fotográficas. Frida acompanhava-o também nos trabalhos que o pai fazia para a imprensa da época, ajudando-o depois a revelar as fotos no quarto escuro. Das longas horas passadas no estúdio, saíram os raros retratos que Guillermo foi tirando todos os anos à filha e que podes espreitar neste site.
Desde criança que ela aprendeu a pousar para a câmara do pai, olhando diretamente para a objetiva. Essa experiência viria, segundo os estudiosos da sua obra, a influenciar a sua pintura, principalmente os autorretratos que pintou vestida em trajes tradicionais.
A bússola que mudou a direção da ciência
Quem foi Albert Einstein?
Oriundo de uma família judaica, Einstein nasceu na cidade alemã de Ulm, mas deixou o país aos 17 anos para viver e estudar na Suíça. Voltaria já casado à Alemanha, mas, em 1933, mudar-se-ia definitivamente para os Estados Unidos para escapar ao regime nazi. Considerado o maior cientista dos últimos três séculos, a sua teoria da relatividade mudou o conhecimento sobre a Física e o Universo, originando novas conceções sobre o tempo, o espaço, a massa, o movimento e a gravidade. A sua famosa equação E = mc², onde c é a velocidade da luz, tornou-se fundamental para criar a energia atómica, mas ele defendeu sempre o uso da ciência para fins pacíficos.
Uma memória feliz
Einstein nunca esqueceu as semanas em que, com cinco anos, caiu na cama doente. A memória perdurou não por se sentir cansado e infeliz. Da doença nem sequer se lembra, pois esses foram os dias em que mais mimos recebeu da família, ganhando até um brinquedo que mudaria a sua vida. O pai, Hermann Einstein, trouxe-lhe uma bússola magnética que o deixou entretido dias a fio. Albert agitava o aparelho, atirava-o pelo ar, colocava-o em cima, em baixo, pendurado nos dedos ou asfixiado na almofada. Tentava enganar a agulha, mas ela encontrava sempre o caminho para o norte magnético. «Que maravilha!» – Pensou ele, intrigado com a força invisível que guiava o ponteiro da bússola.
Muitos anos mais tarde, já era ele famoso pela sua Teoria da Relatividade Geral, escreveria no livro «Out Of My Later Years»:
«Lembro-me ou pelo menos creio que me lembro que essa experiência me causou uma impressão profunda e duradoura. Devia haver algo escondido nas profundezas das coisas.»
Começava assim, aos cinco anos, a aventura de Einstein, que o levaria a revolucionar as áreas de conhecimento como a Matemática, a Física quântica, a cosmologia ou a mecânica.
«Não tenho um dom especial. Sou apenas apaixonadamente curioso.»
Sair de madrugada e mergulhar no mar
Quem foi Clarice Lispector?
Foi uma escritora e jornalista, que nasceu na Ucrânia e viveu no Rio de Janeiro. Escreveu romances, contos e ensaios e é considerada uma das autoras brasileiras mais importantes do século 20. O excerto que aqui se reproduz é da crónica «Banhos de Mar» e faz parte da coletânea de crónicas reunidas no livro «A Descoberta do Mundo», publicada pela editora Relógio de Água.
Se quiseres, podes ler o texto completo aqui.
Uma memória feliz
«Meu pai acreditava que todos os anos se devia fazer uma cura de mar. E nunca fui tão feliz quanto naquelas temporadas de banhos em Olinda, Recife.
Meu pai também acreditava que o banho do mar salutar era o tomado antes do sol nascer. Como explicar o que eu sentia de presente inaudito em sair de casa de madrugada e pegar o bonde vazio que nos levaria para Olinda ainda na escuridão? De noite eu ia dormir, mas o coração se mantinha acordado, em expetativa. E de puro alvoroço, eu acordava às quatro e pouco da madrugada e despertava o resto da família. Vestíamos depressa e saíamos em jejum. Porque o meu pai acreditava que assim devia ser: em jejum.
Saiamos para uma rua toda escura, recebendo a brisa da pré-madrugada. E esperávamos o bonde. Até que lá longe ouvíamos o seu barulho se aproximando. Eu me sentava bem na ponta do banco: e a minha felicidade começava. Atravessar a cidade escura me dava algo que jamais tive de novo. No bonde mesmo o tempo começava a clarear e uma luz trêmula de sol escondido nos banhava e banhava o mundo.
(…)
Eu não sei da infância alheia. Mas essa viagem diária me tornava uma criança completa de alegria. E me serviu como promessa de felicidade para o futuro. Minha capacidade de ser feliz se revelava. E eu me agarrava, dentro de uma infância muito infeliz, a essa ilha encantada que era a viagem diária.»
Fantasias macabras ao final de tarde
Quem foi Agatha Christie?
Nascida em Torquay, cidade britânica nas margens do Canal da Mancha, Agatha Christie é considerada a autora mais vendida de todos os tempos. Os 66 romances policiais e 14 coletâneas de contos publicados ao longo da vida venderam mais de mil milhões de exemplares em todo o mundo. No meio de toda a espécie de criminosos, revelados no fim de cada livro, as cozinheiras e as empregadas nunca estiveram entre os suspeitos. Querem saber porquê? Agatha seria incapaz de trair as suas grandes companheiras da infância.
Uma memória feliz
Livros e histórias estão em todas as recordações felizes da infância de Agatha Christie. Ela nunca se esqueceu dos contos e aventuras que a mãe lhe lia todas as noites antes de adormecer. Mas ela também guardou para sempre as histórias macabras que Madge, a irmã mais velha, inventava sobre uma outra irmã imaginária, que, além de louca, tinha poderes sobrenaturais. As duas passavam as tardes a fantasiar histórias com muito crime e mistério à mistura, acabando por despertar o talento de Agatha Christie para a literatura policial.
Aproveita esta viagem pela infância para conheceres também a história do Dia Mundial da Criança
Crédito das imagens:
Desenho de Sofia de Mello Breyner Andresen – Bottelho -Botelho / CC BY-SA 3.0
Retrato de Frida Khalo em criança – Guillermo Kahlo, 1932, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons
Retrato de Agatha Christie quando adulta – Torre Abbey / CC BY SA 3.0