Se não há acidentes nem obras por perto, por que estão os carros parados? É difícil entender o que empata o trânsito quando não existem obstáculos à circulação. Para um automobilista, poucas coisas são tão irritantes como demorar 10 ou 15 minutos no pára-arranca e, depois, sem mais nem menos, retomar a velocidade normal. A cena é de tal modo frequente que os especialistas deram um nome a esse fenómeno – engarrafamentos-fantasmas.
Para entender porquê e como isso acontece, o Bicho-Que-Morde meteu-se na boca do lobo. Entrou no seu carocha amarelo e seguiu pela via mais movimentada das redondezas. A estrada tem duas faixas, o limite de velocidade é de 90 km/h e o trânsito flui como uma corrente em movimento contínuo. Tudo corre de feição até um condutor, no corredor ao lado, se esgueirar para a faixa dele sem sequer fazer pisca.
O Bicho-Que-Morde é subitamente obrigado a desacelerar para evitar um choque. Apanha um susto, mas em poucos segundos retoma a velocidade e chega a casa sem enfrentar nenhum daqueles engarrafamentos que acontecem do nada e põem tanta gente de mau humor logo pela manhã.
O que ele nem desconfia é que aquela travagem repentina deu início ao que os engenheiros do tráfego chamam de efeito onda no trânsito. Todos os carros que seguiam atrás, não só na faixa dele como na outra, reduziram também a marcha.
À medida que se recuava na estrada, mais lenta ficava a circulação, até o trânsito parar completamente, imaginem só, a mais de dois quilómetros de distância do local onde começou toda a confusão.
Um único aselha atrapalha mil condutores
Basta um único automobilista
desacelerar a marcha
para desencadear um
efeito em cadeia e fazer parar o trânsito
A estrada é o exemplo perfeito de como o que cada um faz tem impacto na vida de todos. Mas de nada vale culpar o aselha que cometeu o erro. Os restantes automobilistas também têm a sua quota de responsabilidade.
Evitar engarrafamentos-fantasmas seria muito mais fácil se cada condutor respeitasse a distância de segurança uns dos outros (que varia consoante a velocidade, o estado do piso, as condições climatéricas ou a visibilidade na estrada). Este é o conselho dos investigadores que estudam esse fenómeno.
O problema é que, na estrada, os carros estão sempre muito juntinhos. Quanto mais curto é o espaço entre eles, mais dependentes ficam das travagens dos automóveis que seguem à frente. Se estivessem mais distantes uns dos outros, poderiam reduzir a velocidade aos poucos e com maior antecedência.
Uma condução cuidadosa e atenta é não só a melhor maneira de evitar acidentes como perdas de tempo. Dois minutos parados aqui ou três minutos acolá parecem insignificâncias, mas fazem muita diferença na hora de somar tudo.
Com o conta-quilómetros parado
O que fariam os condutores
se pudessem aproveitar o tempo que todos os dias desperdiçam na estrada?
Só ao juntar todos os minutinhos, percebermos o tempo que se desperdiça na estrada. O índice de Tráfego Global Anual que a marca de GPS Tom Tom fez em 2017 mostra que, em Braga, os automobilistas passam em média 17 minutos no pára-arranca. No Funchal é um pouco pior (20 minutos) e, no Porto, então, é um disparate de tempo perdido, 31 minutos.
Mas é Lisboa que ultrapassa todos os recordes das cidades portuguesas: 40 minutos por dia. Ao fim de um ano são 154 horas, ou seja, seis dias e meio. Dá vontade de perguntar a cada condutor o que fariam se pudessem fazer marcha atrás e aproveitar esse tempo. Ficar mais um pouco na cama de manhã era o que o Bicho-que-Morde faria. Só que 40 minutos por dia para fazer o que nos desse na telha daria para muito mais. É só dar fôlego à imaginação.
Em 40 minutos, somos capazes, por exemplo, de ler entre 7200 e 8800 palavras de um livro. Segundo os dados da UNESCO, uma pessoa consegue ler em média entre 180 e 220 palavras por minuto. E 40 minutos chegaria também para fazer uma viagem de comboio entre o terminal do Rossio, em Lisboa, e a estação da vila de Sintra, com paragens em todos os apeadeiros da linha.
O tempo que os lisboetas passam dentro dos carros dava ainda para passar 40 minutos pelas brasas todas as tardes. Essa é a duração da sesta perfeita, dizem os especialistas. O suficiente para recuperar energias após o almoço, facilitar a aprendizagem, aumentar a capacidade de resolver problemas e acabar com qualquer mau humor.
O pior engarrafamento durou nove dias
A China detém o recorde
do mais longo engarrafamento
com 10 mil camiões presos em filas que chegaram aos
120 quilómetros
Não faltam ideias para aproveitar o tempo perdido no trânsito. Mas, se meia-hora ou três quartos de hora bloqueado na estrada é um absurdo, o que dizer do pior engarrafamento de que há memória? Aconteceu em agosto de 2010, numa autoestrada entre uma região autónoma da Mongólia e uma província da região de Pequim, na China. Durou nove dias, atingiu filas de 120 km e aprisionou mais de 10 mil camiões e outros carros que só conseguiam avançar entre mil e três mil metros por dia.
Tudo por causa de obras de manutenção e de construção de estradas. Os trabalhos reduziram para quase metade a capacidade rodoviária da Autoestrada Nacional 110, já de si constantemente entupida pelo excesso de camiões a transportar todos os dias até Pequim milhares de toneladas de carvão retiradas das minas da Mongólia.
Para piorar, a estrada mais engalinhada ficou com os motores dos carros sobreaquecidos a pifarem a toda a hora, deixando os condutores presos durante dias a fio. Houve gente que só saiu ao fim de três dias, outros passados cinco dias. Durante esse tempo não tiveram remédio senão dormir nos carros e matar o tempo a jogar ao mahjong.
O maior problema foi na hora de comer. Sem restaurantes ou mercearias por perto, os condutores ficaram à mercê dos vendedores ambulantes. Assim que eles viram as notícias na televisão, atafulharam as suas bicicletas de comida e pedalaram até aquela via para vender noodles instantâneos, ovos cozidos ou garrafas de água pelo triplo do preço.
Só ao fim do nono dia é que o caminho foi ficando, a pouco e pouco, menos obstruído, com os outros condutores a escolherem vias alternativas. Os que estavam na autoestrada 110 puderam finalmente circular e chegar a casa a tempo de jantar com as famílias.
Parar, respirar e pensar
As rotinas, por vezes, nem
deixam um minuto para respirar fundo e perguntar se fazem algum sentido
É um caso extremo que aconteceu no outro lado do planeta. Ainda assim, dá que pensar no que também andamos a fazer deste lado. As rotinas, por vezes, são tão sufocantes que não deixam sequer um minuto para respirar fundo e perguntar se fazem sentido. Podemos repetir os mesmos hábitos, os mesmos gestos e os mesmos caminhos, dia após dia, sem nos darmos conta dos estragos que provocam.
É mais ou menos o mesmo quando nos sentamos sempre tortos no sofá e, ao fim de um tempo, as costas e os rins começam a doer. Ou quando bebemos refrigerantes ou comemos guloseimas quase todos os dias sem reparar que estamos a ficar gordinhos e pouco saudáveis.
Mas os maus hábitos não podem durar para sempre. Assim como há vícios que eliminamos pela nossa saúde, também há mudanças a fazer nas nossas rotinas pelo bem-estar de todos e do planeta. Que tal começarmos por exigir cidades com menos automóveis e mais corredores para autocarros e elétricos? Com mais árvores, parques, bicicletas e passeios largos?
Merecemos todos viver em cidades com o ar fresco e tempo para espreguiçar numa esplanada ou num um jardim. Nem que seja por apenas 30 ou 40 minutos de manhã ou ao final da tarde. Não é mil vezes melhor do que estar num automóvel super-rápido que não sai do mesmo lugar?