Toda a gente sabe que um bom companheiro é quem está presente quando é preciso. Neste aspeto, os livros ganham em todas as frentes. Na praia, no jardim, no autocarro, sentado connosco na sala de espera do dentista e até na casa de banho, não lhe faz diferença nenhuma. Não é qualquer um, evidentemente. Com tantos livros – mais até do que o pó das bibliotecas –, a maioria nem sequer é grande coisa como companhia. Mas a vantagem de eles serem muitos é que os bons são suficientes para assegurar que não vamos ficar sozinhos até sermos velhinhos, muito velhinhos.
Que os cinéfilos não levem a mal, mas os livros são muito melhores do que os filmes. Não precisamos de de imagens 3D para sentir o sol na cara, o frio nos ossos, as pulsações aceleradas ou arrepios na espinha. Nem de um ecrã para ouvir a voz do narrador ou do protagonista a tremer, a gritar, a rir, a suspirar ou a chorar. As páginas de um bom livro são capazes de provocar tudo isso e muito mais.
Com um beijo, a Manhã apaga cada estrela enquanto prossegue a caminhada em direção ao horizonte.
O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, Uma História de Amor, de Jorge Amado
Não é numa tela gigante que tudo acontece. É dentro da cabeça. Rimo-nos sozinhos, sentimos os passos no soalho, as folhas secas, a lenha a crepitar na lareira, ouvimos confidências, fechos a correr, água a pingar, janelas a abrir, vemos no escuro e no nevoeiro, salivamos com a comida, sofremos ao lado dos personagens e esquecemos que estamos na praia, na varanda, à espera do comboio ou… sentados na sanita.
No sopé da montanha, o Gigante parou. Ofegava ruidosamente. O seu amplo peito descia e subia. Estava a recuperar o fôlego.
GGG – O Grande Gigante Gentil, de Quentin Blake e Roald Dahl
Não é somente por o livro ter um tamanho maneirinho que é um bom companheiro – cabe dentro da mochila, vai bem debaixo do braço e, com jeitinho, alguns entram no bolso do traseiro das calças. Nem é só porque as histórias são viciantes, ao ponto de esquecermos tudo à volta. É também – ou é principalmente – pelas palavras que cada autor escolhe para contar uma história.
Nos livros bons, há palavras no meio da história que se acendem como relâmpagos e iluminam frases inteiras…
Olhar pelas tirinhas do estore mal fechado e imaginar o dia de sol que anda lá por fora.
Rosa, Minha Irmã Rosa, de Alice Vieira
Os búzios têm muito bom ouvido, ouvem tudo, são os ouvidos do mar.
A Menina do Mar de Sophia de Mello Breyner Andresen
Quase me esquecia de dizer que tens de fechar os olhos. Caso contrário, não conseguirás ver nada.
Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll
Há frases e parágrafos inteiros que parecem escritos de propósito para nós.
As pessoas crescidas nunca percebem nada sozinhas e torna-se cansativo, para uma criança, estar constantemente a explicar-lhes tudo.
O Principezinho, de Antoine de Saint-Exupéry
Como entender que sob a casca grossa, sob o pelo eriçado do Gato pulsava um terno coração?
O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá
Há muita gente a colecionar frases inteiras retiradas dos livros. É um passatempo estranho porque não é possível extrair bocadinhos do livro e arrumá-los nas prateleiras como se fazem com os carrinhos, os gatinhos, os mochos ou os porquinhos em miniatura. As frases estão nas estantes, sim, mas cada qual no seu livro.
Umas sublinhadas a marcador e outras a lápis ou a caneta. Cada colecionador tem o seu próprio método e tu também terás de descobrir o que mais te convém. Quem sabe se não és dos que andam sempre com um bloco de notas atrás? Esses são, de facto, os mais organizados. Estão preparados para guardar frases e palavras a qualquer momento, podendo também a recuperá-los a qualquer momento.
Sim, porque um caçador de frases é constantemente apanhado desprevenido. Não é algo que se planeie do género: hoje vou comprar uma carteirinha de cromos para ver o que me vai sair. É perfeitamente plausível estar mergulhado na leitura, durante páginas e páginas e páginas, e, de repente, os olhos fixarem uma palavra, um diálogo, uma frase ou um parágrafo. E demoram-se por ali, sem pressa de seguir em frente.
Ou é por serem simplesmente belas:
Acredito em 6 coisas impossíveis ainda antes do pequeno-almoço.
Alice no País das Maravilhas
Ou por nos lembrarem o que é verdadeiramente essencial:
Quando olhas para o infinito, percebes que há coisas mais importantes do que aquelas que as pessoas fazem todos os dias.
Calvin e Hobbes, de Bill Watterson
Ou por serem tão enigmáticas que precisamos de lê-las uma e duas e três e mais vezes:
Não posso voltar para o ontem porque nesse lugar eu era outra pessoa.
Alice no País das Maravilhas
Ou tão diretas que não precisamos de mais nada:
Ou tristes, mas ao mesmo tempo poéticas:
A música doía-lhe no coração.
O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá
Ou cruéis e, ao mesmo tempo, muito cómicas:
A vida é cheia de surpresas, mas nunca quando precisas de uma.
O mundo não é justo, eu sei, mas porque é que ele nunca é injusto a meu favor?
Calvin e Hobbes
Ou tão absurdas que fazem sentido:
_ A que sabem as pessoas das Bermudas? – quis saber Sofia.
_ A calções – respondeu o Gigante.
_ Devia ter calculado – disse Sofia.
GGG – O Grande Gigante Gentil
Ou, então, por estranha coincidência, fazem sentido naquele específico momento:
É loucura odiar todas as rosas porque uma te espetou.
O Principezinho
Ou, muitas vezes, entram fundo e ficam a palpitar:
Na terra há tristeza dentro das coisas bonitas.
A Menina do Mar
E quantas vezes despertam o mais íntimo que há em nós.
As frases dos livros são achados maravilhosos a brilhar no meio, no princípio ou no fim das páginas. Mas o que brilha, na verdade, não são as palavras. É o cérebro.
«O meu cérebro quer matar-me!»
Calvin e Hobbes
Os neurocientistas dizem que a leitura ativa, principalmente, o hemisfério esquerdo do cérebro, que é o da linguagem e também o mais habilitado para analisar tudo o que vemos, lemos, ouvimos ou sentimos.
Mas há muitas outras áreas que se acendem nos dois lados do cérebro quando estamos a ler. Decodificar as letras, as palavras e as frases, transformando-as em sons e imagens, provocam verdadeiras tempestades em vastos territórios do córtex cerebral.
Os córtices occipital e temporal são instantaneamente convocados para captar e reconhecer o significado das palavras. O córtex frontal motor vai despertando à medida que formamos mentalmente os sons das palavras lidas. E tanto hipocampo como o lobo temporal medial fervilham de cada vez que a leitura reaviva as memórias que julgávamos perdidas no nosso passado.
As histórias, ou melhor, os alvoroços que elas transportam, ativam a amígdala e outras áreas emocionais do cérebro. As reflexões e os pensamentos soltos que surgem com a leitura estimulam também o córtex pré-frontal e a memória de trabalho que, no dia-a-dia, é usada para resolver problemas, planear ações futuras e tomar decisões. Está provado que o uso frequente dessa parte do cérebro desenvolve o raciocínio.
Mas a leitura vai muito além da inteligência, avisam os cientistas, recordando também a sua especial importância para desenvolver habilidades sociais que nos permitem compreender e aceitar os outros, além de reduzir o stress.
Entrar de cabeça numa aventura literária é muito mais estimulante do que um videojogo, asseguram os psicólogos. Mas é também como um jogo de faz-de-conta em que experimentamos outras vidas, exploramos outros lugares e descobrimos partes desconhecidas de nós próprios.
– Os países distantes são maravilhosos – diziam as andorinhas.
A Fada Oriana
Tudo aquilo que dizemos dos nossos melhores companheiros, podemos também dizer dos nossos livros:
Eu não preciso de ti. Tu não precisas de mim. Mas, se tu me cativares, e se eu te cativar, ambos precisaremos um do outro.
O Principezinho
Nada como tornar o dia das pessoas surreal.
Calvin e Hobbes
Assim que te vi, soube que as melhores aventuras estavam por vir.
Winnie The Pooh, de Alan Alexander Milne