O bacalhau, que, ao longo de séculos, já nos deu tanto, está a precisar da nossa ajuda. Não podemos mais comê-lo de 1001 maneiras se quisermos que continue na mesa portuguesa. A moderação é, por isso, a melhor homenagem aos bacalhoeiros que viajaram ao fim do Mundo para trazê-lo até ao nosso prato.

Do Galo de Barcelos, ao Zé Povinho, do fado ao caldo verde, do pastel de nata ao azulejo, são muitos os símbolos nacionais que deixam os portugueses inchados de orgulho. Mas o bacalhau será sempre o primeiro. Foi por ele que os pescadores enfrentaram o medo e viajaram até às águas geladas da Terra Nova, no Mar do Norte, trazendo-o, na década de 1930, para o nosso prato. A partir daí, foi um fartote. Abusámos dele de 1001 maneiras, à Brás, à Gomes de Sá, à Zé do Pipo, à Minhota, ao Lagareiro ou simplesmente com grão, azeite e salsa picada…. Tão bom!

Mas agora chega. O bacalhau não aguenta mais. Está prestes a desaparecer.

Os estudos mais recentes alertam para o perigo de as reservas do mar de Barents, no norte da Noruega – do qual vem o bacalhau mais consumido em Portugal -, poderem cair até zero antes do final do século. A pesca desenfreada é um dos grandes responsáveis. As organizações ambientais dizem que este peixe tem sido retirado do mar antes sequer de conseguir reproduzir. Mas as alterações climáticas também estão a dificultar-lhe a vida. O aumento da temperatura das águas do mar está a interferir com a desova, limitando o nascimento e o desenvolvimento dos bebés bacalhaus, que, em condições ideais, chegariam a pesar 60 quilos e a atingir os dois metros.

O contributo português para salvar o bacalhau

Bacalhau
© Museu Marítimo do Ílhavo, arquivo Alan Villiers

  
Somos o país que mais pode lutar pela sobrevivência do bacalhau, reduzindo o seu consumo aos dias de festa.
 

O bacalhau que, ao longo de séculos já nos deu tanto, está a precisar da nossa ajuda. Ou pelo menos que o deixem sossegado nas águas do Atlântico Norte. Perguntam vocês, agora, o que é que um país pequeno como o nosso poderá fazer por ele? Se calhar, as grandes potências como a China, os Estados Unidos, a Noruega ou a Alemanha poderiam fazer muito mais do que nós. Que podem fazer muito, lá isso é verdade, começando desde logo por fiscalizar a pesca ilegal em todos os oceanos. Mas não se desvalorize o poder do povo português na luta pela sobrevivência do bacalhau.

É que, sendo Portugal habitado por pouco mais de 10 milhões, é aqui que, segundo as contas do Conselho Norueguês dos Produtos do Mar, se consome 20% de todo o bacalhau no mundo. Vale a pena recordar, já agora, que a Alemanha tem 83 milhões de habitantes, a China 1,3 mil milhões e os Estados Unidos 328 milhões. Há outros lugares, como o País Basco ou a Itália, que também gostam muito dele, mas ninguém supera o nosso apetite.

No total e, ao final do ano, comemos cerca de 50 mil toneladas de bacalhau seco, dos quais 70% vem da Noruega.

Está visto que, boa parte da solução terá de passar pelas nossas mãos (ou melhor, boca!). Estaremos nós condenados a viver para sempre sem o nosso rico bacalhau? Não é preciso chegar a tanto, mas convém mesmo passar de oitenta para oito. Que é o mesmo que dizer, de mais de uma vez por mês – como faz atualmente 62% da população – para uma vez por ano. Na ceia de Natal, por exemplo, para manter a tradição e matar a saudade do melhor sabor português. Se todos conseguissem fazer isso, os números desceriam dos tais 50 mil para quatro toneladas, que é a quantidade que levamos para casa durante a quadra natalícia. Seria uma grande contribuição para a preservação da biodiversidade marítima.

O mesmo deveriam fazer, aliás, mais povos virados para outras espécies. À conta da mania do sushi entre os japoneses, por exemplo, a população de atum-rabilho teve uma quebra de 96% no norte do Pacífico. Pequenas espécies de tubarão e raias estão, do mesmo modo, a sair em doses industriais das águas da África do Sul para o típico prato de fish and chips de ingleses e australianos.

Epopeia trágico-marítima no fim do Mundo

Bacalhau
© Museu Marítimo do Ílhavo, arquivo Alan Villiers

 
Foi nos Descobrimentos que os portugueses acharam por engano a Terra Nova do Bacalhau.
 

Temos de comer menos peixe de mar, no geral, e menos bacalhau, em particular. Mas apreciá-lo mais ainda como um luxo em dias de festa. Não será por isso que deixaremos cair um símbolo nacional. Nem poderíamos. Nada nem ninguém pode apagá-lo da nossa História. O início da pesca do bacalhau, entre os portugueses, é tão antigo quanto a epopeia dos Descobrimentos. Terá sido por mero engano que os navegadores, na viragem do século XV para XVI, se depararam com um novo Mundo. Buscavam a contracosta das Índias, quando acharam a Terra Nova dos Bacalhaus.

É isso que defendem os investigadores, embora a pesca organizada em campanhas e expedições só tenha começado a sério a partir dos anos de 1930. É nesse período que o bacalhau se torna num desígnio nacional com as capturas a subirem de 11%, em 1934, para os 70%, em 1960. Eram tempos de abundância nos oceanos, mas também de ausência de leis que hoje limitam a pesca com quotas internacionalmente estipuladas todos os anos.

Nessa época, os pescadores de norte a sul do país, mas principalmente de Vila do Conde, de Ílhavo, da Figueira da Foz, ou da Fuzeta, em Olhão, partiam em bacalhoeiros durante longas jornadas, subindo acima do círculo polar Ártico para pescar nas terras do fim do mundo. Eram vidas duras, as dos pescadores, chegavam a trabalhar 20 horas, a tremer de frio, enchendo os porões à pressa antes de as águas da Gronelândia congelarem. Muitos lançaram-se sozinhos em botes, deixando os navios para pescar à linha e perderem-se na neblina. Quem conta bem estas histórias é o escritor e dramaturgo Bernardo Santareno na coletânea de crónicas publicadas com o título «Nos Mares do Fim do Mundo». São grandes epopeias trágico-marítimas carregadas de superstições, motins, desespero e fadiga.

A terceira oportunidade da Natureza

Bacalhau
© Museu Marítimo do Ílhavo, arquivo Alan Villiers

 
O bacalhau esteve em declínio na década de 1970, recuperando após 30 anos de limitações à sua pesca.
 

Esse é o pedaço da História que o bacalhau nos deixou como legado. Por mais que seja urgente afastá-lo agora do nosso prato, não dá para largá-lo nas águas do esquecimento. Seria até uma ofensa à memória dos bacalhoeiros. Mas deixemo-lo em paz. Pode ser que ele regresse em força daqui a uns anos. Não seria a primeira vez. As populações de bacalhau do Mar do Norte começaram a entrar em declínio entre 1970 e 2006. Nessa altura, foi preciso um ambicioso programa internacional para recuperar a espécie para níveis sustentáveis.

A pesca foi proibida ou bastante limitada em certas alturas do ano e, ao fim de três décadas, eles quadruplicaram o número. Só que o seu consumo disparou logo a seguir, com os peixes a ficarem outra vez em perigo a partir de 2017. Já sabemos, pela experiência do passado, o que é preciso fazer. A Natureza tem essa capacidade espantosa de se regenerar se lhe for dada uma oportunidade. Há, por isso, esperança de que o bacalhau regresse à mesa portuguesa. Mas sempre com moderação, não se esqueçam, para a História não se repetir.

 🤩A propósito de grandes epopeias, sabias que as Mulheres também fizeram os Descobrimentos?