Abdul Sattar Edhi tem mais de 20 mil filhos. Como é isso possível? Bem, ele não é o pai biológico, mas registou-se como o tutor dessas crianças. Os orfanatos espalhados pelo Paquistão são uma das muitas missões da Fundação Edhi. Mas, o que o tornou conhecido no país são as 1500 ambulâncias que todos os anos socorrem um milhão de doentes e feridos que não têm como pagar pelos cuidados médicos. Pode até parecer que Abdul é um multimilionário. Só com uma grande fortuna poderia abrir hospitais, refeitórios, albergues ou centros de reabilitação. Mas não, tudo o que conseguiu foi a mendigar nas ruas de Karachi.
Mithadar é um lugar barulhento, como muitos outros bairros à volta da cidade de Saddar. De dia ou de noite, há vendedores de fruta e legumes, moradores a entrar e a sair de prédios com os tijolos e os cabos elétricos à mostra e ainda buzinas que se ouvem da estrada poeirenta. Adbul habituou-se ao bulício e até consegue dormitar à porta do centro médico.
É ali que ele passa as noites à espera dos que precisam de cuidados médicos. São mendigos, crianças, homens e mulheres que não podem pagar os tratamentos e medicamentos. Boa parte deles é do bairro, mas outros vêm de diferentes pontos da cidade e até da área metropolitana de Karachi, no Paquistão. O centro de Abdul está sempre aberto, contando com a ajuda de meia dúzia de médicos e enfermeiros voluntários.
Ainda antes de abrir o seu próprio centro, na década de 1950, Abdul trabalhou com os Memon, uma comunidade religiosa que também cuida da população pobre. Tratou dos doentes durante meses, mas, ao fim de um tempo, percebeu que a porta se fechava quando um não muçulmano pedia ajuda.
_ Porque não recebemos todos? – Perguntou um dia a um dos líderes.
_ Cuidamos apenas dos muçulmanos.
_ E os outros?
_ Não conseguimos tratar de todos, como tal, tratamos dos nossos.
_ Isso não faz sentido!
_ São as nossas regras. Tens de perceber isso se quiseres continuar connosco.
Abdul não percebeu e acabou por deixar a Fundação Memom para abrir um centro médico para crentes de qualquer religião ou não crentes em nenhuma religião. Como não tinha um tostão no bolso, andou pelas ruas da cidade, pedindo dinheiro nas estradas, de porta em porta, de loja em loja.
O primeiro centro médico
Abdul dormitava num banco, à espera de quem não tinha como pagar pelos cuidados médicos
Quem passava por ele, barbudo e vestido com uma velha túnica, julgava ser mais um pedinte, como tantos a encher as ruas de Saddar. Mas foi assim que juntou o suficiente para abrir o centro médico e comprar os medicamentos. A notícia espalhou-se depressa e Abdul conseguiu também a ajuda de médicos e enfermeiros para manter o centro aberto 24 horas por dia.
Os memons é que não apreciaram nada o atrevimento de Addul. Houve quem espalhasse boatos de que era um homem sem fé e, como tal, de caráter duvidoso. Addul tentou ignorá-los, mas os voluntários do seu centro avisaram-no de que muitos deles nunca o deixariam em paz.
_ Tens de te afastar por uns tempos – avisou um dos médicos a trabalhar com ele.
_ E o centro?
_ É só por uns tempos até a poeira assentar. Na tua ausência, cuidaremos nós das pessoas, não te preocupes.
Abdul deixou de aparecer, mas continuava inquieto. Sabia que o seu centro era demasiado pequeno para enfrentar uma organização poderosa. A solução era tornar o seu trabalho maior, mas para isso precisaria de mais dinheiro e mais gente disposta a trabalhar com ele sem querer nada em troca.
Em vez de se esconder em casa, Abdul partiu, mendigando por pratos de comida, dormindo nas ruas e juntando moedinhas para apanhar comboios e barcos que o levaram para paragens mais distantes. O plano era conhecer o que faziam os outros países para cuidar dos pobres, sobretudo na Europa, que acabara de sair da Segunda Guerra Mundial.
Foi assim que chegou a Londres, capital do Reino Unido, onde trabalhou como funcionário em centros de saúde e conheceu o Welfare State. O sistema, também conhecido na Europa como Estado Social ou Estado Providência, tem como objetivo assegurar que tanto ricos como pobres tenham direito aos mesmos cuidados e serviços básicos, como hospitais, escolas, casas ou comida.
Os 20 mil filhos de Abdul
Os orfanatos da Fundação já acolheram mais de 35 mil crianças. Abdul é o pai das que não foram adotadas
No regresso ao Paquistão, Abdul já sabia o que queria: com o dinheiro dos que podiam pagar, levaria os cuidados médicos aos que não tinham como pagar. Os donativos conseguidos nas ruas de Saddar levaram-no a montar um campo de tendas para centenas de pessoas que adoeceram durante a epidemia da gripe asiática de 1957.
O trabalho feito nesse acampamento tornou Addul Edhi popular por todo o Paquistão. Não só mais médicos e enfermeiros se juntaram a ele, como também ganhou a primeira grande doação. O dinheiro, oferecido por um empresário da comunidade Memom, serviu para comprar uma velha carrinha que ele converteu numa ambulância, a primeira de uma frota que hoje conta com 1500 veículos.
As ambulâncias Edhi socorrem doentes e feridos que nunca chegariam aos hospitais, mas não é o único serviço que a sua fundação presta. Abdul treinou mais de 40 mil enfermeiros, abriu lares para doentes mentais, orfanatos para crianças, centros de reabilitação para toxicodependentes, albergues para mulheres abandonadas, cozinhas comunitárias ou abrigos para animais.
A obra dele é a maior organização social do Paquistão. As ambulâncias Edhi transportam um milhão de doentes por ano e a fundação gere mais de 300 centros de assistência social por todo o país. Abdul já acolheu 35 mil crianças órfãs e encontrou uma família para cerca de metade delas. As restantes foram adotadas por ele e vivem nos centros da fundação.
Até bem perto de morrer, em 2016, com 88 anos, Abdul não só continuou a conduzir as suas ambulâncias como a visitar todos os dias os seus orfanatos. Foram sempre dias de muita barulheira com a criançada a pular e a subir para o colo dele. Tal como o Pai Natal rodeado de miudagem a brincar com as suas barbas brancas. Só que Abdul Edhi é mil vezes melhor – sem ofensa para o Pai Natal. Afinal, ele não se limitava a aparecer uma vez por ano nem tão pouco precisava de brinquedos para conquistar as crianças.
NASCEU EM: Banta, Gujrat, Índia, em 1928 (dia e mês desconhecidos)
MORREU EM: Karachi, a 8 de julho 2016 e foi sepultado na aldeia Edhi
ALCUNHAS: Anjo de Misericórdia, o homem mais rico dos pobres
Fontes consultadas
Fundação Edhi | The Hindu | The Telegraph | The Guardian | Wikipédia |