Franz Kafka morreu com a fama de homem sombrio e angustiado. Feitio que nada combina com o que se passou no verão de 1923. Esta é a história de como o escritor checo ajudou uma criança desconhecida a ultrapassar a perda da sua única boneca. Mas também a história de como os rótulos são para os produtos e não se colam às pessoas. E, por fim, uma história inacabada, que qualquer um pode completar.
Com os dias de sol a aquecer, cada vez mais, o verão da cidade de Berlim, Franz Kafka saía todas as tardes para dar algumas voltas no parque de Steglitz. Eram passeatas curtas, muitas vezes com a companheira Dora, só mesmo para encher os pulmões de ar fresco, antes de se encafuar no quarto e recomeçar a escrever.
Num desses passeios, um choro miudinho arrastou a atenção dele para um banco do jardim. Uma criança de trancinhas escuras soluçava ao mesmo ritmo das lágrimas, a correr como dois rios pela cara. Franz aproximou-se dela, pousou a mão no ombro e perguntou o que se passava.
_ Perdi a única boneca que tinha! – balbuciou a rapariga, aumentando, logo de seguida, os decibéis do choro para níveis audíveis em quase todo o parque.
Franz ficou atrapalhado com o súbito berreiro. E ali, naquele momento, improvisou uma história para a sossegar.
_ Não fiques triste, por favor. Ela não está perdida, não te preocupes.
_ Como é que sabes?
_ Sei porque ela deixou comigo uma carta para te entregar quando já estivesse longe.
_Uma carta? Qual carta? E de onde te conhece ela? – perguntou a rapariga, que, entretanto, parara de chorar, mas franzia o sobrolho meio desconfiada.
_Peço desculpa pela minha falta de educação. O meu nome é Franz Kafka e sou o carteiro das bonecas.
_ Sério?
_ Claro que sim. Trago-ta amanhã a esta hora, se voltares ao parque.
Comprometido com a mentira, Kafka escreveu, nessa mesma noite, uma carta em nome da bonequinha. E, como combinado, voltou ao parque no dia seguinte. Ao ver a rapariga a balouçar as pernas no mesmo banco, abriu um sorriso e estendeu-lhe um envelope lacrado.
A partir daí, todos os dias e, durante três semanas, o escritor entregou pontualmente as cartas da boneca à rapariga.
Cada uma, com uma nova aventura e também com um selo diferente, de Paris, de Praga, de Barcelona, Londres, Tóquio, de Casablanca ou de outro lugar distante por onde a viajante andaria a passear.
Uma história incompleta
Um livro tem de ser como um machado para quebrar o mar de gelo que há dentro de nós.Franz Kafka - Carta a Oscar Pollak (1904)
Agora, preparem-se, vem aí a parte estúpida desta história, passada na Alemanha, no verão de 1923. Infelizmente, ninguém sabe o que está escrito nessas cartas. Ou sequer quem era a criança que comoveu o escritor checo. Durante anos, Klaus Wagenbach, um estudioso da obra de Kafka, procurou pela menina nas proximidades do parque, bateu à porta dos vizinhos, publicou anúncios nos jornais e nada, nem uma pista sequer.
O que se sabe é o que Dora, a companheira de Kafka, contou aos amigos, depois dele morrer com tuberculose num sanatório perto de Viena. O episódio acabou por ir parar aos jornais, transformando-se rapidamente num mistério a intrigar escritores, investigadores e leitores de todas as partes do mundo.
Durante essas três semanas – assegura Dora Diamant -, Kafka escreveu as cartas com a mesma dedicação com que se empenhou nos muitos contos e romances que o tornariam, mais tarde, num dos mais importantes nomes da literatura do século 20.
É provável que já tenham ouvido falar das obras mais conhecidas dele.
«O Processo», por exemplo, conta a história de Josef K., um bancário, muito zeloso do seu trabalho, acusado por um crime que, por mais que procurasse as respostas nos tribunais ou na polícia, nunca viria a descobrir quais eram. Ou «A Metamorfose», centrado nas aventuras do caixeiro-viajante Gregor Samsa, que, ao ver-se subitamente transformado num inseto gigante e repelente, passa a viver enclausurado no seu quarto.
São livros que, de tão bizarros e sombrios, aprisionam os leitores até à última página. No caso, em particular, de «O Processo», também deu origem ao adjetivo «kafkiano», usado em muitas partes do mundo para descrever leis ou modelos de organização labirínticos, confusos, intricados e estupidamente inúteis.
O escritor esquisito
Acreditando apaixonadamente em algo que ainda não existe, nós a criamos.Franz Kafka – O Castelo
Deveria ser um homem muito estranho este Kafka… Mas como é que, sendo tão esquisito, conseguiu cativar uma criança crédula, ao ponto de ela acreditar que as bonecas têm sonhos e vontade própria? É natural esta dúvida. Boa parte dos leitores estão convencidos de que os escritores e escritoras revelam muito do que são através dos seus livros.
O que não é totalmente falso. Mas não significa que seja totalmente verdadeiro.
Colar um rótulo a qualquer pessoa, já agora, é anular tudo o que ela é.
E, no caso de Kafka, que tinha fama de «neurótico», ou «atormentado», seria esquecer que era gentil, generoso e até um bocado ingénuo, como conta o alemão Reiner Stach na biografia de três volumes que escreveu sobre o autor.
Há, aliás, centenas de biografias, estudos e ensaios sobre o autor e a sua obra. Sabemos muita coisa sobre Kafka – da infância aos últimos dias, passando pelos livros publicados. Só não sabemos o que está escrito naquelas cartas. Mas podemos sempre imaginar… Tal como já o fizeram outros escritores. O americano Paul Auster recorda esta história no livro «The Brooklyn Follies».
O brasileiro Moacyr Jaime Scliar também quis escrever sobre este episódio, mas desistiu ao descobrir que outro escritor já o havia feito e estava prestes a publicar a história. E chegamos assim a Jordi Sierra i Fabre, o autor do livro para crianças «Kafka e a boneca viajante». Ao longo de pouco mais de 100 páginas, o catalão imagina como teriam sido as conversas entre Kafka e Elsi e o conteúdo das cartas de Brígida – nomes inventados pelo escritor – que ajudaram uma rapariguita de Berlim a ultrapassar a perda da sua única boneca.
Fica aqui um curto excerto deste livro, só para espicaçar a imaginação. A história verdadeira ficará para sempre incompleta. Mas isso é que a torna ainda mais especial. Qualquer um pode completá-la.
Querida Elsi,
antes de mais nada, desculpa por ter ido embora tão de repente, sem me despedir. Sinto muito e espero que não estejas zangada. Às vezes, fazemos coisas sem perceber, ou reagimos diante do que o nosso instinto nos diz, acabando por magoar quem não queremos. É que as despedidas são tristes e eu não queria que chorasses ou me tentasses convencer a ficar mais um pouco.
Mas agora sei que vais ficar mais tranquila sabendo que estou bem, vais alegrar-te por nós as duas. Viver é seguir sempre em frente, aproveitar cada momento, cada oportunidade e necessidade[…]. Ensinaste-me muitas coisas, que me fizeram ser uma boa boneca. A partida foi triste por te deixar, mas bonita porque graças a ti sou livre para fazer isso. Sierra i Fabre - Kafka e a boneca viajante
antes de mais nada, desculpa por ter ido embora tão de repente, sem me despedir. Sinto muito e espero que não estejas zangada. Às vezes, fazemos coisas sem perceber, ou reagimos diante do que o nosso instinto nos diz, acabando por magoar quem não queremos. É que as despedidas são tristes e eu não queria que chorasses ou me tentasses convencer a ficar mais um pouco.
Mas agora sei que vais ficar mais tranquila sabendo que estou bem, vais alegrar-te por nós as duas. Viver é seguir sempre em frente, aproveitar cada momento, cada oportunidade e necessidade[…]. Ensinaste-me muitas coisas, que me fizeram ser uma boa boneca. A partida foi triste por te deixar, mas bonita porque graças a ti sou livre para fazer isso. Sierra i Fabre - Kafka e a boneca viajante
O livro «Kafka e a boneca viajante» ganhou, em 2007, o Prémio Nacional de Literatura Infantil y Juvenil em Espanha. Não está traduzido em Portugal, mas tem uma edição do Brasil, que é possível encomendar.
Já leste, por acaso, «O Principezinho: a história por detrás do clássico»?
Ilustrações: «Marigold Garden» (1910), de Kate Greenaway.