No mais profundo sossego, repousam os pequenos barulhos. Só estão adormecidos por não lhes prestamos a devida atenção. Aproveitem o confinamento forçado e desliguem o telemóvel, a televisão, a música e a internet. Deixem-se guiar pelo mistério e descubram a grande orquestra dos sons que habita o silêncio.

Quando foi a última vez que, entre o bulício da cidade, escutaste o piar de um pardalito? Ou o resmalhar nas folhas das árvores? Até mesmo as solas dos teus sapatos a pisarem a gravilha? Não julgues que é por seres distraída ou distraído que não te lembras. Os barulhos pequeninos não foram feitos para viver com os grandes. As persianas a abrirem-se pela manhã, a tampinha a saltar do pacote do leite, a escova a deslizar no cabelo, os cereais a caírem na tijela ou a vassoura a limpar o tapete, tudo isso são sons, embora constantes, que habitam um mundo à parte – o do silêncio.

O silêncio, ao contrário do que se diz por aí, não é ausência total de barulho. Isso não existe nem sequer para quem nasceu surdo. Quando tudo à volta se cala, sobra sempre um leve zunido acolchoado no ouvido. Dizem os cientistas que, quando privado de estímulos auditivos, o cérebro cria os seus próprios sons para preencher o vazio. O zum-zum, para quem é surdo, é mais forte ainda, mas como também é permanente, eles habituaram-se a conviver com este ruído.

O show dos barulhinhos

Chuva à janela

A noite é o momento em que os barulhinhos perdem a vergonha e se mostram na escuridão.

É mais ou menos isso que acontece com os pequenos ruídos que nos rodeiam. Penetraram no nosso quotidiano e deixámos de os ouvir. Pior ainda, permitimos que os barulhos mais fortes devorassem qualquer hipótese de os mais fracos sobressaírem. Mas não pensem que os barulhinhos se deixam derrotar. Sempre que estiveres disposto ou disposta a ouvi-los, eles dão o seu show e a qualquer hora do dia.

Procura o silêncio e presta atenção.

Com um galho de madeira, poderás ouvir o som apressado das grades a correrem a cerca da tua escola. Nos dias enublados, a chuva a bater no vidro e o vento a infiltrar-se nas frechas das janelas. Se olhares para cima, é provável que oiças um avião a sobrevoar o céu. E, para quem vive perto de uma estação, há sempre um comboio que se faz anunciar. No outono então, não há barulho que se compare ao crepitar das folhas secas caídas no chão.

Não faltam por aí barulhinhos para descobrir onde quer que se esteja. Mas, o grande o espetáculo, esse, acontece quando toda a gente desliga o televisor, guarda o telemóvel e apaga a luz. A noite é o momento em que os barulhinhos perdem a vergonha e se mostram na escuridão.

Fecha os olhos e concentra-te.

Os passos do teu vizinho de cima. Alguém a ressonar no quarto ao lado. A água a correr nos canos. A torneira a pingar (é bom que te levantes para fechá-la). O motor do frigorífico a trabalhar. Os móveis da casa a estalar – são as moléculas da madeira a dilatar ou a encolher com as mudanças de temperatura. E o raio do zumbido do mosquito que não deixa dormir.

No campo, nos quintais ou nas aldeias é que a festa aquece.

Criaturas noturnas no solo, na vegetação, no tronco e na copa das árvores, fazendo barulhinhos em busca de comida, de uma companheira para acasalar ou de uma pobre vítima para atacar. Insetos a zumbir, sapos a coaxar, o uh-uuh das corujas, o uivo dos lobos, gatos a miar, a chiadeira dos grilos e um cão a ladrar bem lá ao longe.

É um belo espetáculo, mas tudo se desperdiça quando nos perdemos por entre ruídos maiores. Ao afastar o silêncio do dia-a-dia não são somente os barulhinhos pequeninos que desparecem da nossa vida. São também os nossos próprios pensamentos. Não daqueles automáticos que acompanham tudo o que fazemos e dizemos. Mas dos que precisam do silêncio para ir até ao fundo e voltar cheio de boas ideias, de reflexões ou de sossego para sentir as alegrias, mas também os arrependimentos, que ninguém está livre de errar.

Concerto em barulho bemol

silêncio

«4.33» é o concerto de John Cage dedicado ao silêncio e aos ruídos que acontecem na plateia.

Esse é o silêncio que corre o risco de desaparecer por entre o grande barulho das cidades. Que bom que era agarrá-lo e usá-lo ao nosso belo prazer… esperem… Quem disse que tal não é possível? Basta marcar um encontro com ou sem hora marcada. Até há um concerto inteirinho dedicado ao silêncio. «4.33» é a obra mais conhecida do compositor americano John Cage. A composição foi criada em 1952 para ser executada com um instrumento a solo ou por uma orquestra.

Os espetadores compram o bilhete e sentam-se nos lugares marcados. Os músicos, vestidos a rigor, sobem ao palco com os seus instrumentos. O maestro levanta a batuta.

Começa o espetáculo.

Ao longo dos 4 minutos e 33 segundos que se seguem, não se ouve um único som dos instrumentos.

Os primeiros barulhinhos chegam da plateia. Cadeiras a estalar, tosses contidas com alguma dificuldade, o estrondo de uma caneta ou de uma bengala a tombar no chão, murmúrios, uma porta que abriu, folhas de papel entre os dedos dos espetadores e tanto, mas tanto sossego, que não seria disparatado se alguém dissesse ter conseguido ouvir os pensamentos a divagarem pela sala.

A batuta do maestro dá indicação aos músicos para terminarem o concerto. A plateia aplaude, encantada com a maravilhosa atuação dos barulhinhos e do silêncio. Os barulhinhos e o silêncio, gratos pela ovação do público, sorriem felizes por finalmente o seu talento ser reconhecido. É que já não era sem tempo!

Podes, se quiseres, ver muitas versões deste concerto no Youtube, embora só numa grande sala de espetáculos seja possível ouvir com todas as condições os barulhinhos.

Se os mistérios do silêncio são irresistíveis para ti, lê este artigo também: Quantos pensamentos tens tu por dia?