Quantas rainhas teve Portugal, alguém sabe dizer ao certo? Não são assim tantas que não se consiga contar. A questão é que há quem defenda serem 35 e quem contraponha com mais uma. Mécia Lopes de Haro é a carta fora do baralho e ainda hoje contestada porque o seu casamento com D. Sancho II, em 1242 (?), foi anulado pelo Papa Inocêncio IV. Só mesmo para ser do contra, é ela a protagonista da nossa história.

Mécia não é uma bruxa malvada como o povo, o clero e a nobreza pintaram na Idade Média. Também não é uma santinha, já que ninguém dominava como ela os joguinhos nos bastidores da corte. Goste-se ou não dela, foi rainha de Portugal e, ao contrário dos casamentos reais da época, o dela foi por amor. O amor, a bem da verdade, pendia mais para os lados do rei. Há investigadores muito desconfiados de que, no final desta história, ela acabará por atraiçoá-lo para salvar a própria pele.

Mas deixemos as intrigas para mais tarde e vamos ao que interessa. Quem foi, afinal, esta rainha renegada da História de Portugal e como caiu nas graças do senhor nosso rei? Na verdade, não há muito mistério à volta dos primeiros encontros entre o casal. D. Sancho II conheceu-a numa das suas regulares visitas à corte de Castela, onde ela era uma das muitas damas de companhia.

Desconhece-se o que terá ele visto nela, mas, conhecendo alguma coisa do seu feitio, dá para ter uma ideia.

🧙‍♂️ Mécia, neta bastarda do rei D. Afonso IX de Leão, distingue-se das mulheres dóceis e obedientes da Idade Média.

Tem um certo ar altivo, um nariz empinado e uns modos meio pedantes, apesar de não possuir um único título da nobreza. O monarca português terá, certamente, ficado perturbado só com a sua presença, mas muito mais impressionado ficou com o passado dela. Viúva de D. Álvaro Peres de Castro, Mécia ganhara fama ao evitar, por volta da década de 1230, uma sangrenta invasão dos mouros ao Forte de Martos, em Córdoba, onde hoje fica a região espanhola de Andaluzia.

O marido, nessa ocasião, foi forçado a deixá-la sozinha para pedir ajuda a Fernando III, rei de Castela e Leão, contra as guerras, as doenças e a fome que devastavam as suas terras. Foi a oportunidade que Aben Alhamar, rei de Arjona, viu para atacar a fortaleza. Só não contou com a astúcia de Mécia. Prevendo o assalto dos mouros, ela vestiu todas as criadas com armaduras e armas de cavaleiro, exibindo-as nos pontos mais destacados do castelo para afugentar o inimigo.

O estratagema surtiu efeito, com os invasores a abrandar a caminhada em direção ao forte para reforçarem o contingente militar. Foi o suficiente para dar tempo ao sobrinho Telo de chegar com um esquadrão e pronto para combater os mouros. D. Álvaro Peres de Castro, entretanto, sabe da notícia e sai espavorido em socorro da sua dama. Mas, por qualquer maleita que os historiadores nunca esclareceram, adoece gravemente, morrendo antes de regressar às suas terras.

Casamento amaldiçoado

Mécia

A nova rainha nem desconfiava que se casara com o rei mais detestado de Portugal.

Mécia fica sozinha e volta para a corte de Castela até ao dia em que Sancho II casa com ela, levando-a para o reino de Portugal. Não foi lá um bom acordo, diga-se de passagem. Mal sabia ela que se casara com um dos reis mais detestados da História. Sancho tinha apenas 13 anos quando herdou o trono do pai Afonso II. O jovem monarca foi pouco hábil a governar. Esteve mais preocupado em combater os mouros do que a gerir o seu reinado, causando o descontentamento geral entre o povo e as classes abastadas.

Mécia Lopes de Haro caiu de paraquedas neste desgoverno. Foi logo atacada por não ter nenhum título de nobreza ou qualquer tipo de influência para lutar pelos interesses da coroa. Ela também se pôs a jeito, criando inimizades ao rodear-se de aias e criados castelhanos, o que muito irritou os cortesãos portugueses impedidos de, através dela, influenciarem as decisões do rei.

🤹‍♂️Povo e nobreza soltavam sem qualquer discrição, nas ruas, nos mercados ou na corte, a sua aversão pela rainha.

Achavam que D. Sancho II só podia estar cego de amor e «enfeitiçado» pelas artimanhas de Mécia. Mas o rei borrifava-se para as más-línguas, enchendo-a de riquezas e fazendo-a dona e senhora de vastas terras, como Torres Vedras, Sintra, Ourém, Abrantes, Penela, Lanhoso, Aguiar de Sousa, Celorico de Basto, Linhares, Vila Nova de Cerveira e Vermoim.

Enquanto isso, o reino sucumbia em conflitos internos e externos e com toda a gente a querer se ver livre do monarca. A Justiça estava num caos, roubos, assaltos, homicídios, fome e doenças eram constantes. Nem o clero estava contente, correndo para junto do Papa a fazer queixinhas do monarca.

Ralhete papal

Mécia

Perante a indiferença de Sancho II, o papa declara o rei «inútil» e incapaz de governar.

Inocêncio IV tratou logo de avisar Sancho II que tomasse as rédeas do reino, pois não iria tolerar por muito tempo os seus desgovernos. O rei encolheu os ombros, como se nada fosse com ele, obrigando o papa a mudar de estratégia. Excomungá-lo da Igreja e retirar-lhe o trono era a conspiração que, entretanto, se cozinhava nos bastidores, com o irmão D. Afonso a ser chamado de emergência de França para Portugal para destronar o monarca.

O papa parte sem demora para o ataque, declarando o rei «inútil» e anulando o seu casamento, com a desculpa esfarrapada de que Sancho II e Mécia eram primos em quarto grau. A consanguinidade, no entanto, era bastante comum e aceitável na época, tendo em conta os frequentes arranjinhos matrimoniais entre as famílias da realeza ou da nobreza. O monarca, mais uma vez, desprezou a advertência papal, fazendo ver a todos que não desistiria de Mécia por nada deste mundo.

A traição de Mécia

Mécia

Vendo que o marido não tem hipótese de virar o jogo, a mulher junta-se aos inimigos.

Clero e nobreza ficaram apavorados, teriam de agir sem demora e antes que o casal tivesse um herdeiro e assim impossibilitasse D. Afonso de reclamar a coroa. A 24 de julho de 1245, é publicada a bula a decretar a deposição do rei. Imaginem só a quem foi D. Sancho II pedir ajuda quando se sentiu acossado…. Justamente ao irmão, que fazia parte do complô. Por essa mesma altura, o fidalgo Raimundo Viegas e Portocarreiro entrou com uma comitiva de cavaleiros no paço real de Coimbra e arrancou a rainha do leito, levando-a a cavalo até ao paço real em Vila Nova de Ourém.

Sancho ficou louco de fúria e correu sozinho atrás dela. Ordenou que lhe abrissem as portas do castelo, pois era o rei de Portugal e merecedor de respeito e vassalagem. Mas em troca, foi recebido com pedras e hortaliças estragadas. Regressou a casa desesperado, sem nunca suspeitar que o rapto da mulher foi planeado com o consentimento da própria. Essa é, pelo menos, a teoria entre os historiadores. Mécia, vendo o marido sem qualquer hipótese de virar o jogo, passou-se para o outro lado da barricada.

A Dama-pé-de-Cabra

Mécia

Não houve mais notícias de Mécia, mas ela continuou no imaginário popular.

O destino de um e de outro está longe dos finais felizes dos contos de fada. O rei aceitou a derrota e exilou-se em Toledo, onde viria a morrer praticamente sozinho, a 3 de janeiro de 1248. Rezam as crónicas de Rui de Pina, cronista de D. Sancho II, que Mécia foi levada de Ourém para a Galiza e por lá ficou até regressar, alguns anos mais tarde, a Castela, onde foi sepultada no mosteiro de Santa Maria de Nájera, na antiga capital do reino de Navarra.

Diz-se que, no reino de Portugal, nunca mais houve notícias dela, mas Mécia tornou-se num mito a assombrar o imaginário popular durante muitas e muitas gerações. Uma das fantasias mais tenebrosas sobrevive ainda hoje na «Lenda da Dama Pé-de-Cabra». Já ouviram falar desta arrepiante história do diabo? Quem não for mariquinhas, pode ler as «Lendas e Narrativas», de Alexandre Herculano, que está lá tudo contando com grande mestria.

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