O ano de 2020 não pode terminar sem assinalarmos por aqui o meio século que agora passa da data em que Almada Negreiros morreu. «Para quê recordar a morte do artista, se a lembrança nos deixa outra vez tristes?», é a pergunta que o Bicho que Morde faz. É bem visto, mas só em parte. Almada, essa criatura irrequieta de quase todas as artes, deixou-nos um legado tão variado, que ficará para sempre connosco. Por mais anos que passem, ele é e será o homem do futuro.
Almada Negreiros nunca andou numa escola de artes. Aprendeu tudo sozinho e quase tudo experimentou. Da pintura ao desenho, da cerâmica ao vitral, do teatro ao bailado, da novela gráfica à poesia. Deve ter tido, certamente, medo em aventurar-se por territórios desconhecidos. Ninguém é tão cheio de si ao ponto de não sentir, ao menos, uma pontinha de insegurança. Ainda assim, arriscou. Mesmo que o criticassem na praça pública, mesmo que se rissem da figura intempestiva que muitas vezes fazia ou das bojardas que lançava para agitar as águas.
Almada não era pessoa de apreciar a pasmaceira, esperando que o dia seguinte fosse igual ao anterior. Ficar pelo que já nos é familiar é sempre mais cómodo. Não há surpresas, a vida corre sem sobressaltos, mas, ao final do dia, o que é que fica para guardar? Este homem achava que todo o tempo do mundo era ainda pouco para ficar parado a fazer as mesmas coisas. Era um modernista – dizem os estudiosos das correntes artísticas – por querer romper com os velhos costumes.
Mas não era deitar abaixo só porque sim. O passado não é um bocado de papel amarrotado que se atira para o lixo. Sem a História somos náufragos à deriva no mar-alto. Mas, a tradição também não pode ser um pretexto muito conveniente para quem não quer sair do seu castelo e avançar para novos ciclos seja na arte, no pensamento, na política ou na ciência. Almada não gostava dos homens instalados nos seus poderes. Esses estão sempre bem. Nunca querem mudar e a tudo estão dispostos para que nada mude. Não é fácil tirá-los dos seus pedestais porque eles só ouvem o que querem ouvir.
No reino dos acomodados
«As pessoas que eu mais admiro são aquelas que nunca se acabam.»
Para fazer tremer o reinado dos acomodados, é preciso falar mais alto e, em casos extremos, usar o humor, o escárnio e a sátira para tirá-los do sério. Almada Negreiros fazia isso com mestria e descaramento, mas não era propriamente uma técnica desconhecida no mundo das artes. Já antes dele, no final do século 19, Eça de Queiroz – outro grande insatisfeito – usava os seus romances para ridicularizar figuras presunçosas, de mentalidades conservadoras e paradas no tempo.
Coitado do conselheiro Acácio, do Conde de Abranhos, do Pacheco ou do Gouvarinho – personagens, muitas vezes secundárias, de colarinhos entalados no pescoço, bigodes fartos a intrometerem-se na boca, monóculo no olho ou cartolas «chiques a valer». Sofreram muito na escrita de Eça por serem lambe-botas, maçadoras, pomposas e capazes das maiores aldrabices para se aproximarem do poder. Mas, por mais que incomodassem certos leitores por se parecerem com certas figuras da vida real, não passavam de ficção.
O manifesto contra Dantas
«O povo completo será aquele que tiver reunido no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem portugueses, só vos faltam as qualidades.»
O mesmo não se poderá dizer de Júlio Dantas. Esse não era uma criação literária de Eça. Era sim médico e intelectual com obra reconhecida aqui e lá fora e com cargos públicos da maior relevância. Era de carne e osso e apanhou a maior vergonha da vida com o Manifesto Anti-Dantas – um folheto de oito páginas todo escrito em letras maiúsculas e impresso em papel baratucho. Ao ser publicado em março de 1915, explodiu como uma granada a estilhaçar o bom nome das elites portuguesas.
Almada Negreiros escreveu-o quando tinha 23 anos, usando a artilharia toda de insultos, sarcasmos e desdém contra o pobre do Dantas.
O DANTAS CHEIRA MAL DA BOCA!
O DANTAS NU É HORROROSO!
O DANTAS PESCA TANTO DE POESIA QUE ATÉ FAZ SONETOS COM LIGAS DE DUQUESAS!
O DANTAS VESTE-SE MAL!
O DANTAS USA CEROULAS DE MALHA!
O DANTAS NASCEU PARA PROVAR QUE, NEM TODOS OS QUE ESCREVEM SABEM ESCREVER!
SE O DANTAS É PORTUGUÊS EU QUERO SER ESPANHOL!
UMA GERAÇÃO COM UM DANTAS À PROA É UMA CANOA FURADA!
O manifesto de Almada não apareceu do nada. É preciso, antes mais, esclarecer que Júlio Dantas esteve entre os muitos intelectuais a despejar, nas páginas da imprensa, um chorrilho de críticas contra os escritores da revista Orpheu. Almada Negreiros, Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro ou Santa-Rita Pintor eram alguns dos rapazes da nova geração artística que lançaram uma publicação trimestral de literatura, responsável pelos movimentos de vanguarda como o Futurismo, o Modernismo ou o Sensacionismo.
O primeiro número foi um êxito com destaque nas capas dos jornais, edição esgotada em poucas semanas e muito falatório nos meios artísticos. Dantas, picado por uma pontinha de inveja, atacou a ousadia dos «poetas-paranoicos». Chamou-os de loucos e avisou que mais loucos são «quem os lê, quem os discute e quem os compra».
A guerra das gerações
«Até hoje fui sempre futuro.»
A resposta do grupo Orpheu chegou na voz de Almada. O manifesto não foi um ataque apenas dirigido a Júlio Dantas, mas a toda geração de escritores, artistas, jornalistas, políticos ou atores instalados nas suas carreiras de prestígio: os «palermas de Coimbra», os «ilustríssimos» Mello Barreto, Lacerdas, Lucenas, Cunhas, Brazões, Sousa «e todos os Dantas que houver por aí!» Era uma clássica rivalidade entre duas gerações a lutar para o futuro entrar ou ficar à porta.
Dantas foi o bode expiatório. Era aquele que passou entre os pingos da chuva, saltando da Monarquia para a República, conseguindo ficar sempre muito pertinho das cúpulas partidárias. Ele foi diretor e professor do Conservatório, comissário do governo no Teatro Nacional, inspetor superior das Bibliotecas e Arquivos, deputado, dirigente partidário, ministro da Instrução Pública e dos Negócios Estrangeiros.
Um sorrisinho oportunista
A alegria é, para os vivos, a coisa mais séria da vida!
A sua reputação sofreu um abalo com o Manifesto Anti-Dantas. Dizem as más línguas que andou de livraria em livraria a comprar os exemplares disponíveis, contribuindo apenas para esgotar a primeira edição.
Esse abalo, contudo, não foi tão grande ou suficiente para afastá-lo dos círculos da elite política. Júlio Dantas foi, depois disso, comissário-geral da Exposição do Mundo Português e embaixador no Brasil, já durante o Estado Novo. Era um habilidoso, sempre de casaca, de chapéu de coco e «sorrisinho» oportunista. A figura ideal para Almada atacar este e todos os Dantas que, sem nenhum talento especial, ficam sempre a ganhar.
MORRA O DANTAS, MORRA! PIM!
Almada foi um artista com um dom para muitas artes, mas também para tirar da escuridão o lado sombrio dos portugueses. É natural que muitos o detestassem. É bem provável até que, se estivesse hoje por aqui, incomodasse mais gente ainda. Mas nem era isso que ele pretendia. Lutar contra os que não avançam nem deixam avançar, essa é a missão dos homens e das mulheres que, como ele, vêm do futuro para sobressaltar os nossos dias.
Nasceu em: Trindade, São Tomé e Príncipe, 7 de abril de 1893.
Morreu em: Lisboa, 15 de junho de 1970.