Os Descobrimentos não foram proeza unicamente de homens. Muitas mulheres disfarçaram-se de marinheiros e realizaram a travessia para o Oriente. Algumas foram apanhadas e castigadas, outras combateram nas frentes de batalha e outras ainda tiveram um papel determinante no povoamento dos territórios descobertos. A História não as incluiu nesta epopeia. Nunca saberemos, por isso, quantas e quem foram. Fica aqui o relato de cinco delas por todas as que caíram no esquecimento.
A Amazona de Mazagão
Nascimento 5 de janeiro de 1572, Aveiro
Morte 1641 ou 1642
Títulos / alcunhas Terror dos Mouros; a Cavaleira Portuguesa; Amazona de Mazagão
Nascida numa família de pescadores pobres, fora das muralhas da vila de Aveiro, Antónia Rodrigues teria 9 anos quando a mãe a entregou ao cuidado da irmã, Inácia, casada com um carpinteiro a viver em Lisboa. Foram tempos difíceis com o casal a tentar domesticar o seu feitio insubmisso. Aos 15 anos, ela disse basta, decidiu fugir para o mais longe que os Descobrimentos a conseguissem levar. Com o dinheiro de biscates, comprou roupas velhas de marujo, cortou as tranças, engrossou a voz e apresentou-se como António Rodrigues ao mestre de uma caravela carregada de trigo e prestes a partir para Mazagão, em Marrocos.
E assim embarcou Antónia… perdão, António. Viajou no meio de homens e rapazes, mas ninguém desconfiou que não era um deles. Dormia de ceroulas e camisa, fingia que se barbeava todas as manhãs, esfregava o convés, içava as velas e trepava os mastros com agilidade pouco comum entre raparigas. A vida de marinheira parecia talhada para Antónia, mas duraria pouco.
Ao chegarem a Setúbal, ela viu, na calada da noite, o mestre e a tripulação a desviarem parte do cereal em botes. Denunciou-os às autoridades. Temendo represálias dos navegadores apanhados em flagrante, o governador da praça-forte achou mais seguro enviá-la como soldado para Mazagão. Ali Antónia alistou-se na Infantaria, aprendendo o manejo de armas e táticas militares. Teria 16 anos quando descobriu e neutralizou um ataque-surpresa dos mouros, operação que lhe valeu a passagem para a Cavalaria.
Todos passaram a reconhecê-la como Rodrigues, o destemido cavaleiro. A reputação abriu-lhe as portas dos salões de festas, impecavelmente trajado e com donzelas a fazerem-lhe a corte. A todas António… ou melhor, Antónia foi evitando como podia, até Beatriz de Meneses cair doente de amores por não ser correspondida. O pai, Diogo de Mendonça, figura importante em Mazagão, não aguentando a tristeza da filha, pediu ao capitão-mor que forçasse o casamento. Antónia não teve remédio senão revelar a identidade.
Não houve castigo, felizmente. Muito pelo contrário. A «Cavaleira Portuguesa» tornou-se numa enorme sensação em Mazagão, acabando mais tarde por casar com um oficial da Cavalaria e mudar-se para Lisboa. Na bagagem levou uma «certidão de serviços feitos pelas armas», assinada pelo governador.
As guardiãs das muralhas de Diu
Nascimento datas desconhecidas
Morte datas desconhecidas
Títulos / alcunhas as defensoras de Diu
Corria o ano de 1538, quando, a 4 de setembro, Hadim Solimão Paxá, governador do Egito Otomano, enviou a maior ofensiva jamais vista no Oceano Índico contra as forças portuguesas – 22 navios, 130 canhões e dezenas de milhares de soldados prontos para bombardear a fortificação de Diu. Do lado de dentro da fortaleza, o capitão António da Silveira contava apenas com 600 homens. Pouco mais poderia fazer do que trancar os acessos da cidade e espalhar os seus cavaleiros pelos pontos estratégicos da muralha.
As mulheres, essas, deveriam seguir com urgência para Goa, evitando-se que fossem levadas para os haréns de sultões. Sobretudo a mulher do capitão, linda e jovem, nunca escaparia à cobiça dos turcos. «Isso é que não!» – avisou Isabel da Veiga. Nunca o deixaria. Faria o que fosse preciso, trataria dos feridos, alimentaria o ânimo e o estômago dos soldados e morreria ao lado dele, pois não saberia viver sem ele. Bateu o pé até o capitão ceder.
Começa a batalha. Os canhões dos inimigos abrem crateras na muralha, obrigando os homens a deixar os postos para tapar as brechas. Isabel viu ali a oportunidade de participar na batalha. Chamou a amiga Ana Fernandes e juntas trataram de ajudar os soldados nessa tarefa. Logo vieram outras tantas, que, sob a orientação das duas, carregaram pedras, madeiras e cascalho, tapando os buracos assim que eles se abriam. Ana Fernandes, como mulher do cirurgião Fernão Lourenço, usou ainda os seus conhecimentos para montar uma enfermaria na sua própria casa. Aplicou unguentos, bálsamos e ligaduras aos feridos, enquanto as ajudantes batiam claras de ovos para suturar as feridas.
Em pouco tempo, as mulheres tornar-se-iam em soldados valiosos na proteção das muralhas, figurando numa das batalhas mais lendárias dos Descobrimentos. Algumas chegaram a vestir as armaduras dos maridos para combater o inimigo. Eles e elas resistiram dia após dia, noite após noite, até chegarem, por fim, os reforços do vice-rei da Índia com toda a frota disponível para acudir aos cercados de Diu. Solimão, sabendo da má notícia, ordenou a retirada dos homens, que fugiram pelo mar Vermelho. Diu estava salva e a fortaleza reconstruída ao fim de três meses.
A Grande Dama de Flandres
Nascimento 21 de fevereiro de 1397, em Évora
Morte 17 dezembro de 1471
Título / alcunha duquesa de Borgonha; Grande Dama
A princesa Isabel não nasceu para se destacar numa família de ilustres homens dos Descobrimentos. Começando, desde logo, pelo irmão Infante D. Henrique, internacionalmente conhecido como «O Navegador». E continuando depois pelos restantes irmãos – D. Pedro, duque de Coimbra e regente de Portugal, e D. Duarte, que reinou a partir de 1433. Ou o pai, D. João I de Portugal, o famoso mestre de Avis.
Cercada de grandes vultos, restava-lhe passar os dias no Palácio de Sintra entre bordados, tapeçarias e romances de cavalaria que gostava de traduzir do francês ou do alemão. Enquanto isso, o irmão mais velho andava pela costa ocidental de África a colonizar os arquipélagos do Atlântico. O mais novo, esse, tratou de lhe arranjar um bom partido – Filipe «O Bom», duque de Borgonha e ainda conde de Flandres.
Antes de se atirar às cegas, Filipe certificou-se de que não lhe estariam a impingir uma feiosa ou desengraçada. Só depois de receber excelentes referências e um fiel retrato pintado pelo artista Van Eyck, enviou uma grande embaixada para pedir finalmente a mão da infanta.
Uma nova vida começaria para Isabel. Por ser tão culta e desembaraçada, passou a participar em diversos encontros diplomáticos com e sem o marido, acabando por ficar conhecida como a «Grande Dama». Assim que ela soube que o povoamento dos Açores estava a decorrer, iniciou negociações com os irmãos para que aceitassem colonos da Flandres.
_ E porque não? – responderam eles, já a pensar que o processo seria muito mais célere com a irmã a liderar as operações. Isabel tratou de reunir os melhores candidatos que, a partir de 1449, chegaram ao arquipélago para recomeçar a vida nas ilhas então desertas. Essa foi a razão pela qual tantos flamengos se instalaram nos Açores, deixando uma descendência numerosa que ainda hoje se mantém, principalmente no Faial, Pico, Flores e São Jorge.
Os vestígios estão por todo o lado, nos moinhos, nos modelos agrícolas, na freguesia Flamengos, do concelho da Horta (Faial), fundada pelo capitão Van Huertere, ou nos apelidos traduzidos de nomes flamengos como os Silveiras, os Dutra (aportuguesamento de Huertere), os Goulart, os Brum ou os Bulcão.
A Governadora do Atlântico
Nascimento 1429 (?)
Morte 1506 (?)
Títulos duquesa de Viseu e de Beja
Se a História dos Descobrimentos fosse escrita por homens e mulheres, o ano de 1470 seria um marco em todos os manuais. A data assinala o momento em que Beatriz, viúva de D. Fernando, assume, em nome dos dois filhos, os destinos dos arquipélagos da Madeira, dos Açores e de Cabo Verde. É a primeira vez que um território ultramarino está sob a administração de uma mulher. O acontecimento por si só bastaria, mas não será apenas por isso que merece ser lembrado.
Nos 13 anos em que governou os senhorios do Atlântico, Dona Beatriz, duquesa de Viseu e de Beja, seria hoje uma ministra das finanças. Foi ela a acelerar o povoamento das ilhas cabo-verdianas, transformar os processos administrativos, reformar os modelos fiscais ou introduzir nos arquipélagos novas culturas nas rotas comerciais. Não é excitante, há que reconhecer, mas os Descobrimentos não são feitos unicamente de conquistas e travessias marítimas. Alguém terá sempre de ficar em terra, ocupando-se das tarefas maçadoras e formais. D. Beatriz, felizmente, nasceu para lidar com burocracias, contas e papeladas. Foi expedita a arrecadar e a gerir rendas, cobrar impostos, definir prazos de arroteamentos de terras, distribuir privilégios aos produtores agrícolas ou decidir quais as culturas a praticar em cada ilha ou arquipélago.
Chegou até a inventar, na Madeira, um sistema de cobrança muito útil para os dias que correm – a devolução do IRS. Não com esse nome, evidentemente, mas a lógica anda lá perto. A fim de combater a fuga aos impostos, a governadora taxava todas as canas-de-açúcar, fossem ou não destinadas a plantio. Só com a matéria-prima pronta a comercializar é que os produtores poderiam reclamar o retorno do valor das taxas cobradas aos lotes não destinados à venda.
Nos Açores, com o povoamento ainda no início, Beatriz preocupou-se primeiro em trazer habitantes para as ilhas. Criou capitanias, algo aparentado com as câmaras municipais, tratando também de fazer algumas reformas administrativas. Só depois é que se virou para a exportação de trigo, transformando a Terceira num ponto estratégico comercial e a vila de Angra num centro urbano ao nível de qualquer outra cidade metropolitana.
Em Cabo Verde, é o algodão que, sob orientação da governadora, se torna a principal produção a entrar nas trocas comerciais feitas nos rios da Guiné. A Ilha de Santiago sai-se muito bem neste domínio, mas é a Ilha do Fogo que mais se desenvolve à custa da produção algodoeira em grande escala.