Quem não conhece Sherlock Holmes? Não há detetive mais brilhante do que esta criação literária de Conan Doyle. O autor ficou famoso com os livros de crime e mistério. Menos conhecida é uma outra faceta sua. Por diversas vezes, usou a perspicácia do seu maior personagem para se bater pelos injustiçados. O caso de Oscar Slater foi o mais longo. O judeu alemão, condenado a prisão perpétua, não teria hipótese contra um sistema judicial corrupto e racista. Valeu-lhe a coragem do escritor escocês. Recuemos, então, ao dia em que a cidade de Glasgow acordou com a notícia de um terrível homicídio.
West Prince’s Street, na cidade escocesa de Glasgow, é uma rua tranquila. Mas, na manhã de 21 de dezembro de 1908, a polícia estava por todo o lado. Marion Gilchrist, de 82 anos, fora assassinada no seu apartamento. Nellie Lambie, a sua única empregada, saíra para comprar o jornal. Ao regressar, encontrou-a estendida no chão da sala de jantar. Os detectives, ao saber que um valioso pingente de ouro e diamantes desaparecera, logo apontaram o roubo como o motivo.
O homicídio foi, nos dias seguintes, o assunto mais comentado na imprensa, nos salões de chá, nos mercados ou nas padarias. Um crime tão brutal precisa de um culpado e já! – exigiram os escoceses. Ninguém voltaria a dormir descansado com um assassino à solta. A polícia desdobrou-se em diligências e, em menos de uma semana, revelou estar no encalço do suspeito.
Oscar Slater era exatamente o tipo de homem que correspondia ao perfil de um criminoso: judeu, imigrante e envolvido no jogo ilegal.
Para adensar a desconfiança, vivia perto da casa da vítima e, recentemente, penhorara uma jóia de ouro e diamantes. Como se não bastasse, viajara com um nome falso para os Estados Unidos, forte indício de que estaria a fugir. Oscar mal soube que era procurado, regressou voluntariamente à Escócia. Estava certo de que poderia provar a inocência e limpar o seu nome.
Todas as provas contra o alemão
Oscar apresentou novas provas em sua defesa, mas foram ignoradas pela polícia escocesa.
A jóia penhorada não correspondia à descrição do pingente da senhora Marion Gilchrist – contou ele à polícia. Tinha também dois álibis para assegurar que, na manhã do homicídio, estava longe do local do crime. A polícia nada se importou com as novas provas por ele apresentadas. Slater era o culpado e ninguém os convenceria do contrário. Já tinha cadastro e, na mala da viagem, transportava um pequeno martelo que seria certamente a arma usada para agredir a vítima. Não havia escapatória, sobretudo porque a polícia tinha várias testemunhas que o viram a fugir da West Princes Street.
O caso seguiu para julgamento na primavera do ano seguinte. O réu foi aconselhado pelos advogados a ficar em silêncio. O seu forte sotaque alemão só iria piorar a imagem de criminoso perante o júri. A defesa rebateu as provas, mas não seria o suficiente para inocentá-lo.
_«Culpado!» – sentenciaram os jurados, condenando-o à forca.
Oscar Slater, aterrorizado com a decisão, pediu então para falar. Mal conseguiu articular uma frase do princípio ao fim.
_ Meritíssimo, posso dizer só uma palavra? Permita-me dizer só uma palavra. Eu regressei da América… para a Escócia…. Esperava um julgamento justo. Não sei absolutamente nada sobre este crime, nunca ouvi o nome… não sei nada sobre ele… Não posso dizer mais nada do que isso.
Prisão perpétua e trabalhos forçados
48 horas antes da execução de Oscar, o rei Eduardo VII muda a sentença.
Nos meses a seguir, os advogados tentaram a todo o custo reverter a sentença. Denunciaram as incongruências e lançaram uma petição a pedir a absolvição de Slater, recolhendo mais de 20 mil assinaturas. Dois dias antes da data marcada para a sua execução, o rei Eduardo VII muda a sentença para prisão perpétua com trabalhos forçados. Durante os 18 anos e meio que se seguiram, Slater esteve na prisão de Sua Majestade Peterhead.
A fortaleza vitoriana, construída em 1888, no norte do país, ficaria conhecida mais tarde como a «gulag da Escócia». Frio insuportável no inverno, calor tórrido no verão, alimentação a pão e caldo de galinha e horas consecutivas de trabalhos forçados nas pedreiras de granito fizeram com que caísse várias vezes doente na cela. Os anos passaram e o judeu alemão ficou completamente esquecido.
Em 1925, Oscar Slater teve então a rara oportunidade para comunicar com o exterior. Aproveitou a liberdade condicional de um prisioneiro para enviar um pedido de socorro. Escreveu um bilhetinho em papel à prova de água e escondeu-o debaixo da língua de William Gordon. A mensagem deveria ser entregue a uma só pessoa e a mais ninguém: Arthur Conan Doyle. Quem é este senhor? Nada menos do que o mais famoso escritor da época. Bastará dizer que é o autor da personagem policial mais conhecida de todos os tempos – Sherlock Holmes. E por que Slater depositou nele a sua última esperança? Chegou então o momento de contar que não é a primeira vez que os caminhos destes dois homens se cruzaram.
O «caso Slater» desmontado peça a peça
O escritor de policiais deixou a ficção de lado e virou um detetive na vida real.
Conan Doyle conheceu Oscar Slater quando, por volta dos finais de 1911 ou inícios de 1912, desmontou, a pedido dos advogados, as acusações contra ele. O escritor de contos e romances de mistério deixou a ficção de lado e virou um detetive na vida real. Examinou relatórios policiais, depoimentos de testemunhas e transcrições nas audiências do tribunal. Procurou, depois, as contradições nos detalhes, desafazendo elo por elo, a cadeia de supostas evidências apresentadas pelo Ministério Público (ver a imagem em cima com as provas e contraprovas).
O caso contra Slater estava repleto de erros, supressão de provas, subornos e mentiras, concluiu Connan Doyle, denunciando uma «trama vergonhosa, na qual estupidez e desonestidade desempenharam papéis iguais». O esforço não teria qualquer resultado. O Ministério Público escocês continuou irredutível, conduzindo o escritor a um beco sem saída: «Estava a enfrentar uma rede de advogados-políticos que nunca poderiam denunciar a polícia sem também se denunciarem a si próprios.»
«Por favor, não desista de mim»
Doyle já se batera, antes do «caso Slater», pela inocência de outros injustiçados.
Agora, em 1925, o bilhete onde se lia «por favor, não desista de mim», levaria Arthur Conan Doyle a bater-se, mais uma vez, pela causa de Slater. Não era propriamente por haver novas evidências ou sequer por aprovar o seu estilo de vida. O escritor e também médico condenava o seu passado ligado aos salões de jogos ilegais e outras atividades ilícitas. Mas acreditava piamente na sua inocência. E isso era o suficiente para ultrapassar a antipatia e lutar pela liberdade dele.
Não seria, aliás, a primeira vez que Conan Doyle tomava partido dos injustiçados. Ajudara o advogado indiano George Edalji, a livrar-se da prisão por causa de uma falsa acusação de mutilação de gado. Poucos anos antes, também se envolvera ativamente no caso de Roger Casement. Era um amigo e nacionalista irlandês condenado por traição, depois de tentar obter apoio dos alemães para acabar com o domínio britânico.
O desenlace para Slater foi, no entanto, mais feliz do que o de Casement.
Connan Doyle contactou toda a gente que conhecia no governo e na imprensa, alertando para uma acusação sem ponta de credibilidade. Apareceu diversas vezes em público para defender o judeu alemão e angariar apoios. O movimento foi ganhando mais e mais força até que, em 1927, Oscar foi finalmente libertado. No ano seguinte, viu a sua pena anulada e o caso considerado um exemplo flagrante de xenofobia e antissemitismo na justiça. O homicídio de Marion Gilchrist é que, ainda hoje, continua sem culpado.