Quem tem irmãos percebe que há momentos em que parece impossível evitar uma briga com eles. Aqui, entre nós, sabemos como, às vezes, são irritantes e queixinhas. Mas, à medida que os anos passam, descobrimos também como se revelam amigos para a vida. Não é o caso de D. Pedro IV e D. Miguel I. Esses dois traquinas passaram a infância de candeias às avessas e nem em adultos ganharam juízo. Basta lembrar que foram eles a provocar a Guerra Civil Portuguesa (1832-1834) e está tudo dito.
A verdade é que D. Pedro IV e D. Miguel I vivem numa família muito pouco normal. Não é somente por serem príncipes habituados a toda a espécie de mordomias. Como seria de se esperar, a mãe e o pai contribuíram (e muito!) para moldar o carácter de cada um. Carlota Joaquina, coitada, tinha dez anos quando se casou contrariada com D. João VI, dez anos mais velho do que ela, para reforçar as relações entre Portugal e Espanha.
A corte portuguesa nunca gostou dela e havia boas razões para isso. Ambiciosa e calculista, urdia o tempo todo conspirações contra o marido para chegar ao poder. O rei era bastante acanhado e, não poucas vezes, caía em grandes depressões, por não aguentar o stress de governar um país sempre à beira do conflito.
Os filhos, no meio deste casamento infeliz, são praticamente obrigados a escolher entre ficar com a mamã ou com o papá.
As coisas pioram muito quando D. Pedro IV, com 10 anos, e D. Miguel I, com seis, têm de deixar Lisboa para viver com a família no Rio de Janeiro. O rei, perante a invasão da tropa imperial de Napoleão, sabe que não tem um exército capaz de lhe fazer frente e, em março de 1808, transfere a coroa portuguesa para o Brasil.
Um casamento desastroso
Carlota Joaquina detesta o Brasil e os mosquitos, mas o rei D. João VI nunca foi tão feliz como em terras tropicais.
Para o pai, foi o melhor que lhe aconteceu. Está livre das intrigas do Palácio de Queluz e, tão feliz, que passeia todas as tardes, conduzindo ele próprio o seu coche real, parando aqui e acolá para conversar com o povo. Carlota odeia o Brasil, fazem-lhe falta os seus cúmplices da corte de Lisboa, para não mencionar o calor e os mosquitos, que a deixam afogueada. Rei e rainha estão cada vez mais distantes, cada qual em aposentos separados e apoiando-se no seu filho predileto.
D. Miguel, influenciado pela mãe, acha o pai fraco e incapaz de governar. Mais dia, menos dia – suspeita ele – abdicará da monarquia, deixando-se levar pelos ideais iluministas. E ele, tal como Carlota, é um absolutista convicto, acredita piamente que os reis têm um mandato divino para reinar.
D. Pedro IV, por seu turno, admira o pai e os valores da Revolução Francesa, que se alastram pela Europa, levando o povo a ganhar coragem para lutar pelos seus direitos.
No Brasil, o infante D. Miguel e Carlota Joaquina pouco podem fazer contra o rei, mas, à medida que Napoleão perde em quase todas frentes, a nobreza em Portugal reclama a presença do seu monarca.
Mãe e filho esfregam as mãos de contentes quando D. João VI concorda finalmente em regressar a Portugal.
D. Pedro IV é o único na família a bater o pé e a recusar partir. No meio de uma acesa discussão, reza a História que terá declarado com grande convicção: «Eu fico!», expressão que, aliás, dá origem no Brasil ao Dia do Fico – 9 de janeiro de 1822 – e que culminará com a declaração de Independência do Brasil, a 7 de setembro desse mesmo ano.
O filho mais velho tornar-se-á no primeiro imperador do Brasil, passando a ser designado, no outro lado do Atlântico, como D. Pedro I. O irmão mais novo, esse, mal põe os pés em Lisboa, começa a preparar com a mãe o assalto ao poder. Entre 1823 e 1824, D. Miguel lidera várias revoltas, chegando, inclusive, a aprisionar o pai no palácio durante o conflito que ficou conhecido como Abrilada. É então que as tropas estrangeiras em Portugal – sobretudo os ingleses e os franceses -, libertam o rei do cativeiro e levam-no para o navio de guerra Windsor Castle, de onde ele manda prender e exilar o filho mais novo na Áustria.
Mas a 9 de março de 1826, a súbita morte do rei (envenenado com arsénio) revira tudo do avesso.
D. Pedro IV, como filho primogénito, deveria sucedê-lo, mas, se assumisse o trono, teria de desistir do Brasil. Ou, pior ainda, reconhecer que, afinal, o país é uma província da coroa portuguesa. Nem ele está disposto a tal, nem a mulher, a arquiduquesa Maria Leopoldina de Áustria, permitiria tamanho retrocesso. Abdicar da coroa, entregando-a à filha Maria da Glória – a futura rainha D. Maria II -, era a única saída para evitar que o irmão mais novo reclamasse o lugar do pai.
Mais um (quase) casamento desastroso
Maria da Glória – a futura rainha D. Maria II – é a sacrificada que, com apenas sete anos, foi prometida em casamento ao tio para evitar a guerra.
D. Miguel, lá longe no exílio, grita e esbraceja furioso, acusando D. Pedro IV dos truques mais ignóbeis para se manter no poder. E ele lá acaba por reconhecer que o estratagema é um bocado forçado. Mas arranja um outro plano ainda mais estapafúrdio. Propõe, então, que a pobre filha – com apenas sete anos – se case com tio para que ele fique como regente do reino.
D. Miguel teria apenas de assinar a Carta Constitucional e aceitar que a monarquia fosse regida pelas Cortes Gerais com uma Câmara dos Pares e uma Câmara de Deputados. Ele diz que sim a tudo, mas assim que sai do exílio, rasga o acordo, depõe a rainha D. Maria II e proclama-se rei de Portugal.
No outro lado do Atlântico, o imperador não tem alternativa senão abdicar do Brasil a favor do filho mais novo – D. Pedro II – e partir espavorido para a Europa, suplicando por auxílio aos ingleses e franceses. Mas, como não é mais nem rei nem imperador, os aliados recusam ajudá-lo.
Resta-lhe os Açores, cujo povo se mantém leal a D. Maria II, e onde D. Pedro IV se refugia para organizar um exército com sete mil soldados.
Ao saber que o irmão se prepara para atacar, D. Miguel I concentra todas as tropas em Lisboa. O tiro, porém, sai-lhe pela culatra. Os soldados de D. Pedro IV desembarcam na Praia da Memória, junto ao Porto, nas primeiras horas da madrugada de 9 de julho de 1832.
Com o exército absolutista desguarnecido, os homens de D. Pedro IV não têm dificuldade em conquistar a cidade. O problema, porém, é avançar até Lisboa para tomar o poder.
Estamos agora em plena guerra civil, com liberais e absolutistas a lutarem pelo poder. O momento, caríssimos leitores e leitoras, é decisivo na História de Portugal, marcando para sempre as fronteiras políticas.
Se algum dia perguntaram de onde surgiram os partidos de direita e de esquerda, este é um dos episódios fundadores, que dividiu o país entre os liberais de esquerda, a gritar pelo progresso, e os absolutistas de direita, a defender a tradição.
Esquerda e direita é a divisão que a guerra civil portuguesa inaugura, no século 19, com metade de Portugal a proclamar que o povo é soberano e outra metade a gritar que quem manda é o rei.
A estratégia contra a força bruta
Com apenas sete mil soldados, mas muita astúcia estratégica, D. Pedro IV derrota o exército do irmão com mais de 80 mil homens.
A guerra, para o irmão mais velho, parecia, todavia, perdida. Quem poderia vencer um exército de 80 mil homens com apenas sete mil soldados? De cada vez que saem do Porto, os liberais regressam derrotados pelas tropas miguelistas. A D. Pedro IV só lhe resta usar a estratégia se quiser vencer.
Como D. Miguel I não arreda o pé de Lisboa, ele decide tomar as cidades que estão desprotegidas. Navega então pela costa até chegar ao Algarve, onde não há tropas miguelistas. Sobe depois devagarinho pelo Sul, apanhando os inimigos desprevenidos. E chega, por fim, a Lisboa, contando já com a ajuda da esquadra inglesa.
Quando D. Miguel se dá conta, é tarde. O irmão está já dentro da cidade, que lhe é entregue sem resistência a 24 de julho de 1833. Houve ainda algumas batalhas durante um ano e qualquer coisa, mas a vitória é dos liberais.
Maria da Glória, que até então esperava na corte de Londres o desfecho da guerra, regressa a Portugal e, com apenas 15 anos, sobe ao trono a 26 de maio de 1834. Como qualquer história de reis, rainhas e princesas, esta também acaba com o vilão, D. Miguel, a partir para o seu último exílio. Ao contrário de D. Pedro IV, que morre de tuberculose nesse mesmo ano, ele viverá muitos anos exilado até morrer velhinho a 14 de novembro de 1866 na cidade alemã de Wertheim.
SABIAS QUE…
⚔⚔ A BRINCADEIRA PREFERIDA de Pedro e Miguel era formar batalhões de criados e de escravos e travar grandes guerras um contra o outro?
👑 SÓ AO FIM DE 174 ANOS após a morte de D. João VI, é que os seus restos mortais foram exumados, confirmando-se, no ano 2000, que foi envenenado com arsénio? É o primeiro regicídio em Portugal e o grande suspeito é, naturalmente, D. Miguel e os absolutistas.
👠 CARLOTA JOAQUINA tinha uma grande pancada por sapatos, com especial predileção pelos pares vermelhos de salto alto?
✒ ALEXANDRE HERCULANO E ALMEIDA GARRETT eram liberais convictos e combateram ao lado de D. Pedro IV durante o Cerco do Porto?