Por mais que os nazis ameacem os que ajudam os judeus, Eugene Lazowski sabe que um médico tem de tratar toda a gente sem exceção. E foi por isso que ele e o amigo inventaram uma epidemia de tifo. A cidade polaca ficou de quarentena durante quase três anos, impedindo o exército alemão de levar os judeus para os campos de concentração.
Há um lenço branco amarrado na cerca de madeira. Sinal de que alguém está doente. Eugene Lazowski espera a noite cair para sair às escondidas e bater à porta da família que pediu ajuda. Ele, como qualquer outro médico, está proibido de atravessar para o outro lado da cidade de Rozwadów para dar assistência aos judeus.
A vida na Polónia mudou subitamente a 1 de setembro de 1939. O exército alemão ocupou a parte ocidental do país, dando início à Segunda Guerra Mundial. São os nazis que estão em vantagem e, portanto, são eles a ditar as regras: quem prestar auxílio aos judeus que vivem do outro lado da vedação será imediatamente preso.
Eugene tem de ser cuidadoso, mas organiza muito bem as rotinas para não ser apanhado desprevenido. Tudo corre bem até ao dia em que um homem lhe entra pelo consultório pedindo ajuda. Ele está de passagem pela cidade para visitar a família. Em menos de uma semana terá de regressar ao campo de prisioneiros onde quase não come e é obrigado a trabalhar 14 a 16 horas por dia.
Ele ainda pensou fugir, mas sabe que, logo a seguir, a mulher e os filhos seriam presos. Eugene diz-lhe que vai ajudá-lo, mas não sabe o que fazer e vai ter com o colega Stanislaw. Pode ser que ele tenha alguma ideia. Nunca se sabe.
_ Há uma coisa que podemos fazer – diz o amigo.
_ O quê? – Pergunta ele.
_ Descobri, por acaso, que se injetasse num paciente bactérias mortas de tifo eles teriam todos os sintomas, mas não desenvolveriam a doença.
_ Isso é genial! Os alemães morrem de medo do tifo – interrompeu Eugene, todo entusiasmado.
Não é caso para menos. O tifo é uma doença altamente contagiosa transmitida por parasitas como piolhos e pulgas que matou milhares de soldados nas trincheiras durante a Primeira Guerra Mundial. O susto foi tão grande que o exército alemão tem agora ordens expressas para relatar imediatamente qualquer caso suspeito.
No dia seguinte, os dois médicos decidem infetar o doente com o falso tifo e enviar uma amostra do sangue ao laboratório dos alemães para confirmarem a doença. Em menos de 24 horas recebem um telegrama.
Zona declarada de quarentena
Eugene sabe que, se infetasse a cidade com a falsa doença, acabaria com a perseguição dos nazis aos judeus
A vontade deles é pular de alegria, mas ficam calados como ratinhos encolhidos no esconderijo. Seria um segredo só deles.
_ A tua ideia foi espetacular, Stanislaw, mas poderíamos fazer muito mais.
_ O que queres dizer com isso Lazowski?
Eugene já está a matutar num plano mais ambicioso. Infetar toda a cidade com a falsa doença acabaria de vez com a perseguição dos nazis aos judeus.
_ Isso é muito mais perigoso – avisou o amigo.
_ Sim, mas tens ideia das vidas que podemos salvar?
Não é preciso dizer mais nada para o convencer. Nas semanas seguintes, os doentes são infetados à medida que passam pelo consultório dos dois médicos. Nem todos. Os alemães não poupam os judeus infetados com tifo e, como tal, eles ficam de fora deste esquema.
As amostras de sangue são enviadas para os laboratórios alemães por fases. Primeiro só um ou dois casos e, à medida que as semanas passam, mais e mais. O objetivo é fingir uma epidemia que se alastra de dia para dia.
O plano parece estar a resultar, mas por pouco tempo. Tantos doentes e nem sequer uma morte? Algo de estranho se passa, pensaram os nazis. Em breve contam enviar uma equipa médica do exército à cidade de Rozwadów para tirar a limpo os casos de tifo.
_ Agora é que estamos tramados! – Soltou Stanislaw.
_ Temos de manter o sangue frio – avisou o amigo.
Eugene também está apavorado, mas não desiste da farsa. A equipa chegaria em poucos dias numa comitiva de médicos veteranos e aprendizes.
_ Vamos organizar uma festa para os médicos mais velhos à entrada da cidade. Haverá comida e vodka com fartura. Enquanto isso, tu estarás no hospital para receber os colegas mais novos.
Assim fazem. Selecionam os doentes mais magricelas, com olheiras até ao fundo da cara e pálidos como fantasmas. E colocam-nos em quartos sujos, escuros e sem janelas. Às portas da cidade, Eugene recebe a comitiva com um banquete.
_ Bem-vindos, caros colegas. Devem estar fatigados da viagem. Porque não descansam umas horas à volta da mesa?
_ Bem gostaríamos, caro colega, mas só podemos perder um dia aqui.
_ Não seja por isso – diz Eugene –, enviem os mais jovens para uma primeira avaliação e depois vão vocês, mas já descansados e saciados.
E porque não? – Pensam os alemães. Sentam-se, comem, contam piadas e lambuzam-se durante um par de horas. Enquanto isso, os novatos vão visitar os doentes. Mal entram nos quartos, tal era o pivete. Analisam à pressa as amostras de sangue e saem a correr convencidos de que estão perante uma epidemia. Os colegas mais velhos nem se lembram mais de confirmar os resultados das análises de tão alegres que estão depois do sexto ou do sétimo copito de vodka engolido de penálti.
Mais perigo no fim da guerra
Polónia durante a Segunda Guerra Mundial (Wikimedia Commons)
Ao pressentir que estão a perder, os nazis apertam o cerco aos suspeitos de colaborarem com o inimigo
O exército mantém a quarentena e nem um oficial alemão se atreve a aproximar da cidade. Os cerca dos 8 mil habitantes de Rozwadów e aldeias vizinhas vivem sem medo de serem enviados para campos de concentração ou de trabalho. Eugene é destacado para vigiar a epidemia e impedir a propagação da doença fora da cidade. Durante quase três anos, o médico polaco trata todos os doentes sem exceção e sem receio de ser preso.
Mas uma nova ameaça surge quando a guerra está prestes a terminar. Em janeiro de 1945, os soviéticos atacam os alemães na Polónia. Os nazis estão a perder a vantagem, ainda assim, apertam o cerco aos polacos, sobretudo àqueles de quem suspeitam estarem a colaborar com o inimigo. É o caso de Eugene, avisa um soldado alemão que, grato por já ter sido tratado por ele, decidiu ajudá-lo.
_ O Dr. Lazowski tem de fugir e já!
_ O que é que você sabe homem?
_ A Gestapo está de olho em si!
A polícia secreta do regime nazi descobriu que o médico anda a tratar os membros da Armia Krajowa, exército de livre resistência polaco que combate os alemães e os soviéticos que invadiram o país.
_ Eles sabem disso há muito tempo. Só não fizeram nada porque o seu trabalho para conter a epidemia era mais importante – explica o soldado alemão.
Agora é diferente. A guerra está no fim, os alemães estão mais vingativos e já não é seguro ficar na cidade. Eugene segue o conselho do soldado alemão. Agarra na mulher e na filha e parte com meia dúzia de roupas numa mala de viagem. Anda fugido até a guerra acabar e, depois, muda-se para os Estados Unidos, em 1958, onde é convidado a dar aulas de pediatria na Universidade de Illinois.
Ninguém mais ouve falar do que ele e o amigo fizeram para salvar os habitantes de Rozwadow. A verdade é que ninguém sabe. Nem sequer as famílias deles. Ambos têm medo de serem presos por terem inventado uma falsa epidemia.
Um segredo três décadas guardado
Só 32 anos depois da guerra é que os médicos contam a verdade. Logo a seguir, Eugene visita a Polónia
O plano manteve-se secreto até 1977, quando Eugene revela tudo num artigo escrito para a revista da sociedade americana de microbiologia. Ou seja, só 32 anos depois de a guerra acabar. Mais tarde, em 1993, os dois médicos contam toda a história no livro “The Private War”, um sucesso de venda nas livrarias polacas. E, sete anos depois, Eugene regressa à Polónia para visitar Rozwadow.
É recebido como um herói com direito a vários dias de festas. É numa destas comemorações que um desconhecido se aproxima dele, dando-lhe um abraço demorado.
_ O meu pai estava às portas da morte e o Dr. Lazowski curou-o em 5 dias.
Eugene abre um sorriso malandro e segreda ao ouvido dele:
_ Não fui eu, foi tifo que salvou o teu pai – diz ele, desmontando o esquema ao polaco ainda convencido de que a cidade fora alvo de uma epidemia durante a Segunda Guerra Mundial.
ALCUNHA: Schindler polaco
NASCEU EM: Częstochowa, Polónia, em 1913 (dia e mês desconhecidos).
MORREU EM: Oregon, Estados Unidos, a 16 de dezembro de 2006
Depois de uma história de um heróis, que tal outra história de seis heroínas? O voo das seis Marias salvou centenas de vidas.