A disputa entre Portugal e Espanha começou há 500 anos, quando Fernão de Magalhães concluiu a primeira volta ao planeta. A resposta, essa, está no final desta epopeia repleta de batalhas, naufrágios, traidores, conspirações, fome, doenças e brigas de morte. Antes de qualquer pátria reclamar o seu herói, é preciso conhecer a História. Vamos descobrir então o navegador português que provou ao mundo como a Terra é redonda e muito maior do que se imaginara.
Fernão de Magalhães era um homem angustiado com a sua sorte. Combatera pelo país na Índia, na Malásia, na China, no Japão, na Pérsia ou na Arábia. Lutara contra mouros, turcos, malaios, indianos e tantos outros inimigos do reino espalhados por muitas latitudes. Ganhara cicatrizes pelo corpo e uma bala na perna, durante a conquista de Marrocos, que o deixaria para sempre a coxear. Chegara, por fim, aos 40 anos com uma parca pensão que ninguém, com sentido de justiça, acharia merecido.
Não era o caso do El rei D. Manuel I, que de homem justo tinha pouco. Nunca acedera aos pedidos de Magalhães para lhe aumentar os rendimentos. De cognome Venturoso, ganho à custa dos marinheiros e soldados que desbravaram fortunas além-mar, era arrogante e exibicionista. Vivia no luxo, mostrando nas ruas de Lisboa o seu cortejo de criados, cinco elefantes da Índia, um rinoceronte fêmea, um cavalo persa e uma pantera de Ormuz.
Não foi, por isso, com surpresa que Fernão de Magalhães ouviu mais uma recusa do rei, quando lhe propôs liderar uma expedição marítima até às Molucas, as Ilhas das Especiarias. Já deveria até ter escondido na manga o trunfo para usar assim que ouvisse aquele não a sair disparado da boca do monarca.
_Peço então a Vossa permissão para servir outro rei que aceite os meus préstimos – pediu o navegador.
– Ide, ide e boa fortuna – deve-lhe ter respondido D. Manuel I, desconfiando, certamente, que Magalhães correria para os braços do seu rival. Só não contaria, talvez, que o rei Carlos I de Espanha (ou Carlos V do Sacro Império) aceitasse prontamente a proposta do português.
Na verdade, a recusa foi deveras conveniente. Fernão de Magalhães, que passara noites em branco debruçado nos mapas genoveses, tinha a forte suspeita de que as Ilhas das Especiarias ficariam na “parte dos espanhóis”. A intenção era, pois, navegar para Ocidente sem violar o Tratado de Tordesilhas que, em 1494, serrou o mundo em duas metades a serem governadas entre Espanha e Portugal.
Assim que obteve autorização para armar a expedição, foi ter com os seus companheiros a viver na cidade de Sevilha – também eles renegados pelo monarca português. O cosmógrafo Rui Faleiro, que, após lhe traçar a rota marítima, acabaria por ficar em terra por desentendimentos com o navegador português. Diogo de Barbosa, pai de Beatriz, rapariga com quem, entretanto, se casara. Ou ainda o italiano Antonio Pigafetta, que, num encontro casual, lhe pedira para embarcar com ele. Em boa hora Magalhães disse que sim. Caso contrário, parte considerável desta história, contada nos seus diários de bordo, não chegaria até nós.
A tripulação, essa, tinha mais de 200 homens, espanhóis na sua maioria, mas também dezenas de portugueses e alguns estrangeiros, entre franceses, alemães, gregos, ingleses e ainda malaios que serviriam de intérpretes. A esquadra incluía cinco naus, Trinidad – comandada por Fernão de Magalhães – Victoria, San Antonio, Concepción e Santiago, capitaneadas por espanhóis.
No dia 10 de agosto de 1519, a frota levantou ferro de Sevilha com Fernão de Magalhães como «capitão-general da Armada para o descobrimento da especiaria».
A aventura começa agora, caros leitores, e demorará três anos a completar. Poucos, muito poucos dos homens que partiram em busca das riquezas do cravinho e da noz-moscada, irão regressar. Embarcações naufragadas ou incendiadas, rebeliões a bordo, fome e desespero, batalhas de morte nos mares e nas selvas são o que os esperam.
Estão preparados? Vamos lá, então, circum-navegar este roteiro do Atlântico ao Pacífico, com 10 paragens que agora, 500 anos passados, são relatadas mais uma vez pelo Bicho Que Morde.
Paragem 1 – Tenerife, Ilhas das Canárias, setembro de 1519
Há uma semana atracados em território espanhol, chega a notícia de que D. Manuel I se prepara para enviar uma armada com o intuito de travar a expedição de Fernão de Magalhães. O navegador português vê-se obrigado a mudar o curso da rota, enfrentado, por isso, a desconfiança de alguns capitães. Usou mão firme para castigar e prender os conspiradores, trocar homens no comando e seguir em frente, descendo o Atlântico, passando ao largo de Cabo Verde rumo à…
Paragem 2 – Baia de Santa Luzia (Rio de Janeiro), dezembro de 1519
As duas semanas na costa do Brasil serviram unicamente para se resguardarem das perseguições, aproveitando para fazer algumas trocas comerciais com os indígenas, como nos conta Pigafetta:
«Por um anzol ou uma faca deram-nos cinco ou seis galinhas; um pente, dois gansos; e um espelhinho o peixe suficiente para alimentarmos dez pessoas. Trocamos também por bom preço as figuras das cartas de jogar. Por um rei de ouros deram-nos seis galinhas, e ainda se convenceram de que tinham feito um magnífico negócio.»
Paragem 3 – Montevideu, Uruguai, janeiro 1520
A chegada ao rio de Prata, a 12 de janeiro, seria o ponto central da expedição. Algures naquele braço de mar, com a costa hoje partilhada pela Argentina e Uruguai, estaria a passagem para o «Mar do Sul» – o futuro Oceano Pacífico. Mas, ao fim de um mês, nada foi achado e Magalhães continuou pela costa da América Austral, chegando à…
Paragem 4 – San Julián, Patagónia, fevereiro 1520
O vento gélido da Patagónia alimenta o descontentamento dos marinheiros. Pressentindo uma revolta iminente, Magalhães abriga-se no porto de San Julián para passar o inverno. De nada lhe valerão as cautelas. Os homens estão cansados, exigem tratamento e condições mais justos por parte dos seus capitães. Há motins em três das cinco embarcações e mais uma passagem de comando. Desta vez, é o basco Sebastían de Elcano que, por ordem de Magalhães, passa para o leme de San Antonio.
Cinco meses em terras frias do Hemisfério Sul trouxeram muitas outras desgraças. Homicídios, brigas mortais a bordo, julgamentos sumários ou decapitações ordenadas por Fernão de Magalhães. E ainda o naufrágio da nau Santiago, entretanto enviada em expedição. A restante frota prossegue a viagem, já em finais de agosto, deixando para trás mais de 30 homens sepultados no mar ou nas terras pedregosas da Patagónia.
Paragem 5 – Estreito de Magalhães, Terra do Fogo, novembro 1520
Dois meses, quase três se passaram até avistarem finalmente a passagem para o oceano desconhecido. Ao canal deram-lhe o nome de Todos-os-Santos, viria a ser batizado depois de Estreito de Magalhães. Era uma entrada perigosa, um intrincado labirinto entre as ilhas a Ocidente da Terra do Fogo, na ponta extrema da América do Sul. Durante esta demorada travessia, mais uma nau se perdeu depois de os marinheiros assumirem o comando de San Antonio e encetarem o regresso até Espanha.
O relato do corsário inglês Anthony Knivet:
«Aconteceu comigo de ir em terra buscar algum alimento, pois as provisões do nosso navio eram poucas. Ao voltar a bordo, os meus pés estavam molhados e eu não tinha uma muda de roupa. Quando acordei na manhã seguinte, os meus pés estavam tão dormentes que não conseguia mexer as pernas. Ao tirar as minhas meias, alguns dedos vieram atrás e vi que os meus pés estavam negros da cor da fuligem. Não conseguia senti-los de todo. Não mais conseguia caminhar.»
Paragem 6 – Por fim, o «Mar do Sul», em novembro de 1520
Com agora três embarcações, a armada do explorador português vence sete dias de navegação atribulada e entra no novo oceano. As águas perigosas ficam para trás. O mar é agora tão tranquilo que Magalhães não podia dar-lhe outro nome – Pacífico. Mas a calmaria será temporária. Mais de três meses sem ver terra é uma eternidade. Muitas privações se seguiram, como conta Pigafetta. Com os biscoitos desfarelados e infestados de larvas, os homens comem ratos e até bocados de pele de vaca que cobriam os mastros das naus. Estão magros até ao osso e doentes com escorbuto quando avistam a primeira ilha do Pacífico.
Paragem 7 – Ilha de Guam, Micronésia, março de 1521
Centenas de canoas saíram da praia para dar as boas-vindas aos exploradores. Fernão de Magalhães, deslumbrado com o efeito provocado nas ondas, batizou o lugar de «Ilha das Velas Latinas». O encantamento duraria pouco, nem todos os habitantes de Guam eram amistosos. Muitos subiram a bordo e rapinaram tudo o que encontraram, levando o navegador a mudar o nome para «Ilha dos Ladrões».
Paragem 8 – Ilha de Mactán, Filipinas, abril de 1521
Ancorados há algumas semanas na Ilha de Mactán, junto a Cebu, a morte esperava por Magalhães. Veio ela a 27 de abril à velocidade de uma sete envenenada lançada pelos guerreiros do chefe Lapu-Lapu. Eles eram 1500 contra os 50 espanhóis comandados pelo português. Recusavam a conversão ao cristianismo e a vassalagem à coroa de Espanha. O corpo moribundo de Fernão de Magalhães desviou a atenção dos inimigos, permitindo aos exploradores a fuga para as embarcações. «Assim morreu o nosso guia, a nossa luz e o nosso apoio», escreveu Antonio Pigafetta no seu diário.
Paragem 9 – Cebu, Brunei, Molucas, Timor, Cabo da Boa Esperança, maio de 1521
Duarte Barbosa, o genro de Magalhães, assume a liderança da expedição, entrando dias depois em novo combate contra os habitantes de Cebu. Duas dezenas e meia de homens perdem a vida, a nau Concepción sucumbe às chamas e pouco mais de uma centena de sobreviventes zarpam nas duas restantes embarcações. Seguem outras desventuras – deserções, marinheiros cativos dos indígenas, uma vertiginosa dança nos postos de capitão e o naufrágio de Trinidad. Sebastián Elcano, ao comando do único navio sobrevivente – Victoria – chega finalmente ao Cabo da Boa Esperança e retoma o caminho para casa.
Paragem 10 – Salúncar de Barrameda, Cádis, Andaluzia, Espanha, em setembro 1522
A seis de setembro de 1522, três anos depois de iniciar viagem, a expedição chega a Salúncar de Barrameda, cidade de Andaluzia, com 18 sobreviventes e meia carga de especiarias. Elcano, por ter sido o capitão a concluir a travessia, é considerado por muitos espanhóis o protagonista da circum-navegação. Mas, por mais voltas que se dê a esta epopeia, Fernão de Magalhães será sempre o primeiro explorador, que, ao morrer na Ilha de Mactán, nas Filipinas, já tinha ultrapassado as ilhas Molucas e circum-navegado o planeta. Não são poucos os historiadores, aliás, a desconfiar que o português, quando entrou no Pacífico, saberia já que errara nos cálculos e que a Ilha das Especiarias ficaria na parte portuguesa.
A viagem de Fernão Magalhães é, ainda hoje, uma espinha atravessada na garganta de portugueses e de espanhóis. O navegador é português! – reclamam os que estão deste lado da fronteira. Mas fez a viagem ao serviço do rei espanhol – respondem os hermanos do outro lado.
Como resolver esta quezília que dura há 500 anos? Simples, muito simples, caríssimos leitores e leitoras. Ao tornar-se no primeiro homem a provar, na prática, que a Terra é redonda (e muito maior do que se pensava), o nosso Magalhães deixou de ser propriedade exclusiva de um ou dois povos.
Não é por acaso que o nome dele está por todo lado, no mar, em terra e pelo Espaço. No Estreito de Magalhães, que liga o Atlântico ao Pacífico e que foi ele o primeiro europeu a atravessá-lo. Na nebulosa Magalhães, duas galáxias satélites anãs a orbitar a Via Láctea, que ele encontrou durante a expedição. No Pinguim-de-Magalhães, avistado por ele nas terras frias da América do Sul. Na sonda Magalhães enviada a Vénus pela NASA, em 1989. Na cratera Magalhães, localizada nas terras altas do planeta Marte e também nas duas crateras da Lua, Magalhães e Magalhães A. Na navegação Magalhães, um dos primeiros sistemas de GPS. Ou simplesmente no Magalhães, o primeiro computador a entrar, em 2008, nas escolas portuguesas do 1.º ciclo.
Com isso tudo, caros leitores/as, põe-se um ponto final na rivalidade Portugal-Espanha. Magalhães não é teu e nem é meu. É do mundo inteiro e de mais ninguém.