A prisão de alta segurança de Zomba foi durante muitos anos um lugar riscado no mapa de Malawi. Boa parte dos reclusos cometeu crimes sérios, mas outros estão condenados por coisas tão ridículas como feitiçaria ou homossexualidade. É nesta cadeia velha e a cair aos bocados que surge uma banda de música. Os prisioneiros de Zomba cantam para esquecer este lugar, mas as canções deles escaparam das grades e chegaram ao mundo inteiro.

Em qualquer lugar de Zomba, as montanhas são a única paisagem que se vê no horizonte. Para chegar às aldeias, demoram-se várias horas indo por caminhos estreitos e cheios de curvas que, em algumas partes, só podem ser percorridos a pé ou de bicicleta.

É uma cidade bonita, no sul de Malawi, com pouco mais de 100 mil habitantes, que cultivam arroz, milho, tabaco ou produzem leite. Mas para quem, como eu, vive perto da prisão central, é difícil reparar na beleza deste lugar. Só consigo ver muros, grades e portões.

Sou guarda há mais de 20 anos e ainda não me acostumei. Ao voltar a casa só me apetece esquecer este sítio, mas este sítio não me sai da cabeça. A música é o único remédio. Quando pego na viola e começo a cantar com a minha banda, já nem me lembro que tenho de regressar à prisão no dia seguinte.

A escuridão na prisão

Prisioneiros de Zomba
Crédito: Minidocumentário “I Will Not Stop Singing” (Marilena Delli)

A cadeia de Zomba foi contruída para 300 reclusos, mas tem mais de 2000 detidos em celas apertadas.

Se para mim é difícil, mais complicado é para quem vive dentro dos muros. A prisão central de Zomba é um edifício velho, construído no tempo em que os britânicos fizeram do Malawi uma das suas colónias. Foi planeada para 340 reclusos, mas tem mais de 2000 homens e meia centena de mulheres.

Nas celas, os prisioneiros de Zomba dormem no chão, encostados uns aos outros. Quando um se quer virar para outro lado, todos os outros têm também de virar ao mesmo tempo que ele.

A única refeição que eles comem por dia é uma papa de farinha de milho. Por vezes, têm sorte e ganham um punhado de feijões cozidos no prato. A carne é um luxo de algumas noites de Natal, mas nem sempre.

Eu nem devia queixar-me. A vida deles é muito mais dura do que a minha. É que não tem comparação. Foi por isso que pensei em ensinar um bocadinho de música para que, de vez em quando, pudessem também esquecer este lugar. Só que primeiro é preciso autorização do diretor-geral. Bati à porta do gabinete dele logo a seguir à hora de recolher.

_ Entra Thomas Binamo, o que queres comigo? – Perguntou Little Dinizulu Mtengano.

_ Como está senhor diretor? Desculpe o incómodo, mas tive uma ideia que pode ser boa para a prisão.

_ De que falas?

_ Sabe, senhor diretor, nas minhas horas livres canto e toco guitarra numa banda, às vezes até animamos as festas nas aldeias.

_ Fico contente em saber, mas porque me contas isso?

_ Estava pensar que podia ensinar música aos prisioneiros de Zomba.

_ Olha que não é nada má ideia, Thomas. É uma maneira de os manter longe das brigas e de outras confusões piores. Mas podíamos aproveitar também para ensinar outras coisas importantes.

_ Está a falar de quê senhor diretor?

_ Podias escrever canções que ensinassem hábitos de higiene e espalhassem mensagens de prevenção de doenças como a sida. A música é um excelente meio para ensinar.

_ Acho muito bem.

_ Ótimo! Ainda esta semana vou arranjar uma concessão que deve dar, pelo menos, para comprar alguns instrumentos.

Uma ideia com pernas para andar

Prisioneiros de Zomba
Documentário Zomba Prision Project (Marilena Delli)

Uma banda de música é um projeto simples, mas pode mudar a vida na prisão de Zomba.

Foi logo no dia a seguir que o diretor começou a tratar da papelada. Ele sabe que o meu objetivo é fazer com que os reclusos esqueçam o inferno que é esta prisão. Não é preciso ser muito perspicaz para perceber que tenho razão.

O senhor Mtengano tem perfeita consciência de que as condições em que os prisioneiros de Zomba vivem estão longe de serem razoáveis, mas os governantes da capital nunca se preocuparam com os reclusos desta ou de outras cadeias. Não é agora que iriam começar, sobretudo, porque a esmagadora maioria dos reclusos nem sequer sabe ler ou escrever. Para quê gastar dinheiro com um bando de analfabetos? – é o que pensam eles.

Na prisão de Zomba é bem pior. É a única cadeia de alta segurança para o país inteiro. Aqui dentro, estão detidos homens e mulheres que cometeram crimes muito sérios – roubaram, agrediram e até mataram. Mas também há outros condenados por coisas tão ridículas como feitiçaria ou homossexualidade. Boa parte deles espera anos pelo julgamento e, quando a audiência é finalmente marcada, não conseguem estar presentes, porque o sistema prisional não providencia o transporte até ao tribunal.

Há prisioneiros que nem sequer tiveram direito a um advogado que os defendesse. Muitos foram condenados sem saberem o que dizia a sentença, porque o juiz falava em inglês e eles só percebem chichewa, um dos principais dialetos de Malawi.

A prisão central é, portanto, um pontinho apagado no mapa de Malawi. É bastante complicado obter qualquer tipo de regalia para os prisioneiros de Zomba, mas o diretor-geral usa os melhores argumentos para convencer as autoridades da capital, em Lilongwe, de que o projeto, não sendo dispendioso, terá enormes benefícios para prevenir surtos de violência ou de doenças dentro das prisões.

O dinheiro chega finalmente passado uns meses e dá para comprar um par de guitarras, uma bateria e mais alguns instrumentos de precursão, além de teclados, baixos e ainda um gerador de energia. É um dia de festa, com uma multidão à volta dos instrumentos montados na carpintaria. Centenas de prisioneiros de Zomba querem participar na minha banda, mas, como tal não é possível, arranja-se maneira de formar vários grupos corais.

A prisão de Zomba, que até há pouco tempo parecia um cemitério de almas infelizes, transforma-se do dia para a noite. Em todas as esquinas ouve-se alguém a cantar. Às vezes, uma voz solitária aqui e outra acolá, outras vezes, dezenas de gargantas afinadas a dar espetáculos no pátio, nas celas, no refeitório, qualquer lugar serve para abrir a goela e soltar notas e acordes musicais.

Um casal no fim do mundo

Prisioneiros de Zomba
Documentário “House of Dance” (Marilena Delli)

Ian e Marilena andam pelo mundo a recolher músicas quando ouvem falar nos prisioneiros de Zomba.

Os prisioneiros de Zomba estão viciados nesta brincadeira, sempre a cantarolar e cada vez mais alto. Tão alto que, um dia, chega aos ouvidos de um casal de brancos que, vindos do nada, aparecem aqui. «O que será que eles querem?» – Pergunto a mim próprio quando os vejo passar o portão principal. Não esperei muito até ambos virem ter comigo.

_ Olá, boa tarde. Tu é que és o Thomas? – Quis saber o homem.

_ Sou eu.

_ Chamo-me Ian Brennan, sou americano e produtor de música. Esta é a minha mulher Marilena Delli, é italiana e faz documentários e fotografia. Ouvimos dizer que tens uma banda de música aqui dentro da prisão.

_ Sim, é verdade, mas como é que um branco do outro lado do mundo sabe que, neste fim de mundo, há uma banda de música?

– Esse é o nosso trabalho, Thomas. Há mais de 30 anos que andamos pelos lugares mais escondidos do planeta à procura de artistas e canções que nunca foram contagiados pelas grandes indústrias discográficas da Europa ou da América.

_ Estamos à procura de vozes e sons puros e já estivemos no Ruanda, no Sudão do Sul, no Vietname, na Argélia ou na Palestina. Há coisa de dois anos, estivemos aqui perto e ouvimos falar sobre vocês – continuou Marilena.

_ E o que querem connosco? – Pergunto um pouco desconfiado.

_ Queremos ouvir e gravar a vossa música, mas não tem sido fácil obter autorização. Já enviámos toneladas de papéis e formulários preenchidos, mas parece-me que as vossas autoridades não gostam de nos ter por perto. Conseguimos finalmente marcar uma reunião com o diretor-geral e é para lá que temos de ir agora. Sabes onde fica o gabinete dele?

_ Venham comigo.

O senhor Mtengano já está à porta do gabinete à espera deles. Entramos todos. Estou doido para saber no que isto vai dar.

_ Boa tarde, meus senhores – disse o diretor num tom muito sério -. Sabem que só vos recebo por cortesia e porque insistiram muito. Nós aqui não permitimos a permanência de estranhos, espero que possam compreender.

_ Deixou isso bem claro na nossa troca de emails – disse Ian –, mas queremos propor um acordo que pode ser positivo para ambas as partes.

_ Diga lá.

_ A música não é a minha única especialidade. Também trabalhei em prisões americanas e, durante muitos anos, dei cursos em que ensino os reclusos a resolverem conflitos sem necessidade de usarem a violência. Até escrevi vários livros sobre este assunto – disse Ian, tirando da mochila dois calhamaços que ofereceu ao diretor.

_ Agora é que esta história começa a ficar interessante – solta Mtengano, desfazendo finalmente a cara feia e abrindo um sorriso carregadinho de dentes brancos

– Que tipo acordo propõe?

_ Dou aulas e em troca o senhor deixa-nos passar algum tempo com os reclusos e guardas a ouvir a música que eles fazem.

_ É justo, mas não posso conceder mais do que duas semanas, combinado?

_ Ok. É melhor que nada.

Ian e Marilena começam logo a trabalhar. Da parte da manhã, ele dá os cursos aos prisioneiros e à tarde andam ambos pela prisão a ouvir a nossa cantoria. Parecem uns tontos de um lado para o outro, ele com o microfone estendido a captar sons no pátio, na oficina ou à porta das celas e ela sempre a fotografar ou a filmar.

Ian corre como uma barata tonta atrás da música

prisioneiro de Zomba
Documentário Zomba Prision Project (Marilena Delli)

A cantoria na cadeia acontece em qualquer lado e nos lugares mais inesperados. 

A verdade é que não é difícil ficar zonzo nesta cadeia quando se anda atrás da música. A cantoria acontece em qualquer lado e nos momentos mais inesperados. De repente, abre-se uma porta e aparece um sujeito todo contente a cantar. E, logo a seguir, surge Ian a tentar registar os bocadinhos de cantigas que apanha aqui e ali.

A oficina é, entretanto, transformada num estúdio com alguns aparelhos que o casal trouxe. Ian e Marilena estão encantados com o nosso dialeto. Dizem que é uma língua muito musical e que as nossas canções tão depressa são tristes e doces como alegres e cheias de ritmo. Nunca tinha pensado nisso. Nós aqui cantamos e pronto. Não demoramos muito tempo a matutar sobre as nossas canções.

Cantamos a vida nesta prisão, o arrependimento pelos crimes, as angústias por não sabermos o futuro dos nossos filhos. Coisas que a gente vê e sente na pele. Só isso.

Há prisioneiros que nem sequer sabiam que conseguiriam escrever canções até Ian os desafiar.

_ Eu não sou escritor – avisou Stefano Nyerenda ao ouvir a proposta do americano.

_ Por que não tentas? Não tem de ser nada de complicado ou longo, pode durar menos de 30 segundos se quiseres.

Stefano decidiu experimentar. Durante algumas noites, andou a escrevinhar e compôs uma música a que chamou «Women Today Take Care of Business». É o que ele pensa sobre elas. As mulheres são as principais responsáveis pelo progresso do país, trabalham dentro e fora de casa, a cuidar das crianças, a vender no mercado ou a gerir pequenos negócios.

E os homens? Esses, são preguiçosos – diz o rapaz na sua canção –, passam o tempo a dormir debaixo das árvores ou a jogar bawo, um jogo de tabuleiro muito popular no Malawi.

E, por falar em mulheres, onde é que elas andam? – Pergunta-me Ian, um dia –. Não acredito que só os homens têm talento…

Ian e Marilena decidem espreitar a ala feminina. São 35 mulheres que ali estão detidas. Não têm banda ou instrumentos, exceto uns baldes rotos que usam como tambores para dar ritmo aos coros e danças tradicionais que fazem no pátio. Nenhuma delas canta. Pelo menos é o que dizem, mas Ian e Marilena não vão na conversa.

_ Nada, nadinha?! – Provoca a italiana.

Ninguém responde, mas o casal insiste.

_ Gostávamos muito de vos ouvir. Quem sabe, até gravar algumas canções.

Silêncio. Outra vez.

Ian e Marilena ainda fazem mais algumas tentativas, mas ao perceber a resistência delas, decidem deixá-las em paz.

Estão quase a sair do pátio quando Gladys Zinamo toca no ombro do americano.

_ Eu fiz uma canção – diz ela, escondendo a cara com as mãos.

O casal dá meia volta e regressa ao pátio para ouvi-la. Parecem duas crianças entusiasmadas. A música dela, “Taking My Life“, conta como um dia os ladrões entraram em casa dela, levaram tudo e depois ela é que foi parar à prisão. Gladys foi condenada em 2010 por ser cúmplice do assalto na loja onde trabalhava [mas acabou libertada em 2013 por não se ter provado o crime].

Assim que ela acabou a canção, apareceu outra mulher também com vontade de cantar. E logo a seguir outra e depois mais outra. Gladys quebrou a barreira e Ian e Marilena estiveram horas a ouvir canções como «I Kill No More» e «Goodbye All My Friends».

Durante 10 dias, o americano não faz outra coisa senão gravar. Junta mais de seis horas de cantigas com cerca de 60 músicos. Assim que começa a ouvir o resultado do seu trabalho, percebe que tem ali material suficiente para lançar um disco. Selecciona 19 canções e uma área coral tradicional interpretadas em línguas tribais (na maior parte em chichewa).

Começa então a grande viagem destas 20 músicas compostas por 14 prisioneiros e dois guardas (eu sou um deles ☺). De Malawi seguem para França, onde são misturadas por David Odlum, um irlandês que é dono do estúdio Black Box. E depois vão para São Francisco, nos Estados Unidos, para serem gravadas pela discográfica Six Degrees Records.

Demora pouco menos de um ano e meio até o álbum ficar pronto. As gravações de Ian na prisão terminam em agosto de 2013 e, em finais de janeiro de 2015, surge o álbum «I Have No Everything Here». Ian regressa à prisão de Zomba para distribuir o álbum pelos guardas e prisioneiros. É um dia de festa e todos julgamos que este é o último capítulo de uma maravilhosa aventura.

Que engano tão grande! A aventura está só no princípio…

Em dezembro, as nossas músicas aparecem numa lista como um dos melhores álbuns de 2016. Ainda hoje estou para saber como é que em Los Angeles, na Califórnia, um júri descobriu quem somos nós. A notícia de que o nosso álbum está nomeado para um Grammy na categoria de Músicas do Mundo demora ainda umas semanas a chegar a Zomba. Mas, quando chega, é a LOU-CU-RA!

Jornalistas de todos os cantos chegam a Zomba e os prisioneiros aparecem nos jornais do mundo inteiro, do Japão à Finlândia, da Índia ao Chile, do Canadá à África do Sul, da Austrália à China e, claro, também na imprensa de Portugal.

Um prémio melhor que o Grammy

prisioneiros de Zomba
Six Degrees Records

Os reclusos achavam que não serviam para nada, mas descobriram que sabem cantar, compor canções e tocar instrumentos. 

Durante meses, foi um rodopio de fotografias, reportagens, entrevistas, filmagens e, no final, acabámos por não ganhar. É verdade que tínhamos uma esperança pequenina, mas sabíamos que era difícil. Por isso, nem nos importamos muito que o prémio fosse para uma cantora do Benin, Angélique Kidjo, uma lenda viva da música africana. A nossa recompensa foi muito melhor. Quem diria que os prisioneiros de Zomba seriam os primeiros artistas do Malawi a serem nomeados para os Grammy?

E quem diria também que o mundo iria falar de Malawi por causa de nós? Muitos dos prisioneiros de Zomba, que antes pensavam que nunca teriam perdão pelos seus crimes, acreditam agora que é possível alguém lhes abrir a porta quando saírem daqui. Muitos achavam que não prestavam para nada e agora descobriram que sabem cantar, escrever letras de músicas, compor canções ou tocar um instrumento.

Melhor ainda, esta aventura levou-nos mais longe ainda. Hoje, o nosso grupo chama-se Zomba Prison Project e em setembro de 2016 lançámos o segundo álbum – «I Will Not Stop Singing». Somos muito mais do que uma banda de música. O dinheiro da venda dos álbuns e dos donativos feitos no site da discográfica Six Degrees Records servem agora para ajudar os reclusos que nunca tiveram um advogado que os representasse.

Aos poucos, vamos conseguindo fazer algumas coisas. Três mulheres foram, entretanto, libertadas e outras três sentenças estão a ser revistas. O objetivo é que os fundos angariados através deste projeto possam ajudar mais e mais prisioneiros de Zomba como Fronce Afiki, a rapariga que compôs uma das canções mais alegres do primeiro álbum – “When They See Me Dance“.

Ela foi libertada em 2014 e regressou à sua aldeia, onde vive com os dois filhos numa casa de tijolos de barro que ela própria construiu. Fronce continua a cantar e a compor. Na canção mais recente, diz às raparigas que um marido não é tudo o que se pode esperar desta vida. Cada uma delas deve estudar, descobrir o seu talento, tocar um instrumento, aprender a tecer, um ofício qualquer, desde que seja o sonho delas.

A canção tem sido um sucesso na aldeia. As crianças vão ter com ela depois do jantar ou quando ela está a moer milho à porta de casa. Fronce canta e elas cantam também.

Vídeo

«Please Don’t Kill my Child», do álbum «I Have No Everything Here» (Thomas Binamo)

🦜Descobre também a história fantástica de Raoni em: Um guardião da Floresta nunca dorme.