Rosa Mota nasceu com uma deformação nos pés que lhe provocava terríveis dores quando corria. A asma deixou-a também sem fôlego quando treinava. Nada disso a impediu de ganhar, em 1982, a Primeira Maratona Feminina do Campeonato Europeu, em Atenas. E de vencer muitas outras grandes provas, tornando-se na primeira mulher portuguesa a conquistar uma medalha de ouro nas olimpíadas de Seul. Completam-se, este ano, 30 anos desde que ela deixou a alta-competição. Uma excelente oportunidade para o @bichoquemorde recordar um exemplo para todas (e todos) que correm atrás do impossível.

Viajemos até Atenas, no dia 12 de setembro de 1982. Pela primeira vez as mulheres participam numa maratona oficial da Associação Internacional de Atletismo. Pode parecer um absurdo agora, mas, há 40 anos, elas estavam impedidas de competir. Dizia-se que eram muito frágeis para tão grande esforço. Havia até relatórios supostamente «científicos» a alertar para o perigo de o útero descair, de pelos no peito e bigodes farfalhudos poderem surgir, como efeitos secundários, ou outras tantas desculpas descabeladas que hoje dão vontade de rir.

Apesar de Roberta Gibbs ter completado a maratona de Boston disfarçada de homem em 1966 e de Kathrine Switzer ter usado as iniciais do nome dela para fazer o mesmo no ano seguinte, há ainda, no início da década de 1980, muita resistência. Rosa Mota e o seu treinador, José Pedrosa, querem por isso saber se é mesmo verdade que as mulheres podem finalmente correr a maratona no Campeonato da Europa de Atletismo.

_ Onde ouviram tal coisa? Que disparate! – Responderam os dirigentes da Federação Portuguesa de Atletismo.

Rosa e José não estão convencidos. Portugal dos anos 1980 ainda é bastante isolado do resto da Europa. As notícias não correm rápido como agora. Não há internet, nem sequer telemóvel e os jornais estrangeiros chegam sempre com dias de atraso.

Rosa Mota parte com o treinador para a Grécia inscrita na prova dos 3000 metros, mas com a ideia de correr a maratona, caso ela viesse a acontecer. Podia ser que fosse verdade, mas também podia ser apenas um boato. Ela, como qualquer outra atleta, sabe que o machismo não desaparece por magia. Portugal também é um país bastante conservador e, quando ela começou a correr nas ruas da foz do Porto, em 1972, havia muitos olhares de desdém.

As mulheres deviam ficar em casa e o desporto era coisa de homens, ouvia enquanto treinava. Mas não eram alguns comentários maldizentes que lhe tirariam a vontade de correr. Rosa começou aos 14 anos, quando venceu três provas no liceu e a partir daí ninguém mais a parou. Nem a asma ou sequer o calcanhar de Aquiles que é o seu ponto fraco. Ela nasceu com uma deformação nos pés. Cada vez que dá um passo, o tendão pressiona o calcanhar e provoca dores. Se exagerar no esforço físico pode vir a desenvolver tendinites.

O calcanhar de Rosa

Rosa Mota

Treinos curtos e pausados e mais de um ano de reabilitação física prepararam Rosa para regressar ao atletismo.

A asma também não é para se menosprezar. Um ano e meio antes do Campeonato Europeu, estava dada como condenada para o atletismo. As corridas longas deixavam-na exausta e com falta de ar. Mas ela e o treinador não desistiram. Fizeram treinos mais curtos, preparação e reabilitação física rigorosa durante mais de um ano. E agora estão prontos para a prova de fogo – a maratona em Atenas.

Rosa Mota nem sequer dá nas vistas na prova dos 3000 metros, acabando em 12.º lugar. Mas a aposta é a maratona. Afinal, essa seria a competição a ficar para a História como a primeira com a participação de mulheres. Como adversárias, Rosa tem outras 27 atletas e está em desvantagem. É a sua estreia em competições internacionais e, mesmo durante os treinos, nunca correra mais do que 30 quilómetros de seguida.

Começa devagarinho, nos últimos lugares. Aos 10 quilómetros do início da prova leva um atraso de um minuto em relação ao pelotão da frente, o que é bastante. Acelera então o ritmo. Aos 15 km passa pelo segundo pelotão e ninguém dá por ela. Aos 20 km, tem quatro atletas a competir pelos primeiros lugares. Depois ficam três e, a 5 km do fim, está sozinha. É então que dá tudo o que tem por ainda temer o sprint final das adversárias. Deixa-as para trás, isola-se e entra sozinha no estádio, cortando a meta com mais de 100 metros de distância da segunda classificada.

Aos 24 anos, Rosa Mota vence, no dia 12 de setembro de 1982, a primeira maratona feminina, provando que a alta-competição é para homens e mulheres.

A vitória de Rosa foi um marco na História do atletismo mundial. E foi também o primeiro de muitos triunfos que se seguiram na carreira dela.

Depois de Atenas, ela conquista o primeiro lugar no Campeonato do Mundo em Helsínquia, em 1983. Nesse ano vence também a Maratona de Boston, acumulando a terceira vitória nesta prova. Nos Jogos Olímpicos de Los Angeles, em 1984, sobe ao pódio para receber a medalha de bronze. Dois anos mais tarde, vence em Estugarda, Alemanha, com uma vantagem de mais de quatro minutos em relação à segunda classificada.

Em 1987 regressa a Boston para festejar a sua 7ª vitória e ainda vence, em Roma, mais uma prova, no Campeonato Mundial, cortando a meta com sete minutos e 21 segundos de distância das outras atletas, a maior vantagem até então alcançada numa maratona de alta-competição.

A medalha de Seul

Rosa Mota

É agora ou nunca! – Gritou o treinador. Rosa ligou o turbo, entrou no estádio de Seul sozinha e ganhou a primeira medalha de ouro feminina para Portugal.

Rosa Mota está imbatível quando, em 1988, chegam os Jogos Olímpicos de Seul. Por alguns dias, teme-se o pior. A federação impede-a de se inscrever em competições nacionais e internacionais como castigo por não ter participado, dois meses antes, no Mundial de Estrada. José Pedroso queria que ela estivesse 100% focada nas olimpíadas e, para poupá-la, retira-lhe todas as provas.

A desobediência origina um conflito com a federação de atletismo, obrigando o então presidente da República, Mário Soares, o primeiro-ministro, Cavaco Silva, e o ministro da Educação, Roberto Carneiro, a usar pinças diplomáticas para desembaraçar a embrulhada. Em vésperas da maratona, as expectativas aqui em Portugal são bem altas. A atleta é recebida, no dia anterior, pelo embaixador português em Seul que lhe oferece um ramo de rosas como se lhe dissesse: «Rosinha, vê lá não nos desiludas…» O ministro da Educação apanha um avião de propósito até à capital da Coreia do Sul para assistir à prova.

E, no dia 23 de setembro de 1988, os portugueses colam-se ao canal 1 da RTP. A corrida começa sem que Rosa Mota se destaque na multidão. Quase metade da prova está feita e é ainda impossível saber o desfecho. Ao quilómetro 25, ela tem ainda 12 candidatas dispostas a lutar pelo ouro. Mas, aos 38 quilómetros, José grita da berma da estrada:

_ ROSA, É AGORA OU NUNCA!

Ela liga o turbo e deixa para trás a australiana Lisa Martin, a alemã Katrin Dorre e a soviética Tatiana Polovinskaia. Ganha terreno, isola-se e, nesse momento, todos os portugueses que assistem a prova em direto na televisão percebem que ninguém mais lhe tiraria a vitória. Corre sozinha e entra no estádio com a multidão a aplaudir de pé.

_Corre Rosa, corre por Portugal! – Grita Jorge Lopes, o comentador desportivo da RTP.

Rosa corta a meta e ganha a primeira medalha de ouro feminina para Portugal, juntando-se a Carlos Lopes, que quatro anos antes, vencera a maratona masculina nos Jogos Olímpicos de Los Angeles.

A carreira de Rosa Mota continua com mais vitórias e medalhas até abandonar a alta-competição em 1992. Em 10 anos, correu 21 maratonas e venceu 14. É proeza única não só no desporto português, como a nível mundial. Em 2012, aliás, foi eleita a maior maratonista de todos os tempos pela Associação Internacional de Maratonas e Provas de Estrada.

Mas, nem por isso, a fama subiu-lhe à cabeça. Era isso que os colegas diziam dela. Ela cantarolava a toda a hora e tinha um sorriso fácil. Toda a gente achava que era uma rapariga simples, mas a verdade é que era também um mistério para todos eles. Nunca entenderam como conseguiu ganhar maratonas atrás de maratonas não fazendo aquilo que todos os outros faziam.

_ Ela é um enigma, não faz treinos longos como os outros atletas – confidenciou um dia aos jornalistas Bill Rodgers, que é também considerado um dos maiores maratonistas do mundo.

Poucos, nessa altura, sabiam que a asma e os problemas ortopédicos levaram a ela e ao seu treinador a inventar novos métodos e disciplina de treino. Correndo de manhã e à tarde, ela foi ganhando aos bocadinhos leveza e resistência para derrotar não só as suas próprias fragilidades como vencer as adversárias. Rosa despediu-se da alta-competição há 30 anos, mas deixou o seu exemplo para todos e todas que correm atrás dos impossíveis.

🌼🌼🌼 Conhece também a história de outras grandes mulheres portuguesas em: Se uma Maria faz muito barulho, o que farão três Marias?

Fontes consultadas: Arquivos RTP | Olimpic Channel | Saúde Ilimitada | ESPM | Observador |Revista Visão |