O Bicho-Que-Morde passou o dia à roda do fogão. À hora do jantar, pôs a mesa e abriu a porta para receber os convidados:  uma espanhola, um francês, uma árabe, um indiano, uma italiana e uma alemã vieram provar alguns dos pratos mais típicos da gastronomia portuguesa. Nenhum deles desconfiou que, em cada um daqueles petiscos, há uma história a ligar a cultura deles à cozinha tradicional de Portugal.

Não os podemos censurar, afinal, a mesa tinha tanta coisa boa que ninguém conseguiu esperar. Quando todos terminaram a refeição, o anfitrião serviu cafés e sais de fruto e contou a origem de cada uma das comidas que cozinhou. Começou pelo fim, ou seja, pelas sobremesas. E só depois passou para os pratos principais. Agora, que toda a gente está de barriga cheia, as boas maneiras à mesa de pouco servem.

A família Davidson chegou a Lisboa

Bola de Berlim

A família Davidson saiu da Alemanha, em 1935, e veio para Portugal, como tantos outros judeus perseguidos pelo regime nazi durante a Segunda Guerra Mundial. O casal de Berlim deixou tudo e teve de recomeçar do zero em Lisboa para conseguir sustentar as duas filhas. O pai, que era consultor de galerias de arte, passou a vender antiguidades e quinquilharia na rua e a mãe, que era uma química, começou a fazer os tradicionais bolos da sua terra, conhecidos como berliner, e a vendê-los entre outros refugiados.

Em menos de nada, a guloseima seduziu também os portugueses que passaram a chamá-la de bola de Berlim.

As originais eram recheadas com geleia de frutos vermelhos, mas como, por estas bandas, groselhas, framboesas ou mirtilos não eram muito comuns, as bolas vendidas nas pastelarias portuguesas passaram a ser acompanhadas com creme de ovos.

Hoje, há muitos outros recheios, maçã e canela, chila, chocolate, doce de leite, de abóbora ou de morango e até bolas feitas de farinha de alfarroba, em vez de trigo. Qualquer pastelaria que se preze tem bolas de Berlim com ou sem creme expostas nas vitrinas, mas foi nas praias e durante o verão que o bolo da família Davidson se tornou popular.

Os portugueses não passam sem a bola de Berlim, mas não são os únicos. O bolo espalhou-se por esse mundo fora. Descobre, a seguir, como este bolo é conhecido em:

França

Carrega aqui, por favor, e descobre a resposta.
Boules de Berlin.

Finlândia

Carrega aqui, por favor, e descobre a resposta.
Hillomunkki (donut de geleia).

Estados Unidos

Carrega aqui, por favor, e descobre a resposta.
Bismarck.

Brasil

Carrega aqui, por favor, e descobre a resposta.
Sonhos.

Eslovénia

Carrega aqui, por favor, e descobre a resposta.
Kroft.

República Checa

Carrega aqui, por favor, e descobre a resposta.
Kobliha (rosquinha).

Croácia

Carrega aqui, por favor, e descobre a resposta.
Krafne ( é o nome pelo qual a bola de Berlim também é conhecida entre sérvios, bósnios e herzegóvinos).

Alemanha

Carrega aqui, por favor, e descobre a resposta.
Até na Alemanha, de onde o bolo é original, o nome varia consoante a região, Berliner pfannkuchen (bolo berlinense na frigideira), Berliner ballen, krapfen, kreppel ou fastnachtsküchelchen.

Um sopro oriental vindo do deserto

Arroz doce

O «roz bil halibi», o arroz doce, que nas festas e romarias portuguesas se serve quente e polvilhado de canela, veio do norte de África, mas mesmo os  habitantes da região do Magreb foram buscar a receita a outro lugar, inspirando-se na cozinha da Pérsia. Talvez por isso, o nosso arroz doce tenha qualquer coisa de oriental quando mistura o leite, o arroz e o açúcar ainda presentes nos pratos típicos dos casamentos hindus ou nos doces tailandeses feitos de arroz, coco e fatias de manga.

Com ovo ou sem ovo, além do intenso aroma a canela ou, em alguns casos, cravinho da Índia, o arroz doce costumava levar água aromática de flor de laranjeira ou de rosas. São alguns sopros perfumados que caíram em desuso, mas ainda hoje fazem parte das receitas tradicionais de arroz doce da África muçulmana e mediterrânea.

Só mais uma pitada…

Carrega aqui, por favor.
A cozinha é um belo exemplo de como os árabes influenciaram a nossa comida. E o arroz doce é só mais um entre os muitos exemplos, como o podiam ser também o escabeche do Algarve, as almôndegas, as migas ou as queijadas.

A receita de Balthazar

Bolo-rei

Balthazar Rodrigues Castanheiro Júnior tinha uma grande responsabilidade quando, em 1869, passou a gerir a Confeitaria Nacional. A casa era muito bem-afamada em Lisboa e ele tinha de manter o legado que o pai lhe deixara. Viajou, por isso, pela Europa à procura dos melhores confeiteiros e foi de Paris que trouxe para Portugal a receita do bolo-rei.

Por essa altura, o Gâteau des Rois, outrora muito popular na corte de Luís XIV (1638-1715), caíra no esquecimento.

Com a revolução francesa, os republicanos queriam distância de tudo o que fizesse lembrar os tempos da monarquia e o bolo-rei foi proibido, embora continuasse a ser confecionado com o nome de Gâteau des sans-colottes (bolo dos sem calcinhas), alcunha dada aos pobres.

A receita que Balthazar trouxe para Lisboa era da região de Loire, mas foi aprimorada em segredo por ele e pelo seu melhor funcionário, o célebre confeiteiro Gregório. O bolo-rei da Confeitaria Nacional ficou conhecido pelo país inteiro e sobreviveu até aos dias hoje.

Mais uma achega real

Carrega aqui, por favor.
Com a implantação da República, em 1910, alguns exigiram que se mudasse o nome para, por exemplo, bolo-presidente ou bolo Arriaga, que foi o primeiro presidente português. A ideia era tão estapafúrdia que não vingou.

Leve como o vento

Pão de Ló

As melhores receitas de Pão de Ló são das nossas avós, é mais que sabido, o difícil é descobrir quando surgiu e quem o inventou. Palpites há muitos. Há quem diga ter sido um confeiteiro alemão, chamado Lot, e quem acredite ter sido um cozinheiro genovês, Giovan Battista Cabona, em meados do século 18.

São duas hipóteses, mas não são as únicas. A palavra ló terá aliás origem nórdica e vem do lof, que significa «o lado de onde vem o vento», sugerindo que o nome surge por se tratar de um bolo de massa fofa e leve como o vento.

Nos dicionários de língua portuguesa, ló significa escumilha, um tecido transparente, que pode estar igualmente relacionado com este doce.

Se é um bolo de origem italiana, nórdica ou alemã, não se sabe ao certo.O que já se descobriu é que a primeira vez que surge em Portugal é no «Livro de Cozinha da Infanta D. Maria», escrito à mão no final do século 16. A obra foi encontrada na biblioteca pessoal da Infanta D. Maria de Portugal (1538-1577). Além de claras em castelo, gemas, açúcar e farinha, levava quase meio quilo de amêndoas.

Mais tarde, surgiram outras receitas, como a de Lucas Rigaud, cozinheiro de D. Maria I (1734-1816), que em 1780 dá a conhecer, no seu livro «Cozinheiro Moderno ou Nova Arte de Cozinha», uma versão mais parecida com o pão de ló que hoje consumimos. A preparação tem muitas semelhanças com o bolo francês de Saboia, que terá sido inventado em Chambérry, em 1358.

A origem deste bolo será sempre incerta, mas o que importa é que se tornou tão popular em Portugal que é um símbolo de muitas vilas e cidades como Ovar, Margaride, Alfeizerão (pão de Ló da Tia Amália), Figueiró dos Vinhos, Arouca, Castelo de Paiva, Vizela, Rio Maior, Coimbra ou Viseu.

Cada um destes sítios prepara o pão de ló à sua maneira, em formas retangulares (Arouca), forradas com uma tira de papel de linho (Ovar), húmido e com as gemas malcozidas (Castelo de Paiva) ou quadrado e coberto por uma calda de açúcar (Vizela).

Só mais um terço para o rosário

Carrega aqui, por favor.
Uma boa fatia destas receitas pertencia às freiras que, nos conventos, preparavam o bolo em dias de festa ou para receber ilustres convidados como reis, rainhas e membros nobreza e do clero.

Um deleite das arábias

Aletria

Nem que seja só pela origem da palavra, já é possível perceber que esta sobremesa é das arábias. A aletria vem do árabe al-irtiâ ou itriya, usada para designar massa. Mas se isso não for suficiente, então o «Libre de sent soví», com receitas medievais escritas em catalão, tira as dúvidas que restam.

Nessa obra, atribuída a um autor anónimo do século 14, há duas receitas de «alatria» de origem árabe. São provas mais do que suficientes para concluir que a aletria portuguesa nasceu algures entre os anos 710 e 715, quando os árabes conquistaram a Península Ibérica, chamando todo esse vasto território de al-Andalus.

Uma casquinha de limão

Carrega aqui, por favor.
Na Idade Média, a aletria era cozinhada em leite de amêndoas e mel. Hoje, usa-se leite açucarado e uma casquinha de limão na cozedura. Depois de a massinha absorver o líquido, juntam-se as gemas, indo mais uma vez ao lume por poucos minutos. Em algumas variações, a massa coze numa calda de açúcar, ficando os fios de massa tão dourados que ganharam o nome de cabelos de anjo. Há muitas maneiras de fazer esta receita, mais cremosa como no Minho ou seca e cortadas às fatias como nas Beiras.

Este tema só fica completo com a leitura de: «Histórias salgadas preparadas na cozinha portuguesa».

Fontes consultadas: 

Livros

  • «Judeus em Portugal durante a II Guerra Mundial», de Irene Flunser Pimentel, Esfera dos Livros, Lisboa (2006).
  • «Cafés Portugueses – Tertúlias e Tradição», de Samuel Alemão, Clube dos Colecionadores dos CTT (2017)
  • Pão e Vinho – Mil e uma histórias de Comer e beber, de Paulo Moreiras (2014), Dom Quixote.

Sites

Gale of Barceles | Virgiliogomes.com | Brasil Bom de Boca |