Tão cativante como o livro, é o que está por detrás do livro. Não se trata apenas da história de um Principezinho ansioso por descobrir outros mundos e encantado pelas coisas simples e belas da vida. É também um itenerário pelas melhores aventuras de Antoine Saint-Exupéry. E é, sobretudo, um testemunho da amizade entre o autor e Léon Werth. Separados pela Segunda Guerra Mundial, ambos permanecem juntos nesta obra que, 80 anos após a primeira edição, continua a viajar pelo planeta.
Algumas horas antes de partir para mais uma missão no norte de África, Antoine bateu à porta da casa de Sylvia Hamilton.
_ Olá! – cumprimentou ela, surpreendida – Não devias estar a voar?
_ Queria oferecer-te algo esplêndido antes de me ir embora, mas isto é tudo o que tenho – respondeu ele, atirando para a mesa do hall um envelope amarfanhado.
Dentro do embrulho está o manuscrito do seu mais recente livro – O Principezinho. São folhas e mais folhas preenchidas com diálogos, esboços e desenhos, que hoje estão no The Morgan Library & Museum, em Nova Iorque. Guardadas como se fosse um tesouro. Porque é disso mesmo que se trata.
Publicado nos Estados Unidos a 6 de abril de 1943 – e três anos mais tarde em França –, O Principezinho é um dos clássicos da literatura infantil mais importantes de sempre. O livro que Antoine Saint-Exupéry entregou à sua editora e amiga tornar-se-ia em pouco tempo num sucesso à escala mundial. Calcula-se que sejam à volta de 145 milhões de exemplares vendidos, um recorde só ultrapassado pela Bíblia. E que tenha sido traduzido para cerca 400 línguas e dialetos, incluíndo para o nosso mirandês, com o título de «L Princepico».
Um tesouro guardado no museu
O manuscrito está no The Morgan Library & Museum, em Nova Iorque. Guardado como se fosse um tesouro.
As aventuras de um rapazito que sai do Asteroide B612 para viajar pelo Universo já deu milhares voltas ao planeta, entrando em culturas tão distantes como a da república russa de Altai, na Sibéria, a dos povos magrebinos, a dos índios guarani, na América do sul, a dos letões, na Letónia, a dos hútus e tutsis, no Burundi e no Ruanda, e a de tantas outras centenas de países e regiões que, se quiseres, podes consultar aqui.
Mas tão cativante como o livro é o que está por detrás do livro. Não se trata apenas da história de um Principezinho ansioso por descobrir outros mundos e encantado pelas coisas simples e belas da vida. É também uma viagem pela vida do autor. Ou melhor, é o resultado das melhores aventuras de Antoine Saint-Exupéry.
Se esta obra começa com o narrador a lamentar o facto de nenhum adulto ter compreendido os seus anseios de artista, tal não acontece por acaso. Antoine, quando criança, adorava desenhar, mas, à volta dele, todos o avisavam para se dedicar a uma profissão mais séria. Deve haver algo que seja sério e ao mesmo tempo não me obrigue a passar os dias encafuado num escritório, pensa ele.
A escola naval seria uma boa solução, não tivesse reprovado nos testes. E é assim que ele se vira para a aviação. Em 1926 é admitido na Aéropostale, onde começa a carreira de piloto, voando entre Toulouse, Casablanca e Dacar. Enquanto aviador, ajuda a implantar rotas de correio aéreo em África, na América do Sul e no Atlântico Sul, além de inaugurar os voos Paris – Saigão e Nova Iorque – Terra do Fogo.
Um acidente no deserto
Antoine foi salvo pelos berberes quando o avião caiu no deserto da Líbia. Esse é o episódio que marca o início do livro.
Numa dessas viagens de Saigão para Paris, Antoine é obrigado a fazer uma aterragem de emergência no deserto da Líbia. Sem mapas nem comunicações, ele e o mecânico andam perdidos entre as dunas somente com alguns mantimentos – um cacho de uvas, duas laranjas, um termo de café, uma tablete de chocolate e um pacote de bolachas. Ao fim do segundo dia, já nada sobra dessa comida. Ao quarto dia, estão tão desidratados que não avançam nem mais um passo. É quando uma caravana de berberes passa por eles. Saint-Exupéry e o seu mecânico são como uma aparição caída do céu para os nómadas, que lhes dão de beber e de comer, salvando-lhes a vida.
Esse é o episódio, passado em finais de 1935, que lhe dá a ideia para a história de O Principezinho. No livro, o narrador é um aviador que cai no deserto e ao acordar, depois do acidente, dá de caras com um rapaz de cabelos de ouro e um cachecol amarelo, que lhe pede para desenhar uma ovelha.
Esse rapaz que, antes de chegar à Terra, já passara por vários outros planetas, é uma lembrança que lhe fica da viagem de comboio entre Paris e Moscovo, em maio de 1935. Nas últimas carruagens, onde dormem os operários polacos, ele encontra uma criança com cara de anjo e com «uma bela promessa de vida», que ocupará o lugar de Principezinho na sua obra.
O «Principezinho» poderia também ser Léon Werth, um homem sonhador, generoso, justo e o melhor amigo de Antoine. Mas isso já são devaneios do Bicho-Que-Morde sem qualquer sustentação, a não ser a dedicatória no livro que começa assim:
Para Léon Werth.
Peço às crianças que me perdoem por dedicar este livro a um adulto. Tenho uma boa desculpa: este adulto é o melhor amigo que eu tenho no mundo. Tenho outra desculpa: este adulto pode entender tudo, até livros para crianças. Tenho uma terceira desculpa: ele vive em França, onde tem fome e frio. Precisa de consolo. Se todas essas desculpas não são suficientes, então quero dedicar este livro à criança que este adulto já foi. Todos os adultos já foram crianças (mas poucos se lembram.) Então eu corrijo a minha dedicatória:
Para Léon Werth,
Quando ele era criança.
Se «O Principezinho» também fala de coisas sombrias como solidão, vaidade de poderes ou obediência cega à autoridade, é porque Antoine Saint-Exupéry está profundamente amargurado com o triunfo do regime nazi na Europa. Quando as tropas de Hitler chegam a Paris, durante a Segunda Guerra Mundial, ele decide exilar-se nos Estados Unidos, desembarcando em Nova Iorque no mesmo transatlântico que o cineasta Jean Renoir, em finais de dezembro de 1940. Para trás fica Léon, um homem judeu, adepto dos ideais anarquistas e 22 anos mais velho do que ele.
Léon Werth passa os anos da guerra escondido em Saint-Amour, uma aldeia montanhosa junto à fronteira com a Suíça. Antoine ainda o visitará algumas vezes, mas nunca voltará a França, onde nasceu em junho de 1900. O exílio, aliás, é a razão por que «O Principezinho» é primeiro publicado em Nova Iorque e só depois em Paris.
É a partir dos EUA que Antoine luta contra a ocupação nazi. Tem 43 anos e ultrapassa em oito anos o limite permitido para continuar a voar. Pior ainda, os ferimentos sofridos em acidentes anteriores causam-lhe muitas dores, não conseguindo sequer virar a cabeça para a esquerda para verificar se havia aviões inimigos. Ainda assim insiste até ao fim em participar nas missões militares.
Em abril de 1943, Saint-Exupéry parte com um comboio militar americano para Argel para voar com a Força Aérea Francesa e lutar com os aliados num esquadrão do Mediterrâneo. A 31 de julho do ano seguinte levanta voo num P-38 com o objetivo de fazer o reconhecimento de uma base aérea na Córsega. E desaparece sem deixar rasto.
Presume-se que o avião tenha sido intercetado pelos alemães. Os destroços só são recuperados 60 anos mais tarde, em 2003, e entregues no ano seguinte ao Museu do Ar e Espaço em Le Bourget, Paris. Léon Werth sabe da morte do amigo ao ouvir as notícias na rádio. Por essa altura, os aliados estão prestes a vencer a guerra, mas a tristeza impede-o de festejar. «Paz sem Tonio (era como chamava a Antoine) não é totalmente a paz», desabafa ele à imprensa. No final de 1944, a editora americana envia-lhe um exemplar e ele lê finalmente a dedicatória do amigo.
«O Principezinho» é uma obra universal porque fala sobre tudo o que é importante para a existência humana. A amizade, naturalmente, também está lá. E a amizade entre Léon e Antoine é o que, 80 anos depois da primeira edição do livro, continua a viajar pelo planeta.