Quem vive em Lisboa tem sorte. Não, não é pelo trânsito, considerado o pior da Península Ibérica. Nem pelas carruagens do metro apinhadas em hora de ponta. Ou sequer por causa dos aviões a fazerem razias nos prédios da cidade. Nada disso, é por causa de um artista com nome de anjo que, durante mais de 50 anos, espalhou a sua arte pelas ruas da capital. Querubim Lapa era como ele se chamava.
Quem conhece bem a obra dele, sabe que também andou por outros pontos do país, deixando a sua marca em edifícios como o Hotel do Mar, em Sesimbra, o Hospital Universitário de Coimbra, a Biblioteca José Saramago, em Almada, o Casino do Estoril, em Cascais, ou a fachada da Câmara Municipal do Cartaxo.
E voou para muito mais longe, soltando um rasto colorido em cidades como Los Angeles, Luanda, Brasília, Maputo, Copenhaga ou Frankfurt. Mas foi em Lisboa que pousou, desde que saiu de Portimão, no início da década de 1940, para estudar na Escola de Artes Decorativas António Arroio. Essa foi a sorte dos lisboetas.
Sorte mesmo! A arte dele está sobretudo na rua.
Sem bilheteiras à entrada ou multidões a bloquear a vista para as obras. Mas também sem funcionários dos museus a zelar por todas elas. As cerâmicas de Querubim estão onde as pessoas passam cheias de pressa, ao virar da esquina e ao relento.
É tão fácil esquecer que precisam de cuidado. Na Escola Secundária Dona Luísa de Gusmão, os azulejos começaram a cair quadradinho a quadradinho e, agora, há clareiras a ficarem maiores de dia para dia. Nem é caso inédito. O mesmo aconteceu em Campolide, na Escola Básica Mestre Querubim Lapa, onde foi preciso fazer tudo de novo.
Esperemos que a câmara municipal ou o Ministério da Educação acordem ainda a tempo de salvar o painel. Seria uma tristeza enorme abrir este vazio na cidade. Não muito diferente da Galeria Uffizi, em Florença, ficar sem a Vénus do Botticelli ou acabar a visita ao Museu do Prado, em Madrid, e não encontrar «As Meninas» de Velázquez.
No rasto de Querubim
Nas ruas, no metro ou interior dos edifícios, a arte do pintor-ceramista está espalhada por toda a cidade de Lisboa.
O lugar da arte de Querubim é lá fora. Haverá, no entanto, sempre gente a passar sem lhe prestar atenção. E gente que, quando menos esperar, irá reparar nela. Mas quem quiser mesmo seguir as peugadas dos seus painéis de cerâmica vai ter de percorrer a cidade de ponta a ponta.
Subir ao Centro Comercial do Restelo, descer à Avenida 24 de Julho, passar pela antiga Casa da Sorte, no Chiado, parar em frente à escola básica de Campolide, a tal com o seu nome, entrar na Reitoria da Universidade de Lisboa ou tomar um café na Pastelaria Mexicana, na Praça de Londres.
Um dia só não chega para passar ainda pelo Palácio da Justiça, pelo hall do Hotel Ritz, pelo Banco de Portugal, na Avenida Almirante Reis, pela Estação de Metro da Bela Vista ou pela Loja das Meias, na Avenida da Liberdade.
Foi a cerâmica que tornou Querubim Lapa conhecido em todo o lado. Mas o que ele queria mesmo era ser pintor. A verdade é que, além dos muitos quadros a óleo que pintou, também esculpia e assinava trabalhos em gravura ou tapeçaria. Foram, no entanto, os painéis cerâmicos a cobrir o exterior ou o interior dos edifícios que ficaram famosos. É o que mais dá nas vistas.
E o que, ao fim e ao cabo, lhe pagava as contas. Era principalmente isso que os arquitetos lhe pediam.
E, como ele não queria separar uma coisa da outra, moldou a cerâmica à pintura, à escultura e à arquitetura.
Nasceu então algo de novo na cidade. Fazer diferente foi, aliás, o que ele sempre procurou. A única maneira de dar um passo em frente é contrariar tudo o que está feito, dizia, quando entrevistado pelos jornalistas.
Deve ser por isso que nunca correu atrás das modas. Começou por ser neorrealista, mas a grande motivação até era contestar o regime de Salazar, que emoldurava toda a arte na corrente do modernismo. Querubim Lapa pintou mendigos, costureiras e principalmente mulheres do povo para denunciar a pobreza e a opressão exercida pelo Estado Novo.
De nenúfar em nenúfar
Querubim Lapa misturou todas as artes para inventar uma cerâmica colorida e diferente de tudo o que se fazia.
Ser desta ou daquela corrente artística não era o que lhe fazia feliz. Andou pelo expressionismo, deixou-se inspirar pelos «Nenúfares» de Monet, experimentou o abstracionismo, o cubismo e até voltou, por breves momentos, ao neorrealismo «atualizado» logo após o 25 de Abril. Mas sempre se sentiu deslocado no meio artístico.
Nem quando andou na Faculdade de Belas Artes, em Lisboa, fazia tudo o que os professores queriam.
Boa parte deles eram uns «botas de elástico», queixava-se. Estavam tão presos às regras que não deixavam margem para explorar novos caminhos. E ele não gostava nada de separar a arte em gavetas. Arquitetura de um lado, pintura do outro, escultura noutro, e a cerâmica, essa, nem estatuto tinha para entrar no clube dos eleitos. Era antes uma expressão «cansada», sem qualquer hipótese de sair da prateleira de bibelôs da casa da avozinha.
Querubim Lapa misturou todas as artes para fazer uma cerâmica colorida. Deu-lhe volume com os baixos-relevos e brilho com os vidrados. Aprendeu ainda com os operários da Viúva Lamego, a fábrica onde trabalhava, a fazer tintas e a usar materiais como o esmalte. Testou pigmentos e fez novas cores, trabalhou o barro para encontrar texturas diferentes e conversou com os arquitetos para estudar o melhor encaixe dos seus painéis nos edifícios.
Conversas no ateliê
A porta da oficina, na António Arroio, estava sempre aberta para os alunos poderem participar nos trabalhos de Querubim.
Foi assim, livre como um pássaro com asas de anjo, que Querubim Lapa trabalhou praticamente até ao último dia dos seus 90 anos. Mesmo depois de reformado, repartia o tempo entre o ateliê da Fábrica Viúva Lamego, onde executava as grandes obras, e a oficina na António Arroio, onde deu aulas durante 43 anos.
Os alunos da escola é que, tal como os lisboetas, também tiveram muita sorte. A porta da oficina estava sempre aberta. Os miúdos entravam para conversar, mas sobretudo para ver como ele trabalhava e até ajudá-lo a acabar muitos dos painéis.
Não se tratava de mais uma disciplina do curso que tinham de frequentar, nem sequer havia hora certa para acontecer. Mas foi ali que se puderam expandir em obras grandes, coisa pouco habitual nas salas de aula.
De serralheiro a artista
Querubim estava pronto para tirar o curso de serralheiro quando o professor o aconselhou a mudar-se para uma escola artística.
Agora que já ficamos a conhecer um bocadinho melhor a sua vida, só falta contar o último segredo:
Querubim Lapa não planeava ser artista. Era para ser antes serralheiro.
Mas, logo no primeiro ano do curso, o professor reparou nos seus desenhos e achou que o lugar dele era na Escola António Arroio. Terá sido ele, porventura, o grande responsável por ter mudado o destino do pintor-ceramista-escultor.
Mas, se é para reconhecer o mérito de todos os que influenciaram o percurso do artista, será preciso destacar igualmente o papel das mulheres da sua família. Foi precisamente para fugir às quatro irmãs que Querubim começou a rabiscar sozinho, deitado no chão do seu quarto. Elas já deviam saber, melhor que ninguém, o que era melhor para ele. 🤣
A casa de Querubim e Susana
Se quase toda a arte de Querubim Lapa está na rua, há uma parte que está dentro da casa dele e que, naturalmente, é privada. Ainda assim, no acervo do jornal Público, há uma apresentação multimédia que merece ser visitada.
Espreitem, é maravilhoso descobrir os cantos da casa e ouvir o artista a explicar os detalhes ocultos na azulejaria da cozinha, os bilhetes de amor para a Susana, a sua mulher, escondidos nos quadros do quarto ou no interior dos móveis e ainda os desenhos espalhados pelos seus cadernos.
O trabalho é parte do projeto «Como se não existisse nada – Querubim e Suzana» (2016) de Sibila Lind. A jornalista multimédia e realizadora acompanhou, durante um ano, o dia-a-dia de Querubim e Susana. E o que dali resultou foram muitas pequenas histórias de amor do casal.
Para visitar a casa, basta carregar aqui.
Nasceu em: Portimão, em 1925 (dia e ano não revelados)
Morreu em: Lisboa, 2 de maio de 2016