O direito à infância é básico, mas ainda há milhões de crianças sem cuidados médicos, com fome, a trabalhar quando deveriam estar na escola ou sem o amor da família. É por isso que, há 30 anos, as Nações Unidas adotaram a Convenção dos Direitos da Criança, o tratado mais reconhecido da História. Para assinalar o 30º aniversário, o Bicho-Que-Morde relembra o papel dos inventores que, a partir do nada, descobrem soluções tão simples para levar luz, água limpa ou abrigo aos lugares mais pobres do planeta.

Casa de banho com sanita, fogão para cozinhar ou sapatos para correr e brincar são aconchegos que toda a gente tem desde sempre. Não é bem assim. Nas aldeias indianas, nos ilhéus do Pacífico, nas favelas das cidades brasileiras ou nas escolas das vilas rurais do Gana, as coisas simples são as mais difíceis. A água não corre nas torneiras, a luz não se acende no interruptor e os hospitais não têm caminhas quentes suficientes para todos os bebés.

São histórias tristes, mas, tal como nos livros de banda desenhada, quando a vida se torna complicada, eis que aparecem uns super-heróis com poderes especiais. O poder é, nestes casos, a imaginação para construir aparelhos e objetos usando somente materiais baratos e fáceis de encontrar como argila, canas de bambu ou caixas de cartão. E os super-heróis são engenheiros, mecânicos, médicos, designers ou investigadores das universidades.

Todos eles estão convencidos de que, por mais longe que estejam, todas as crianças, papás e avós merecem tudo o que nós também temos. E é por eles acreditarem em histórias com finais felizes, que também nos fazem ter esperança num mundo mais justo para todos. Só por isso, vale a pena conhecer as incríveis invenções destes senhores.

As lâmpadas de Moser

Em Uberaba, as crianças costumavam fazer os trabalhos de casa à luz das velas e as mamãs cozinhavam com lamparinas à porta de casa. Miúdos e adultos andavam aos apalpões à procura dos lápis ou das panelas até Alfredo Moser ter uma ideia brilhante. Ele pegou numa garrafa de plástico transparente, encheu de água, despejou duas tampas de lixívia para evitar o verdete das plantas e colou-a ao teto com silicone. Fez-se luz.

Na cidade brasileira de Minas Gerais, boa parte dos 300 mil habitantes não tem eletricidade enquanto uma outra parte tem de suportar os apagões que volta e meia deixam tudo às escuras. Não é difícil imaginar como a invenção deste mecânico foi um sucesso em 2002. Toda a gente na cidade passou a ter iluminação em casa através de uma garrafa que a única coisa que faz é refletir a luz do sol durante cinco horas seguidas.

A ideia de Moser está hoje por todo o lado. A fundação My Shelter e os estudantes do Massachusetts Institute of Technology criaram o projeto Litro de Luz,  levando a invenção a 21 países, entre os quais Quénia, Colômbia, Honduras ou Filipinas. Mais de um milhão de lâmpadas Moser já foram instaladas e, recentemente, foi também acrescentada tecnologia LED para iluminar as casas durante toda a noite, se for preciso.

Água sobre rodas

Cynthia Koenig ficou boquiaberta quando descobriu que as mães das aldeias do Rajasthan, na Índia, demoravam horas e percorriam dezenas de quilómetros só para transportar água até às suas casas. Aproveitou então a sua viagem, em 2010, para andar de povoação em povoação a perguntar aos habitantes do que mais precisavam para conseguir levar a água até às cozinhas ou às hortas ao pé das casas.

A partir destas conversas, a diretora executiva da Wello, empresa social que dedica grande parte da sua atividade a levar água potável a países pobres, decidiu criar a WaterWheel, um bidão de plástico rotativo com dois tamanhos – 50 e 20 litros -, que pode também ser usado na rega e ainda para dar de beber aos animais.

Carrosséis de energia

Há vários tipos de crianças: as traquinas, as meiguinhas, as birrentas, as sossegadas, as dorminhocas, a lista poderia continuar porque há rapazes e raparigas de todas as cores e feitios. Cada uma é especial, mas todas, sem exceção, gostam de brincar. Nas escolas do Gana, porém, as crianças têm de ajudar os pais e só depois do sol posto é que vão à escola. Como não há eletricidade, as aulas são à luz dos candeeiros e as brincadeiras ao ar livre limitadas porque está demasiado escuro lá fora.

Será que tem de ser assim? – Perguntou Bem Markham, um ex-engenheiro da petrolífera ExxonMobil. Dessa dúvida nasceu a empresa Empower Playgrounds, que constrói carrosséis e outros brinquedos capazes de usar a energia cinética das brincadeiras para iluminar as salas de aulas. Genial, não é? As crianças brincam nos parques infantis e as luzes acendem-se. E como a energia dos miúdos é inesgotável não há qualquer risco de ficarem às escuras. O projeto, que contou com o apoio da Universidade Birgham Young, nos Estados Unidos, já permitiu construir 46 carrosséis para 15 mil crianças, suficientes para gerar eletricidade em 45 escolas do Gana e uma no Mali.

Sapatos que crescem

Assim que saiu da faculdade, Kenton Lee decidiu viver alguns anos no Quénia e trabalhar num orfanato de Nairobi. As crianças andavam descalças ou então com os sapatos rotos e, uma em particular, chamou a atenção dele. Tinha uns ténis pequenos e fez uma abertura para os dedos respirarem sem obstáculos. Foi nesse momento que o pastor de Nampa, uma cidade americana de Ohio, teve a ideia de criar uns sapatos que acompanham o crescimento das crianças. O resultado é The Shoe That Grows (O Sapato que Cresce).

Bastam meia dúzia de fivelas e uma tira para a sandália acomodar-se ao pé à medida que a criança cresce. O próximo passo é agora angariar fundos para conseguir distribuir gratuitamente os sapatos em África. Para isso Kenton Lee criou o site Because International, onde qualquer pessoa pode fazer a sua contribuição: uma doação de 9 euros chega para comprar um par.

Sanitas sem água

Um em cada três habitantes do planeta – 2,4 mil milhões – vive ainda sem saneamento básico. A grande maioria está em África e na Ásia, onde muitas habitações não têm esgotos nem casa de banho. Sabendo que este é um dos problemas mais sérios que o mundo enfrenta, uma equipa da Universidade de Cranfield, na Inglaterra, inventou uma sanita que, em vez de água, usa a nanotecnologia – ciência que trabalha no nível das moléculas e dos átomos – para tratar a urina e as fezes. Melhor ainda, transforma tudo isso em energia e água limpa para ser usada na rega e na limpeza da casa. E oferece ainda como bónus um fertilizante para hortas e plantas. O sistema não precisa de rede de esgotos ou estações de tratamento, mas o desafio é conseguir torná-lo barato, pois cada sanita ainda custa cerca de 200 euros, missão que conta com a ajuda da Fundação Bill and Melinda Gates.

Incubadora de bebés portátil

Nascer antes do tempo nos países pobres é muito mais arriscado do que em qualquer outro lugar. A temperatura dos quartos pode ser demasiado fria para os bebés prematuros que precisam de incubadoras logo nas primeiras horas de vida. Esta foi a razão para um grupo de estudantes da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, criar o Embrace Warmer. Parece um saco de dormir, mas é mais sofisticado. Cada kit inclui um aquecedor e almofadas que regulam a temperatura ideal para manter os recém-nascidos aquecidos. O seu custo, cerca de 200 euros, é extraordinariamente mais barato do que as incubadoras profissionais dos hospitais. A ideia da universidade passa por arranjar parcerias para distribuir o Embrace Warmer em clínicas, hospitais públicos e organizações sem fins lucrativos dos países em desenvolvimento.

Repelente de mosquitos

Basta fixar um autocolante à camisola e fica-se invisível. Não acreditam? É porque ainda não conhecem o Kite Patch, um adesivo inventado pelos investigadores da Universidade Riverside, na Califórnia, que faz desaparecer qualquer pessoa, mas apenas aos olhos dos mosquitos. Explicando melhor: o dióxido de carbono que o corpo solta é o principal responsável por estes insetos se sentirem tão atraídos pela nossa pele. O que os cientistas fizeram foi inventar o diacetil, uma substância produzida durante a fermentação da cerveja e do vinho, que bloqueia os recetores de CO2 dos mosquitos.

Os testes foram um sucesso e a universidade, em parceria com várias instituições, já começou a distribuir gratuitamente o adesivo no Uganda, onde 60% das crianças adoecem por causa da malária. O objetivo é comercializar a invenção no Ocidente para financiar a distribuição gratuita nos países mais afetados pela febre amarela, dengue, malária e outras doenças causadas por mosquitos.

Palhinha purificadora

No nosso planeta há 783 milhões de pessoas que ainda não têm água potável. As crianças adoecem só por beberem dos poços ou dos rios e charcos poluídos. Na Suíça, a empresa Vestergaard Frandsen inventou uma palhinha que filtra a água na esperança de reduzir as epidemias de diarreia e de outras doenças muito perigosas nos países em desenvolvimento. A LifeStraw purifica a água enquanto se bebe.

O tubinho, composto por dois filtros e uma câmara com iodo, consegue eliminar 99% das bactérias e parasitas em mil litros de água. Ou até mais se o modelo for o LifeStraw Family, que consegue purificar até 18 mil litros de água, o suficiente para dar de beber a uma família de cinco pessoas durante três anos.

Lentes em estado líquido

Nos países em desenvolvimento, a miopia ou estigmatismo são doenças dos olhos que impedem mais de um milhão de pessoas de verem uns quantos palmos à frente. O problema é sério porque interfere na aprendizagem dos alunos na escola e também não se resolve facilmente porque óculos ou lentes de contacto são luxos para as famílias carenciadas. Um fabricante de produtos químicos sediado nos Estados Unidos, a Dow Corning Corporation, e uma organização britânica, Centre for Vision in the Developing World, inventaram uns óculos especiais para todas estas crianças e também para as famílias delas.

Além de serem baratos porque são produzidos em larga escala, não precisam de oftalmologistas ou optometristas para serem receitados. A invenção do diretor do centro, Joshua Silver, foi batizada de Adspecs e é um par de óculos que distribui quantidades controladas de silicone líquido pelas lentes até a vista conseguir ver com nitidez. O projeto, conhecido como Child Vision, já foi responsável por distribuir mais de 100 mil pares de óculos por todo o mundo, mas o objetivo é atingir 100 milhões de pessoas até 2020.

Mochilas que viram carteiras de escola

Nas aldeias ou nos bairros dos subúrbios de Mumbai, na Índia, o regresso às aulas após as férias do Diwali é uma barulheira, como provavelmente em qualquer escola de qualquer parte do mundo. Os alunos chegam pela manhã, tiram os cadernos e os lápis da mochila e logo de seguida desmontam-na e voltam a montá-la. Só que em vez de uma mochila passam a ter uma carteira para escrever e pousar os livros.

A iniciativa é da organização não governamental AARAMBH, que trabalha com crianças e famílias carenciadas de Mumbai. E a ideia é tão simples que cada mochila/carteira custa menos de 5 cêntimos. As caixas de papelão são recolhidas nos centros de reciclagem, escritórios, lojas, entre outros locais. Os voluntários levam a matéria-prima para oficinas onde depois fazem os moldes e recortam o papelão. O projeto chama-se The Help Desk e além de ser uma solução muito barata é também ecológica pois ajuda a combater o desperdício e a promover a reciclagem.