O Bicho-que-Morde não é de impingir os seus gostos a ninguém, mas há que dar razão aos maluquinhos do comboio. Não é só porque, entre todos os transportes, é o mais amigo do ambiente. Nem somente porque, nos seus carris, surgiram muitos enredos dos clássicos da literatura. Ou tão-pouco porque a sua chegada trouxe o progresso a cidades, vilas e regiões. É por tudo isso e sobretudo porque viajar não significa correr com sofreguidão até ao destino. O caminho para lá chegar é o que mais importa. Tal e qual as grandes viagens que fazemos para alcançar as nossas maiores conquistas.

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Alguém pode explicar qual é a piada de viajar de avião? Viajar de avião é como entrar num cilindro metálico, com duzentos e tal passageiros esperando o sinal luminoso para desapertar o cinto e partir à descoberta de um destino. O comandante, fechado no cockpit, tem um pacto com o relógio e por isso é cego. Só lhe interessa cumprir horários e aterrar em segurança.

Mas, qual é a urgência? Uma viagem não é uma corrida do ponto A ao ponto B. Não se deixem enganar, uma viagem não começa quando se desembarca no aeroporto. Uma viagem começa quando algo – nunca sabemos muito bem o quê – nos impele a querer descobrir um lugar. Uma viagem começa sempre com um sonho. E podemos estar uma vida inteira a sonhar com o Japão, a Índia ou o Alasca. 

Uma verdadeira viagem tem dezenas de etapas e ainda milhares de pontos entre a partida e a chegada que se revelam pela janela. É verdade que podemos fazer o mesmo pela janelinha do avião, mas a visão que temos das alturas são pontinhos indistintos, terras retalhadas aos quadrados, luzes minúsculas ou tapetes acolchoados de nuvens a esconder tudo o que se passa lá em baixo.

Atravessamos cidades, florestas, desertos, países, mares e continentes sem desfrutar de uma única paisagem.

O maquinista do comboio, esse, faz questão de trilhar a ferro os melhores caminhos para passar por arrozais de perder de vista, túneis, penhascos e pontes suspensas, crianças a brincar em campos improvisados de futebol, roupa estendida nas varandas, ovelhas enfastiadas a ruminar nas pradarias, gatos a dormitar nos apeadeiros, vinhas, plantações de chá e café, vales e cordilheiras.

Carro, comboio ou avião?

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 O comboio polui 32 vezes menos do que o carro e 23 vezes menos do que o avião. 

A esta altura da viagem, haverá provavelmente um empertigado a lembrar que, com o carro, podemos percorrer os mesmos lugares. Sim, podemos, e ainda com a vantagem de parar sempre que nos apetecer, passar a noite numa cidadezinha simpática ou até mudar o roteiro das férias. Mas convém relembrar que o automóvel é a última hipótese a considerar.

Se o avião é uma má escolha para o ambiente, o automóvel consegue ser pior. Na corrida pela preservação do planeta, ele chega sempre em último. A agência francesa para a transição ecológica (ADEME) cronometrou esta competição e concluiu que o comboio polui 32 vezes menos do que o carro e 23 vezes menos do que o avião.  Por isso, deixemos o egoísmo de lado e voltemos ao bom e velho comboio.

Há que ter apreço pela sua História, ela própria uma viagem a transportar, desde 1825, carga e passageiros em locomotivas a vapor que vieram com a Revolução Industrial. A Portugal, só chegariam três décadas depois com a primeira ligação ferroviária entre Lisboa e Carregado.

Desde o século 19, o comboio trilhou caminhos por entre desertos, montanhas e selvas e inaugurou cidades e vilas, que prosperaram como cogumelos em lugares até então longínquos e inóspitos. O Entroncamento, no distrito de Santarém, é um exemplo clássico. Com a chegada dos caminhos de ferro, deixou de ser um uma povoação desolada para se tornar numa freguesia, em 1926, passando a vila em 1945 e, por fim, elevada a cidade em 1991.

O Entroncamento deve tudo ao comboio, até o nome pelo qual ficou conhecido por ali se cruzarem (ou entroncarem) as linhas do Norte (a ligar Lisboa ao Porto) e da Beira Baixa (Entroncamento – Guarda).

Tama, chefe da estação

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Sampei, CC BY-SA 3.0, via Japanese Language Wikipedia

 Com a sua eficiente fofura, a gata japonesa atraiu milhões de viajantes até à estação moribunda de Kisha.

Não por acaso, sempre que um governante, em qualquer parte do mundo, ameaça encerrar uma estação ferroviária, a população sai à rua, esperneia e luta para o comboio continuar a passar pela sua terra. O apeadeiro de Kishi, na cidade japonesa de Kinokava, passou precisamente por esse tumulto quando em 2007 teve ordem para encerrar devido ao fraco movimento. Num ato desesperado, os funcionários nomearam Tama como a nova chefe da estação e diretora de operações.

Nada disso seria especial não fosse o cargo ser desempenhado por uma gata.

Tama, apenas com a sua fofura (e competência), atraiu milhões de viajantes, que quiseram vê-la no seu escritório, trajada a rigor. Durante oito anos, a gata do anterior chefe da estação conseguiu que o comboio continuasse a parar em Kishi, contribuindo muitíssimo para desenvolver a economia da vila.

O mandato dela terminou com a sua morte em 2015. Mais de três mil habitantes compareceram ao seu funeral. Nitama, o gatinho que a substituiu, mantém até hoje a estação movimentada com centenas de passageiros a descer todos os dias no apeadeiro para tirar selfies. Kishi é uma entre muitas povoações a reconhecer a importância do comboio para não acabarem riscadas do mapa.

As viagens da nossa vida

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 Os percursos que fazemos ao longo da vida são travessias de comboio com dezenas de etapas ou apeadeiros.

Além de tudo o que significa para o progresso, o comboio é ainda a imagem perfeita para as viagens da nossa vida. Sejam elas pelo nosso interior, ajudando-nos a crescer, ou pelas nossas conquistas (e derrotas), com centenas de paragens até ao destino planeado nos nossos sonhos.

Nenhum médico para chegar a médico entra num túnel do tempo e sai de lá equipado de bata e estetoscópio pronto a tratar da nossa saúde. Um médico, um carpinteiro, uma arquiteta, um barbeiro, uma bióloga, um pianista ou uma presidente de uma empresa não são o que são sem primeiro terem feito uma grande viagem. Muitas vezes, errando no caminho, voltando a trás, mudando ou demorando mais em alguns apeadeiros até desembarcar, finalmente, no destino.

As nossas viagens pessoais são longas travessias em que não é possível saltar etapas. Não é possível porque cada etapa é também ela uma viagem dentro de uma viagem. E qual é a piada de ler ou ouvir uma história com princípio e fim, mas sem a parte do meio? A mesma, se calhar, que viajar de avião quando temos o comboio.

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🚂Se ficaste com uma vontade irresistível de viajar, dá um salto às florestas equatorianas e descobre por que são os pigmeus tão baixinhos.

Imagem da gata Tama | Autor Sampei, CC BY-SA 3.0, via Japanese Language Wikipedia