Quem anda na estrada sabe que é verdade. Poucos são os dias em que não se ouve um insulto ou, pior ainda, ameaças por coisas sem importância nenhuma. Não é só a raiva que toma conta dos condutores e empesta o ambiente tanto ou mais do que o fumo a sair do tubo de escape. Os automobilistas são, muitas vezes, piores do que crianças mimadas. Roubam lugares de estacionamento, esquecem-se do pisca quando mudam de faixa, furam filas, aceleram no semáforo amarelo e, com isso tudo, acabam por se esquecer da segurança deles e da dos outros.
Algo de estranho acontece a boa parte dos condutores quando pegam no volante. Parece que passam para uma dimensão paralela. Como se entrassem num túnel protegido dos olhares dos outros. É como se ficassem invisíveis, explicam os especialistas que estudam esse comportamento. Em vez de pessoas, vêem tipos de carros ou um fluxo interminável de automóveis. Esse sentimento de anonimato é o que os leva a se comportarem de uma forma que nunca se comportariam se estivessem no trabalho, na praia, na fila do supermercado ou a andar a pé na rua.
Na estrada, não há dedos acusadores e ninguém para prestar contas. Só máquinas motorizadas.
Como se, de repente, os condutores regressassem à adolescência e ficassem sozinhos em casa. É o sinal verde para quebrar regras e ser rude com os outros sem sentir uma ponta de culpa. Estão prontos para atirar com a raiva ao primeiro que se meter com eles.
E o que não faltam são gatilhos para atiçar a ira. Os muitos inquéritos já feitos apontam os fura-filas como a principal irritação dos condutores. Excesso de velocidade, exibições hostis, ultrapassagens perigosas, razias, mudança de faixa sem uso de pisca e condução irregular são outros comportamentos que também tiram os automobilistas do sério.
Treinar todos os dias para travar a raiva
O autocontrolo pode ser exercitado para ficar mais forte e dominar os instintos primários.
Conduzir é algo perigoso e, por isso, quando alguém coloca a vida dos outros em perigo, não sobra réstia de compreensão ou de boas maneiras para quem é irresponsável. Na estrada, o autocontrolo – recurso que todos temos para segurar os impulsos – está geralmente no nível mínimo. Há demasiadas coisas a acontecer e que têm prioridade.
Estar atento à estrada, verificar o espelho, monitorizar a velocidade, estar vigilante com os restantes automobilistas, controlar o tempo para não chegar atrasado. Nessas condições, é muito mais difícil dar ouvidos ao anjinho que, nos momentos de crise, nos diz para contar até 10 antes de abrir a boca ou martelar a buzina.
E isto sem contar com o cansaço que o condutor já carrega no fim de um dia de trabalho e que, segundo os especialistas, explica porque há mais tolerância com os erros dos outros no trajeto para o trabalho do que no regresso a casa.
Quando a fadiga pesa, a irritação é muita e a frustração também, é bem mais fácil ceder aos impulsos primitivos.
Embora seja mais difícil, o autocontrolo não é impossível. Há quem defenda que, tal como um músculo, a força de vontade pode ser treinada todos os dias para ficar cada vez mais forte e dominar os instintos primários. E a estrada é o melhor ginásio para praticar a autodisciplina em pequenas doses diárias. Os especialistas estão, aliás, convencidos de que, com alguma persistência, até aqueles que fervem em pouca água podem vir a ter bons desempenhos, ao perceberem que o seu esforço beneficia não só a si próprio como aos outros também.
Respirar, contar até 10 e seguir caminho
Estar focado na condução é o que mantém a calma e leva a perceber que o desgaste não conduz a lugar nenhum.
Quando se está concentrado na condução, é muito mais fácil manter a calma. E quando se está calmo não é tão difícil reconhecer que nem sempre se é o condutor mais azarado, preso na faixa mais lenta de todas. Ou que insultar o colega do lado não leva a lado nenhum.
Um bom treino – aconselham os especialistas – é imaginar cenários para simular e testar as nossas reações. Tal e qual as crianças quando brincam ao faz-de-conta. «Se um parvalhão me encandear com os máximos para sair da faixa do meio, vou desviar-me sem fazer ondas.» «Se respeitar os limites de velocidade, vou ter menos multas». «Se chegar 5 ou 10 minutos atrasado, não vai ser o fim do mundo». «Um minuto ou dois parado no semáforo não faz assim tanta diferença».
É preciso ter calma e cortesia
A estrada é um bom ginásio para treinar a disciplina e alargar a cortesia para lá da estrada.
Com tempo e persistência, qualquer condutor ou condutora estará apto a dominar os instintos básicos. Perante momentos enervantes, todos são capazes de lembrar o inútil que é o desgaste de energia em situações que escapam ao nosso controlo. E assim, ao muscular a nossa força de vontade com doses de calma e cortesia, não estaremos apenas a despoluir o ambiente no trânsito, mas também a proteger a segurança de todos. E, já agora, porque não estender esse treino fora da estrada?
Este tema só fica completo com a leitura de: Porque existem engarrafamentos sem causa nenhuma?
Ilustrações de: © MIke Kline, CC BY 2.0
Imagem de abertura trabalhada a partir da fotografia original de: © Tokota, Creative Commons – CC BY 3.0