Em 2020, comemoramos os 190 anos do nascimento de João de Deus. O dia de aniversário foi a 8 de março, mas a festa é para durar o ano inteiro. É bem merecido, tendo em conta que foi com a sua Cartilha Maternal que adultos, crianças, ricos e pobres puderam não só aprender como também ensinar a ler. Esta é a grande revolução do seu método: tão simples – mas muito exigente – que até as mamãs podiam mudar o futuro dos filhos. O Bicho Que Morde dedicou-lhe 10 cartilhas com o essencial de um modelo que até hoje, na era das tecnologias, é usado para ensinar os mais novos.
O ABEcedário aos pedacinhos
Quem não se lembra de debitar o alfabeto de cor e salteado antes sequer de começar a ler? O método ainda é usado, mas foi preciso a Cartilha Maternal de João de Deus chegar às escolas para baralhar as letras e as ideias dos professores e dos pedagogos. Com o novo sistema, não é preciso decorar sofregamente as 26 letras do abecedário. Elas são apresentadas aos poucos e sem pressas. Primeiro as vogais – a-e-i-o-u – e só depois as consoantes, começando pelo v, f e j. Cada uma com um desenho, um som e combinações muito particulares. Mas todas unidas para que as crianças entendam que as letras só ganham sentido quando ligadas aos significados das palavras.
A união de Preto&Cinza
A forma como as letras são apresentadas na cartilha é uma das maravilhosas inovações de João de Deus. Até hoje, é difícil encontrar um método tão eficaz. E tão simples. Preto e cinzento fazem a divisão das sílabas. Com estas duas cores, evita-se esfrangalhar as palavras com espacinhos ou travessõezinhos. Elas ficam inteiras sem perderem o significado. E as sílabas, essas, destacam-se à mesma, não precisando de brigar para conquistar a sua autonomia.
A reVOluçÃo das letras
Como tudo o que rompe com a tradição, a Cartilha Maternal também provocou uma onda de protestos, que encheram as páginas dos jornais. O principal crítico era o escritor e pedagogo António Feliciano Castilho, apesar de também ele ser contra os métodos de repetição e de soletração. A sua revolta, no entanto, era compreensível, tendo em conta que era o autor da cartilha mais usada nas escolas. Nem todos arrasaram a obra de João de Deus. Os especialistas ficaram divididos. A Professora Carolina Michaelis esteve entre as principais defensoras do novo método.
Acabar com o analfabetismo
O analfabetismo em Portugal, em finais do século 19, era uma tragédia. Em 1878, por exemplo, quase 80% da população não sabia ler nem escrever. Esta foi a razão que levou João de Deus a publicar a sua cartilha. O método era tão simples que qualquer pessoa, com o mínimo de instrução, poderia assumir o papel de professor. E daí também o nome de Cartilha Maternal: o ensino poderia até ser feito em casa pelas mamãs que sonhavam com um futuro melhor para os filhos.
O coro dos desafinados
Quem viu filmes de época já sabe como se ensinava antigamente nas escolas. O professor, muito carrancudo, anda para trás e para adiante com as mãos cruzadas nas costas, enquanto os alunos vão rezando em voz alta a tabuada ou o texto do livro de leitura. Era tudo o que João de Deus detestava. O método dele era feito para grupos de três ou quatro crianças, misturando os extrovertidos com os tímidos, para que uns puxassem pelos outros. Cada um falava na sua vez, mas todos estavam concentrados na mesma tarefa. Cada grupo tinha uma curta lição por dia, exigindo ao professor/educador uma boa gestão do tempo.
A brincadeira como método
Aprender não é marrar a cabeça contra o manual da escola. Aprender é usar o que se aprendeu em todo o lado, até nas brincadeiras. Mas, no século 19, ninguém se preocupava com isso. Ninguém, ponto e virgula; João de Deus era um grande adepto das brincadeiras. O seu método de iniciação à leitura incluía muita galhofa. Rasgar papel, formar conjuntos de palavras, sublinhar ou desenhar as letras, usando diferentes técnicas e materiais, como giz molhado no leite, lápis ou tintas caseiras.
Ou carradas de jogos que punham as crianças a procurar o M, o T ou B em labirintos de papel, recortar jornais e revistas ou encher as letras de arroz ou massinha. E ainda escrever frases curtas a partir de uma palavra dada, usar cantigas e gestos, histórias e muitas outras atividades que puxam pela criatividade do professor/educador e pela imaginação dos alunos.
Ninguém fica para trás
Além das 25 lições (+ um Hino de Amor), a Cartilha Maternal incluía ainda um Guia Prático para o professor, com muitas propostas de atividades para a turma, mas também com um gráfico para cada criança, onde, todos os dias, eram registados o nível de aprendizagem, as dificuldades e as necessidades individuais. Cada aluno seguia assim a cartilha ao seu próprio ritmo, estivesse ele em sintonia ou não com o ritmo da turma.
Dez anos para acabar a cartilha
Em 1865, a editora Rolland desafiou João de Deus a criar um método de leitura. Ao fim de dez anos, ele acabou finalmente a obra, mas, entretanto, a editora faliu. O autor não demorou muito a encontrar quem lhe publicasse a sua cartilha. Em 1876, a Livraria Universal de Magalhães & Moniz lança a primeira edição. Doze anos mais tarde, as Cortes (parlamento) adotam a «Cartilha Maternal ou Arte da Leitura» como o método oficial. E, a partir de 1911, apesar de o seu ensino se ter tornado facultativo, a Primeira República continuou a promover a cartilha nas escolas primárias.
Uma cartilha na era das tecnologias
Ainda hoje, o sistema pedagógico criado com a Cartilha Maternal é usado para ensinar as crianças a ler. João de Deus fundou o seu próprio espaço de ensino, que, em 1922, passou a chamar-se Associação de Jardins-Escolas João de Deus. Atualmente, são 43 os jardins-escola espalhados pelo país, a ensinar quase 9 mil alunos a ler.
O poeta, o escritor, o jornalista e o deputado
João de Deus ficou conhecido como um dos maiores pedagogos portugueses, mas foi muito mais do que isso. Foi também jornalista, tradutor de obras literárias francesas e ainda deputado sem filiação partidária. Mas é com a poesia que se torna conhecido, usando-a, muitas vezes, para denunciar os grandes problemas sociais – a pobreza, a falta de habitação e de cuidados de saúde e, claro, o analfabetismo. Entre as muitas citações que lhe são atribuídas, a mais popular é esta:
«Ser homem é saber ler. E nada mais importante, nada mais essencial que essa modesta e humilde coisa chamada – primeiras letras.»
Nasceu em: São Bartolomeu de Messines (Silves, Algarve), a 8 de março de 1830
Morreu em: Lisboa a 11 de janeiro de 1896.
Casou-se com: Guilhermina Battaglia
Filhos: Maria Isabel, José, João de Deus Júnior e Clotilde Rafaela.
Obras mais conhecidas: Cartilha Maternal, Flores do Campo, Folhas Soltas, Campo de Flores.
Cargo vitalício: A 2 de Agosto de 1888, foi nomeado Comissário Geral do Método de Leitura Cartilha Maternal, com o vencimento anual de 900 reis (uma pequena fortuna para a época!). Tinha como funções ministrar cursos aos professores das escolas públicas de instrução primária e visitar as escolas para verificar se o método estava a ser bem aplicado.
Lê também, se quiseres: Camões. Como quase nada sabemos sobre o maior poeta português.
Fontes consultadas: João de Deus: Método de Leitura com Sentido, Universidade de Braga (2006), de Isabel Ruivo. |
A Cartilha Maternal ou Arte de Ler de João de Deus (1876): invenções tipográficas e alfabetização popular em Portugal, de Justino Magalhães, Instituto de Educação da Universidade de Lisboa.