Por ser malvisto, por ousarem entrar em domínios só de homens ou por estarem casadas com famosos, muitas mulheres deixaram para trás carreiras artísticas, literárias ou científicas. Mas já é hora delas saírem da sombra e começarem a brilhar.
Maria Anna Mozart. Fechada em casa
Toda a gente sabe quem foi Wolfgang Amadeus Mozart, mas quantos conhecem a sua irmã mais velha? É natural que só poucos levantem o dedo. Se, no entanto, a deixassem continuar a carreira artística, ela teria sido tão revolucionária como o compositor austríaco do século 18. Maria Anna começou a ter lições de piano com o pai aos sete anos, deixando toda a gente boquiaberta com o seu talento.
O irmão, cinco anos mais novo, ganhou o gosto pela música ao vê-la tocar, chegando os dois a fazerem algumas digressões pela Europa. As biografias de Mozart estão repletas de memórias de infância em que ambos brincam de reis e rainhas, usando uma linguagem secreta para impedir que o seu reino fosse desvendado por adultos. As primeiras cartas de Wolfgang Amadeus endereçadas, anos mais tarde, à irmã estão ainda cheias de códigos que só os dois podiam decifrar.
🎶🎵Sempre foram unidos, não passando um sem o outro até Maria Anna completar 18 anos.
Esse foi o momento em que os pais decidiram já não ser apropriado uma rapariga casadoira prosseguir a carreira de artista. Ela ficou, por isso, em casa com a mãe em Salzburgo, enquanto Mozart e o pai continuaram as digressões, alcançando enorme popularidade na década de 1770. O irmão compôs várias peças musicais para a irmã tocar, entre as quais «Prelúdio e Fuga em Dó maior, K.394», enviando-lhe também com frequência as partituras dos seus concertos.
Maria Anna acabou por se casar com um rico magistrado, Johann zu Sonnenburg, em 1783, indo viver para a vila austríaca de Sankt Gilgen. Voltaria a Salzburgo duas décadas mais tarde e depois da morte do marido, começando, nessa altura, a trabalhar como professora de música.
Camile Claudel. A pedra no caminho
Camile não perdia uma oportunidade, quando criança, para escapulir de casa com o irmão Paul Claudel, em Villeneuve-sur-Fère, e correr para os campos. Regressava horas depois, maltrapilha e carregada de miniaturas de Napoleão, David, Golias e outras figuras moldadas no barro das montanhas que cercam a vila francesa. Ela já sabia que não escaparia ao ralhete da mãe, mas o pai, esse, ficava embevecido com as personagens que saiam da sua imaginação. Tinha talento a miúda! – pensou ele –, colocando-a na Académie Colarossi, uma das poucas escolas de arte que, nessa altura, aceitavam raparigas.
Assim que completou 17 anos, Camile foi estudar para Paris, mas a vida na capital era dispendiosa. Não conseguindo pagar os estudos e o alojamento, aceitou trabalhar no ateliê do escultor Auguste Rodin, que embora não fosse ainda muito conhecido do público, já era respeitado entre os colegas.
🔨Camile depressa se tornou na preferida do artista, que caiu de amores por ela.
Foi a sua perdição. Rodin era casado e a relação deles foi sempre clandestina, tornando-se ela alvo das más-línguas da sociedade parisiense. Camile acabaria por se afastar do escultor, mas nunca se livrou da fama com muita gente a acusá-la de copiar o trabalho do mestre.
Acusações tremendamente injustas, pois ela tinha uma técnica própria inspirada na arte oriental e no realismo fantástico que deram beleza e movimento às suas obras. Os especialistas acreditam que a escultora nunca ganhou reconhecimento por ter ousado entrar num mundo de homens e por ter também feito frente a um dos maiores vultos da escultura na Europa.
Camile viveu os anos seguintes trancada no seu estúdio, muito atormentada por julgar que Rodin era o principal obstáculo a impedir o seu sucesso. A saúde mental foi-se deteriorando até o irmão a internar numa instituição. Ali ficou mais de três décadas, morrendo, em 1943, com 79 anos e no total esquecimento. Hoje é considerada umas das grandes artistas de todos os tempos. Não há muitos anos, o seu legado foi reconhecido com o Museu Camille Claudel, inaugurado, em 2017, na cidade de Nogent-sur-Seine, a poucos quilómetros de Paris.
Dina Dreyfuss. Camuflada na Amazónica
Durou pouco o casamento de Dina Dreyfuss e Claude Lévi-Strauss – sete anos, entre 1932 e 1939. Ele partiu para Martinica, no Caribe, para escapar à ocupação nazi, em França. E ela juntou-se à Resistência, dando também aulas em Montpellier sob o nome falso de Denise Roche. Mas não foi só o matrimónio que acabou. Claude eliminou também praticamente todos os vestígios da ex-mulher nos trabalhos de campo que fizeram juntos com os índios do Mato Grosso, no Brasil. No clássico «Tristes Trópicos» – obra que se torna num marco da Antropologia –, Dina é mencionada uma única vez, mas só para lembrar o momento em que teve de abandonar a equipa por causa de uma infeção num olho.
É com este livro, publicado em 1955, que o antropólogo francês de origem belga se torna famoso, ao lançar ideias muito diferentes do pensamento da época. Lévi-Straus é dos primeiros autores da Europa «eurocêntrica» a defender que os indígenas da América do Sul não são «inferiores» ou «superiores» a outros povos e a contestar a divisão entre «civilizados» e «selvagens». Ninguém lhe retira o mérito, mas o que hoje muitos investigadores criticam é a tentativa de apagar a influência de Dina Dreyfuss no seu trabalho. Mais tarde, Claude publica, em 1994, o álbum «Saudades do Brasil», onde reúne 180 fotografias dessa expedição, sem uma única imagem da ex-companheira.
🙈🙉🙊Só em 2001 surgem fotos a provar que ela também participou na expedição.
Dina Dreyfus, depois da separação, voltou a ensinar Filosofia, introduzindo novas formas de ensino audiovisual na disciplina. A ela se deve, por exemplo, os primeiros programas escolares de radiotelevisão nesta disciplina, produzidos de 1964 e 1968. Mas, ainda antes de participar na expedição com o marido na Floresta Amazónica, já tinha sido professora na Universidade de São Paulo, criando com o poeta e historiador de arte Mário de Andrade, a primeira Sociedade para Etnografia e Folclore, no Brasil.
Mileva Marić. O génio atrás da porta
Mileva Marić e Albert Einstein conheceram-se no Instituto Politécnico de Zurique, uma das poucas universidades europeias que, nas últimas décadas do século 19, aceitava raparigas. Eram ambos excelentes alunos e fascinados pela Física, interesse que os levou a passar cada vez mais tempo um com o outro. Foi por essa altura que começaram a trabalhar juntos, mas após o casamento, em 1913, Mileva dedicou-se mais aos filhos, e principalmente a Hans Albert, que sofria de esquizofrenia. Com o passar dos anos, o casal foi-se afastando, acabando por se separar, em 1919, ano em que Einstein se muda definitivamente para Berlim e Mileva regressa a Zurique com os dois filhos.
Em nenhum dos trabalhos que Einstein publicou aparece o nome de Mileva como coautora .
Mas, existem dezenas cartas trocadas entre o casal que foram conservadas e que comprovam a sua importância nas teses científicas publicadas pelo marido. Em muitas passagens, ambos falam dos «nossos trabalhos», da «nossa teoria da relatividade», do «nosso ponto de vista» ou dos «nossos artigos».
A decisão de publicar os trabalhos apenas com o nome de Einstein terá sido, segundo os investigadores, tomada em conjunto. Radmila Milentijević, autora da biografia «Mileva Marić – A Vida com Albert Einstein», acredita ela queria ajudar marido a ganhar notoriedade para que lhe fosse mais fácil arranjar um emprego. Conscientes do preconceito contra as mulheres, ambos sabiam que uma publicação assinada em parceria com uma mulher seria facilmente menosprezada.
Lee Miller. De aprendiz a mestre
A carreira artística de Lee Miller começou em 1929, quando deixou Nova Iorque e foi trabalhar como aprendiz no estúdio de Man Ray – famoso surrealista americano, exilado em França. Lee ajudava-o não só pousando como modelo, mas também agarrando nas encomendas dele, permitindo-lhe ter mais tempo para pintura. Muitas das fotos dessa altura acabaram por ficar misturadas no ateliê e erradamente atribuídas ao mestre.
Lee Muller, contudo, não ficou muitos anos presa ao estúdio de Man Ray, acabando por construir uma carreira independente à custa da ousadia e da dedicação à fotografia.
📸Ela ficou para a História como a primeira mulher correspondente de guerra para a revista americana «Vogue».
Há centenas de fotos icónicas da sua autoria e que são registos raros da Segunda Guerra Mundial. A mais famosa é o autorretrato na banheira de Hitler, horas depois do Führer fugir de Munique. Podes ver a foto aqui.
Lejárraga. A mulher sem nome
María de la O Lejárraga foi muito mais do que uma romancista espanhola. Escreveu, no início do século 20, ensaios, peças de teatro ou traduções de grandes autores, mas o seu nome quase nunca apareceu na capa de um livro. Quem assinou as suas obras foi o marido Gregorio Martínez Sierra. O pacto entre ambos tinha como principal objetivo não arreliar a família dela, que desaprovava as suas aspirações literárias nem queria que ela abandonasse a carreira de professora.
«Viagens de uma Gota de Água» (contos infantis), «Como os Homens Sonham com as Mulheres», «Teatro de Exílio», «Tragédia de Vida e Outras Diversões» são algumas das obras dela assinadas pelo marido, que obtiveram um enorme sucesso na altura.
🖋Apesar de não reclamar a autoria dos livros, havia uma certa desconfiança entre o público de que seria ela a escrevê-los.
A sua marca era, por diversas vezes, demasiado visível para ignorar. Gregório chegou a fazer discursos feministas e publicar textos escritos pela mulher, que levantaram algumas suspeitas – é o caso do livro «Cartas às Mulheres de Espanha», em que defende a independência e a liberdade feminina.
Apesar de viver na sombra, Lejárraga nunca se furtou a uma boa batalha política, tornando-se ativista pelos direitos das mulheres e deputada socialista na Segunda República. A partir da década de 1950, após a morte do marido e exilada na Argentina, passa a assinar as suas próprias obras com o pseudónimo María Martínez Sierra para poder beneficiar dos direitos autorais, que, entretanto, foram reivindicados pela filha de Gregorio.