São muitos os perigos a ameaçar a Amazónia e os indígenas, começando na destruição das florestas e acabando na exploração das minas. Raoni tem de viajar pelo mundo à procura de aliados entre os líderes políticos e estrelas da música e do cinema. É assim que ele consegue que os territórios indígenas sejam oficialmente reconhecidos. Mas isso só não chega. A floresta continua em risco e o chefe do povo kayapó sabe que são as crianças que vão salvar a Amazónia.

Raoni Metuktire já não é uma criança. Não é que não possa continuar a correr pela floresta, trepar as árvores ou mergulhar nas cachoeiras da Amazónia, no Brasil. Pode fazer isso tudo e muito mais. Mas, agora que fez 15 anos, passou também a ter obrigações como qualquer outro kayapó adulto.

O momento é tão importante que todos os índios da aldeia Kapôt se juntam para participar na cerimónia. Motibau, o irmão mais velho, entrega-lhe o seu labre, um disco de madeira que terá de usar sobre o lábio inferior. Significa que é um guerreiro. Terá de proteger a floresta de todos os perigos e estar preparado para morrer pela sua terra se preciso for.

_Sabes o que tens a fazer de agora em diante? – Pergunta o irmão.

_Sim, sou um guardião da floresta e do cerrado. Terei de cuidar das tartarugas tracajá, das araras, dos morcegos, dos macacos-aranha, dos macacos zog-zog, dos jacarés-paguá, dos bem-te-vi, dos ipês, do cacau, do açaí, dos…

_ Pronto! É isso mesmo! – Interrompe Motibau, temendo que o irmão caçula ficasse até ao cair da noite a enumerar todos os bichos e plantas que vivem junto das margens do rio Xingu, no coração do Mato Grosso.

E ele seria bem capaz de continuar a lengalenga. Não é por maldade que o irmão o interrompe. No dia seguinte têm todos de acordar muito cedo, arrumar a trouxa e partir rumo a outros lugares do Vale Xingu.

O futuro líder dos kayapó

Raoni
Agência Brasil Fotografias, CC BY 2.0, via Wikimedia Commons

Raoni aprendeu os segredos da natureza a caçar e a viajar pela Amazónia.

Os kayapó são um povo nómada. Ou mais ou menos nómada. Apesar de passarem boa parte do tempo num único lugar, costumam, durante os meses de seca, sair das suas aldeias à procura de alimento nas florestas da Amazónia.

É disso que Raoni mais gosta: caminhar pela floresta de olhos e ouvidos bem abertos, aprendendo a caçar com os mais velhos e descobrindo os segredos da natureza. Ele é um rapazito esperto, já sabe os melhores truques para caçar veados mateiros e antas, pescar pirapitingas e abotoados, recolher mel das abelhas ou apanhar os babaçus pendurados nas palmeiras silvestres.

Tanta sabedoria juntou que, anos mais tarde, foi eleito líder da aldeia. Raoni faz de tudo para o seu povo continuar com as suas vidas, mantendo os hábitos e as tradições herdadas dos antepassados.

A tarefa nem sempre é fácil. Volta e meia, os kayapó ouvem falar de ataques dos kuben, ou seja, dos brancos como são chamados na língua deles. Se antigamente, durante o século XIX, os «civilizados» capturavam os indígenas para vendê-los como escravos, no século seguinte ocuparam as suas terras trazendo muitas vezes doenças e epidemias mortais.

Os índios da aldeia Kapôt estão, por isso, sempre em vigilância máxima, apesar de, até meados dos anos 1950, nunca se terem cruzado com nenhum branco. Desgraçado daquele que se aproximar deles, mesmo os bem-intencionados como Orlando, Cláudio e Leonardo Villas-Bôas.

Os primeiros aliados do povo kayapó

Raoni

Leonardo, Orlando e Cláudio tiveram de penar bastante antes de conquistar a confiança dos índios.

Os três irmãos de São Paulo já andam há uns bons anos por aquelas bandas a chefiar uma expedição lançada pelo presidente do Brasil Getúlio Vargas. O objetivo da campanha, conhecida como Roncador-Xingu, é conquistar novos territórios, desbravando florestas, ocupando terras e construindo cidades e vilas em lugares que nem sequer estão marcados no mapa.

Assim que os kayapó os veem a rondar a aldeia, cercam-nos. Apontam as flechas e mostram caras feias para os assustar. Orlando, Cláudio e Leonardo já desconfiavam que não seriam bem-recebidos, tal era a má fama dos brancos entre os povos indígenas.

Tiram das mochilas alguns presentes, esperando apaziguar a ira dos índios, mas cometem um terrível erro. As ofertas são só para os homens e os kayapó acham de um tremendo mau gosto não se terem lembrado das suas mulheres.

Levados para a aldeia ficam vários dias presos, mas a pouco e pouco conquistam a confiança de Raoni. Os Villas-Bôas não são como uma boa parte dos «civilizados». Não se acham superiores só por serem brancos ou por viverem nas grandes cidades. Ao contrário, estão convencidos de que ninguém tem o direito de expulsar os indígenas das suas terras e muito menos impingir diferentes modos de vida.

Se esta expedição não se transforma numa campanha militar violenta muito se deve a eles. Até aos dias de hoje, são vistos como os principais líderes de uma das mais importantes missões para defender a diversidade dos povos indígenas. O trabalho deles mostrou também a boa parte do mundo que os índios, afinal, não são um bando de selvagens, mas gente com culturas e organizações sociais próprias.

Foi com eles, aliás, que durante mais de um ano Raoni aprendeu a falar a língua portuguesa e a descobrir o que havia para lá da sua aldeia. Cedo, o chefe dos kayapó percebeu que os brancos não iam desaparecer num estalar de dedos. Conhecê-los seria, portanto, a melhor arma para proteger o seu povo. E os Villas-Bôas os seus melhores aliados, pensou ele. Pensou bem.

Os três irmãos não só são responsáveis por conduzir a fundação de dezenas de cidades e vilas no norte do Mato Grosso, como também por criar o Parque Nacional do Xingu, a primeira terra indígena oficial do Brasil.

A reserva é criada em 1961 para proteger a cultura de mais de seis mil índios de várias etnias e impedir que os forasteiros avancem para as suas terras. Objetivo esse que, com o passar dos anos, vai ficando mais e mais difícil de cumprir.

O parque natural na Amazónia reconhece o território dos índios, mas as terras são demasiado ricas para manter afastados os intrusos, atraídos pela quantidade de madeira preciosa e pelas minas ricas em minérios. Nas décadas seguintes, os índios bem tentam travar a invasão, mas perdem terreno a cada dia que passa.

Raoni e o seu povo sentem-se sozinhos a lutar contra o resto do mundo. As terras dos kayapó estão na mira dos garimpeiros e nem os irmãos Villas-Bôas conseguem impedir as guerras das armas de fogo contra as flechas.

Nariz de faca ou segundo cúmplice de Raoni

Raoni
Comité Europeu das Regiões, CC BY-NC-SA 2.0, via Wikimedia Commons

O cineasta belga Jean Pierre Dutilleux leva para o cinema a causa do povo kayapó.

Tudo o que os índios precisam agora é de um outro cúmplice com poder de mostrar ao mundo o que está a acontecer com os povos indígenas da Amazónia. Quem sabe se esse alguém não é Jean Pierre Dutilleux?

A princípio, o líder dos kayapó desconfia quando o cineasta belga aparece do nada na aldeia Kapôt. Mas depois, quando o «nariz de faca» – alcunha que Raoni lhe deu – propõe fazer um filme documentário sobre ele, percebe que aquela seria a melhor hipótese para conter o avanço dos madeireiros e garimpeiros.

“Raoni: A Luta pela Amazónia” é um sucesso ao ser apresentado no festival de Cannes em 1977, mas torna-se um êxito ainda maior depois de Jean Pierre convidar Marlon Brando, um dos atores mais populares nessa altura, para narrar a versão inglesa do filme.

A angústia dos indígenas da América do Sul corre mundo e Raoni é agora um índio famoso. O governo do Brasil já não pode fingir que ele não existe, tal é a pressão dos outros países para devolver a terra dos indígenas aos indígenas.

É preciso aproveitar a fama para continuar a luta. Raoni já tem o Jean Pierre ao seu lado, mas o documentário chama também a atenção de um outro amigo ainda mais famoso do que ele. Sting, que nos finais dos anos 90, é uma daquelas estrelas britânicas da pop com milhares de fãs em todo o mundo, junta-se aos dois numa tournée pela Europa e alguns países da Ásia.

E só faltava uma estrela pop…

Gert-Peter Bruch, CC BY-SA 3.0

Sting junta-se a Raoni numa tournée pelo mundo para denunciar a destruição na Amazónia.

O índio Raoni deixa a selva e vai viajar pelo Japão, França, Noruega ou Suíça, regressando a casa com uma mão cheia de triunfos. Oito países doam alguns milhões para ele lutar pela demarcação das terras indígenas. O reconhecimento chega em 1993 num bocado de papel, ampliando o Parque Nacional Xingu de 12 mil km2 para 180 mil km2, o que corresponde mais ou menos a um terço do território de França.

Nos anos seguintes, o chefe dos kayapó consegue ainda fundos para criar o Instituto Raoni com a missão de proteger o seu povo e a sua cultura. E obtém ainda o apoio do G7 – grupo dos sete países mais ricos do mundo – para demarcar outras reservas indígenas no Brasil.

Muitos são os que agora se juntam a ele e à causa dos índios, desde o presidente francês François Miterand e, mais tarde o seu sucessor, Jacques Chirac, até ao rei de Espanha, Juan Carlos, passando pelo príncipe de Gales, Charles, ou ainda pelo Papa João Paulo II.

Ainda assim não chegam para acabar com todas as ameaças. A central hidroelétrica de Belo Monte, no estado do Pará, é o perigo mais antigo e mais persistente que volta e meia regressa para desassossegar a vida dos indígenas no Brasil. Desde meados dos anos 1970 que o governo brasileiro tenta construir a terceira maior barragem do mundo no rio Xingu.

Nos planos iniciais, mais de 40 mil hectares de floresta seriam inundados. Os ambientalistas dizem que a construção da barragem irá provocar estragos irreparáveis na natureza e obrigar pelo menos 20 mil pessoas a sair das suas terras.

O governo brasileiro, por outro lado, diz que esta é uma das obras mais importantes para a economia do país que irá fornecer energia a milhões e milhões de habitantes.

Os projetos entretanto já foram interrompidos e remodelados várias vezes depois de protestos dos índios, críticas de organizações internacionais como o Banco Mundial e as Nações Unidas ou tomadas de posição públicas de estrelas de Hollywood como o realizador James Cameron ou os atores Sigourney Weaver e Joel David Moore.

Apesar de tanta a discórdia, uma parte da hidroelétrica de Belo Monte é inaugurada em maio de 2016 e o seu funcionamento em pleno aconteceu em 2019. A área ocupada pela central tem agora menos 60% do que a prevista no projeto original para assegurar que nenhuma aldeia indígena fosse inundada.

A mudança de planos do governo deveria tranquilizar Raoni, mas ele está longe de se sentir sossegado. Talvez porque passou tantos anos a tentar ser ouvido pelos governantes e, muitas vezes, foi ignorado. Ou talvez porque o desmatamento, a exploração das minas e das madeiras continuam ainda a pôr em perigo a vida das comunidades indígenas e a sobrevivência da floresta amazónica.

Por tudo isso, ele não desiste, embora saiba que a sua missão irá continuar na geração seguinte.

Raoni tem oitenta e muitos anos – nunca soube a data certa em que nasceu – e entregou a liderança do seu povo a Megaron Txucarramãe. Hoje, ele está mais empenhado do que nunca em ensinar as crianças da aldeia a serem guerreiras.

_ Vocês sabem o que significa a vossa missão? – Pergunta ele aos miúdos.

_ Sim – respondem as crianças num coro bem afinado – temos de proteger as plantinhas, os peixinhos, os frutos, as abelhas, os sucuris, as pererecas, a onça-pintada, os tucanos, as araras…

_ Isso mesmo!  – Interrompe Raoni – Essa é a missão dos kayapó!

🐢A propósito de guardiães da Natureza, aqui fica mais uma sugestão de leitura imperdível! 

Fontes Consultadas: Povos Indígenas no Brasil |raoni.com | Wikipédia (1) | Wikipédia (2) |The Guardian | Indígenas do Brasil |Indigenous Leaders Wiki |