Se são as melhores, está ainda por provar. Os afetos, quando genuínos, não são comparáveis a nada. Mas os cientistas dizem que temos a tendência para escolher os amigos parecidos connosco: a mesma idade, a mesma profissão, a mesma opinião e até as mesmas características genéticas. Se assim for, estaremos a perder muito por não ter alguém a mostrar-nos o mundo sob outros pontos de vista. O Bicho que Morde selecionou quatro ilustres parcerias para demonstrar como as amizades improváveis também resultam na perfeição.

 

A rainha e o filho da criada

Guilherme Stephens tinha tudo o que a corte portuguesa desprezava: além de plebeu e filho de uma criada inglesa, era protestante e, como tal, um herege aos olhos dos católicos. Para a rainha D. Maria I, no entanto, era um herói que, vindo do nada, construiu na então aldeia da Marinha Grande uma próspera fábrica de vidro. A monarca quis lá saber se a família dele era nobre ou fidalga. O importante era o seu carácter determinado. Com 15 anos e órfão de pai e mãe, veio para Lisboa, em 1746, vivendo com o tio, em abrigos para os pobres antes de se tornar num dos industriais mais ricos da Europa.

«Uma Amizade Improvável» entre D. Maria I (1734 – 1816) e Guilherme Stephens (1731 – 1803) é a história que a investigadora Jenifer Roberts conta no seu livro editado pela Presença em 2019. A rainha chegou mesmo, segundo a autora, a passar algumas noites no palacete dele, onde hoje está instalado o Museu do Vidro. A monarca viu para lá das etiquetas, tornando-se amiga de um homem que não tinha apenas um bom olho para o negócio.

Era também um patrão com um grande sentido de justiça. Criou uma escola para os operários e um posto de enfermagem onde os cuidados prestados eram gratuitos. Pagou ainda bons salários, lançou um fundo de pensões para a velhice dos seus trabalhadores e patrocinou músicos e teatro. Não é à toa que o chamem de «pai da Marinha Grande», na cidade que lhe será sempre grata.

Opostos como a noite e o dia

Os pintores Henri Matisse (1869 – 1954) e Pablo Picasso (1881 – 1973) são considerados as maiores figuras da história da arte moderna. Mas, no início, nenhum deles gostava das pinturas do outro. Eram «tão diferentes como o polo norte e sul», disse um dia Matisse para justificar a rivalidade. Com o tempo, no entanto, eles acabaram por admitir que nunca teriam chegado longe como artistas se o outro não existisse. Ao longo de mais de 50 anos, a picardia transformou-se numa estranha forma de amizade. Um apresentava a sua obra mais recente e incentivava o outro a responder com um novo trabalho.

Era como um «campeonato de boxe», explicou Matisse. Ou, então, como uma partida de xadrez em que ambos planeavam a próxima jogada em função da resposta que esperavam do rival. Foi finalmente na velhice que Picasso reconheceu: «Ninguém olhou para as pinturas de Matisse com mais atenção do que eu; e ninguém olhou para o meu com mais cuidado do que ele.» Foi a desafiarem-se mutuamente que eles abriram novos caminhos não só para o seu trabalho, mas sobretudo para as muitas gerações que se seguiram.

Ao serem distantes como a noite e o dia, o artista francês e o artista espanhol foram, afinal, duas faces da mesma moeda. Matisse sempre apreciou paisagens belas, odaliscas de formas redondas, florinhas e peixinhos vermelhos. Picasso gostava de abstrações cubistas e questionava as convenções sociais com a violência de um minotauro a destruir uma loja de porcelana.

Dois rivais na mesma trincheira

No ringue de boxe, Joe Louis (1914 – 1981) e Max Schmeling (1905 – 2005) foram mais do que dois rivais a competir pelo título mundial. Em plena Segunda Guerra Mundial, Louis era, para os Estados Unidos, o símbolo da resistência contra as tropas nazis e Schmeling o triunfo da raça ariana para Hitler. Em 1936, é o alemão a derrotar o americano com um knockout ao 12º round. A vingança do adversário chegaria dois anos mais tarde quando o vence ao fim de 124 segundos.

Um e outro, no entanto, estavam pouco interessados na rivalidade entre os dois países. Joe Louis tanto enfrentava os americanos conservadores ao defender direitos iguais para a população negra, como irritava também os alemães ao exibir com orgulho os seus vários amigos judeus. Max Schmeling, por outro lado, sempre desprezou a «pureza da raça ariana», chegando até a arriscar a vida para esconder os irmãos judeus Henri e Werner Lewin durante a perseguição de 9 de setembro de 1938, que ficou conhecida como a Noite de Cristal.

Ambos lutaram, portanto, pelos mesmos ideais. Não admira, por isso, que tenham ficado amigos logo no primeiro round. Mas foi só quando a guerra acabou que se encontraram finalmente fora do ringue. «Demos um longo abraço e continuamos amigos até hoje», contou Joe Louis na sua autobiografia, recordando a visita do seu amigo alemão aos Estados Unidos.

A tempestade e a calmaria

Wolfgang Amadeus Mozart (1756 – 1791) fervia em pouca água, maldizia os artistas da sua geração e já vivera em Paris, em Londres ou em Salzburgo. Joseph Haydn (1732 – 1809) era 24 anos mais velho do que ele, tinha raízes humildes do campo, um temperamento meigo e só muito depois dos 40 anos é que viria a ficar conhecido pelas suas obras. Não havia nada em comum entre os dois, a não ser o entusiasmo pela música. E esse foi o ponto de partida para uma longa amizade. Conheceram-se em Viena na década de 1780. Mozart era a grande sensação nessa altura e Haydn praticamente não saia da sombra se estivesse ao lado dele. Isso pouca diferença fazia para ambos, que chegaram a tocar juntos em quartetos de cordas.

Durante a vida toda deles, acompanharam sempre o trabalho um do outro. Mozart, apesar de idolatrado por multidões, achava que não passava de um aprendiz do seu amigo. Tal era a sua admiração, que lhe dedicou seis quartetos de cordas, enviando-lhe as partituras acompanhadas de uma carta, datada de 1 de setembro de 1785, em que se lê: «(…) A partir deste momento, entrego-lhe todos os direitos sobre eles. Rogo-lhe, no entanto, que seja indulgente com as faltas que me possam ter escapado e, apesar delas, que continue a sua amizade generosa para com alguém que tanto a aprecia. Enquanto isso, permaneço de todo o coração, querido amigo, seu mais sincero amigo.» Do outro lado, Haydn nunca chegou perto da fama de Mozart, mas considerava-o o maior compositor de sempre, que «nem por 100 anos a posteridade verá tal talento», escreveu ele ao pai do amigo.

Não trocava o meu amigo por nada

As amizades improváveis não são um privilégio exclusivo entre humanos. No reino animal, grandes e pequenos, fortes e frágeis, perigosos e indefesos também criam laços profundos para ultrapassar os obstáculos da Natureza. O fenómeno tem o nome de «relações simbióticas» e estas são algumas das melhores amizades selecionadas pelo Bicho Que Morde.

Um amigo é o suficiente

Tem um feitio tramado o rinoceronte, ninguém chega ao pé dele, a não ser o tchiluanda. Quando chega a hora do almoço ou do jantar, o corajoso passarinho é o único a poisar no seu dorso ou junto das orelhas para lhe catar as carraças. Os parasitas são um pitéu para a ave africana, que mantém o seu amigo saudável e livre de comichões, além de o avisar também quando há inimigos por perto.

O que Darwin não sabia…

A Trouessartia geospiza é um ácaro com um aspeto medonho que nunca sai da penugem do tentilhão. Também conhecido por chapim ou pardal de asa branca, o tentilhão serviu de referência a Charles Darwin para desenvolver a teoria da seleção natural das espécies. Por terem diversificado os tamanhos dos bicos consoante o tipo de alimento disponível, foram o melhor exemplo para o naturalista britânico demonstrar a sua capacidade de adaptação ao meio. Estudos mais recentes, no entanto, demonstraram que, sem estes ácaros a lamberem-lhes óleos velhos, fungos e bactérias das suas asas, eles não sobreviveriam.

A parceria da força e da agilidade

Hienas e lobos caçam em grupo e não gostam de misturas com outros animais. É assim desde os primórdios e em todo o lado. Menos no sul de Israel, onde os cientistas ficaram surpreendidos quando, em 2016, descobriram a estranha amizade entre estas duas espécies. Ambos ganham com esta parceira. Os lobos cinzentos são rápidos a perseguir e a derrubar as presas de grande porte. As hienas riscadas, com o seu apurado olfato, localizam a comida a muitos quilómetros de distância, sendo também mais hábeis a escavar lixo e a abrir grandes ossos. Uma vantagem que os lobos aproveitam sem fazer cerimónias.

Uma viagem em 1ª classe

O que fazem os ouriços do mar – muitos deles venenosos – em cima dos caranguejos? Pode até parecer pouco sensato da parte deles, mas estes companheiros espinhosos são os melhores trunfos para afastar os predadores. É o mesmo que ter um guarda-costas musculado, de óculos escuros e com cara de poucos amigos. E o que ganham os ouriços com o serviço prestado? Viajam longas distâncias em primeira classe e sem pagar bilhete.

Proteção e higiene em troca de refeições

Tal como o tentilhão e o rinoceronte, o búfago-de-bico-vermelho é a única ave com permissão para poisar no dorso da zebra. Mais do que permissão, são convidados de honra, pois comem as carraças e os parasitas hospedados nos casacos destes animais às riscas. Como se isso não fosse já um serviço de alta qualidade, os passarinhos, quando assustados, também sibilam de uma forma muito particular, alertando os seus amigos de que há perigo nas redondezas. As zebras sentem-se mais seguras com os seus companheiros por perto e eles, por seu turno, têm buffets de entrada livre para comer e repetir quantas vezes quiserem.

Por falar em amigos improváveis, alguma vez perguntaste por que são os livros tão bons companheiros?

Crédito das imagensFoto do caranguejo e ouriço: Sylke Rohrlach, CC BY-SA 2.0, via Wikimedia Commons |Foto da zebra e búfago-de-bico-vermelho: Derek Keats, CC BY 2.0, via Wikimedia Commons |