Está na hora de reabilitar a imagem dos morcegos, que nestes últimos meses têm visto a reputação muito danificada. É certo que são o principal suspeito por espalhar este novo coronavírus. Tal como já estiveram na origem de epidemias anteriores, o Sars ou o Mers, por exemplo. O que eles fazem pela sobrevivência do planeta é, no entanto, incomparavelmente maior do que as doenças que transmitem. Não há, por isso, um obrigado/a suficientemente grande para compensar toda a maledicência que têm vindo a sofrer.
A má fama dos morcegos não é, obviamente, de agora. Muito antes da Covid-19, já eles povoavam casas assombradas, florestas amaldiçoadas ou casebres de bruxas malvadas, que ilustram lendas, mitos ou livros para crianças e adultos. Ninguém se esquece, aliás, do sanguinário Conde Drácula, a personagem inventada pelo irlandês Bram Stoker, em 1897.
Ainda há quem acredite que os morcegos se divertem a abocanhar os pescoços das suas vítimas, embora eles só apreciem frutas e insetos.
Bom, na verdade, há alguns – poucos, muito poucos mesmo – que são vampiros.
Mas até isso é uma vantagem para os humanos. O composto químico anticoagulante, usado para digerirem o sangue das vacas ou dos porcos, é muito útil na medicação dos pacientes com tromboses e outros problemas cardíacos.
Drácula ou Batman, qual preferes?
Ambos são personagens inspiradas nos morcegos. Enquanto uma é o terror das aldeias, a outra combate o crime nas cidades.
Haverá sempre duas formas de olhar para os morcegos. Uma delas é verem-nos como os vilões desta história: seres feios e dentuços, escondidos nas grutas, à espera da escuridão da noite para atacar os mais desprotegidos.
Ou, então, heróis como o Batman a vigiar o planeta, enquanto todos os outros dormem. Quem defende a primeira hipótese tem bom remédio: fechar esta página e continuar a navegar pelo restante site.
Todos os outros e outras….
Sejam bem-vindos/as ao fabuloso mundo do único mamífero com asas à face da Terra.
Esse mundo é tão grande que se estende por países de todos os continentes, exceto a Antártica. Do que eles gostam mais, contudo, são das florestas tropicais, junto ao eixo do Equador, onde encontram calor, humidade e alimento em abundância.
O termómetro da Terra
Ao detetarem os estragos provocados no ambiente, os morcegos são grandes aliados dos cientistas na avaliação da saúde do planeta.
Estão por todo o lado e, entre as cerca de duas mil espécies, vão do mais pequeno – como o morcego-zangão, do tamanho de um polegar – à raposa voadora, que pode atingir 1,8 metros (que monstruosidade!). São de variados tipos e envergaduras, mas têm um grande talento comum: os guinchos ultrassónicos que nenhum humano consegue captar. É uma espécie de sonda que lhes permite caçar, medir distâncias e comunicar no silêncio da noite.
Não julguem que é para compensar a falta de visão. Os morcegos, ao contrário do que muitos pensam, podem ver, ouvir e cheirar. Essas altas frequências sonoras – também usadas, por exemplo, pelos golfinhos -, são uma boa ferramenta para, no meio da escuridão, conseguirem apanhar os insetos mais minúsculos.
Humanos, animais e plantas só têm a ganhar quando eles estão por perto. Nas florestas, nos campos de cultivo ou nas zonas urbanas, os morcegos são como um termómetro a medir os estragos provocados no ambiente. Os cientistas contam muito com a ajuda deles para avaliar a saúde dos ecossistemas, desde espécies ameaçadas, explorações agrícolas intensivas ou excesso de betão e cimento a colocar em perigo os habitats selvagens.
O apreciador de frutas tropicais
Quem gosta de mangas suculentas ou bananas maduras devia saber que, sem os morcegos, elas nunca chegariam à nossa fruteira.
E não esqueçamos a sua função polinizadora. Ah, pois, não são só as abelhas, embora, neste capítulo, tenham o papel principal. Mas será pouco prudente menosprezar as mais de cinco centenas de plantas que, por este planeta fora, dependem dos morcegos para se multiplicarem, incluindo as bananas, os abacates, as mangas ou as goiabas.
É que, nestes frutos com flores noturnas mais pálidas, as abelhas nem sequer se aproximam. Elas só têm olhos para as cores garridas que brilham durante o dia. As restantes plantas, mais discretas, estabeleceram um acordo muito útil para elas e para os morcegos, que também se alimentam destas delícias tropicais.
Quebrar este equilíbrio tem consequências desastrosas, como já aconteceu recentemente no México.
Quando foram colhidas antes do tempo da floração, as plantas de agave – utilizadas na produção de tequilha e de mezcal– não deixaram só os morcegos sem alimento. Também essas plantas – ao não se reproduzirem através da polinização, mas da clonagem – acabaram por perder a sua diversidade genética e a ser dizimadas pelas doenças trazidas pela bicharada.
Por muitos avanços existentes na agricultura, os morcegos continuam a ser o pesticida mais natural e eficaz no controlo de pragas. Numa noite, são capazes de devorar milhares de insetos nocivos para as plantações. Eles enchem a barriga até ficarem saciados, mas têm a noção das medidas certas. Os químicos, por outro lado, além de contaminarem os solos, eliminam de vez os insetos e, consequentemente, acabam com o principal alimento dos morcegos.
Os bombeiros da Natureza
Os morcegos preferem viver nas zonas florestais ardidas, fertilizando os solos e ajudando a Natureza a renascer.
Como se tudo isso não fosse por si só uma grande bênção, os morcegos ajudam também na reflorestação de áreas destruídas pelo fogo ou pela exploração madeireira. Tal como os pássaros, eles largam nas fezes as sementes dos frutos que vão fertilizar os solos e permitir que a Natureza possa renascer. No caso dos incêndios, o seu papel é ainda mais vital. Estudos de investigadores australianos, publicados no ano passado, concluíram que os morcegos preferem as áreas florestais ardidas. Há gostos para tudo. E ainda bem que assim é.
Porque são os morcegos transmissores de doenças?
O Bicho que Morde não quer ser acusado de esconder informação. Vamos, por isso, à parte espinhosa (ou será dentuça?) desta história. Sim, os morcegos transmitem doenças, muitas delas perigosas para a saúde humana. Os investigadores ainda tentam entender porque é que eles parecem ter uma maior predisposição para transportar e transmitir vírus potencialmente mortais para os humanos, como é o caso do Ébola, Marburg, SARS (Síndrome Respiratória Aguda) e agora o novo coronavírus (Covid-19).
Uma das hipóteses mais prováveis está na combinação de três fatores: cavernas húmidas, excesso de população e características genéticas. Os morcegos, ao viverem em comunidades muito numerosas e concentradas em espaços confinados, oferecem aos vírus as condições ideais para viverem felizes.
A convivência pacífica com o vírus
Acrescente-se as características genéticas dos morcegos e está encontrado o paraíso para muitas doenças se espalharem. Aos morcegos, no entanto, nada lhes acontece. Ao contrário dos humanos e dos ratos, os seus genes estão com as antenas sempre ligadas. É uma espécie de superimunidade que ganharam à conta das altas temperaturas corporais atingidas durante os voos. Registando valores que atingem os 40 graus centígrados, eles são capazes de conviver com os vírus sem apanhar sequer uma ligeira constipação.
Connosco é que é bem diferente. As nossas febres, por mais altas que sejam, não chegam nem de longe ao calor com que os vírus já se habituaram durante o convívio com os morcegos. A batalha do nosso sistema imunitário é, neste caso, muito maior.
Que tal não sirva de desculpa para amaldiçoar os morcegos. Basta deixá-los em paz no seu mundo. É do que precisam para continuarem a ser os melhores vigilantes do planeta.
Nota final: os morcegos também são bibliotecários zelosos e discretos nas suas funções. Tanto a biblioteca Joanina, da Universidade de Coimbra, como o Palácio de Mafra dependem de morcegos-anões para conservarem obras valiosíssimas com séculos de antiguidade. Não é fácil dar de caras com eles. É à noite que saem dos esconderijos para caçar traças, moscas e outros insetos, evitando assim o uso de químicos no combate às pragas dos livros. E, pronto, é só um acrescento que o Bicho que Morde achou que iam gostar de saber. 😉
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Crédito da foto da biblioteca Joanina: Ernesto von Rückert / CC BY