E se abrisses a caixa do correio e encontrasses uma carta endereçada para ti? Seria pouco provável nos dias que correm, mas, menos improvável se enviasses uma a alguém que te é querido. Escreve quando tiveres um tempinho e aguarda pela resposta. Enquanto esperas, lê alguns excertos de outras cartas tão importantes para contar as histórias de países, mas também de famílias e de amigos que, mesmo à distância, continuaram juntos.

Ninguém pede para voltar aos aos tempos em que não existia nem internet, nem email, nem chats, nem todas as tecnologias que nos põem a comunicar em tempo real com alguém na outra ponta. Seja essa ponta o fim da rua ou a longínqua Sibéria. Ninguém pede, salvo seja… Ninguém pode, por muito que queira, regressar ao passado.

O email é a resposta para os dias impacientes que hoje as empresas, os amigos, as tarefas do dia-a-dia ou as deslocações para aqui e acolá impõem. A vantagem dele, obviamente, é ser imediato. É como uma conversa. Mas em vez de voz, palavras tecladas. Em vez de pensamentos soltos e trivialidades, perguntas diretas e orientações precisas. No trabalho, então, é assustador passar um dia sem ele.

Tornou-se vital para tomar decisões em minutos, convocar, adiar ou cancelar reuniões, lançar ideias, acrescentar mais ideias, descartar ideias, enviar convites, anunciar mudanças, decretar regras, divulgar eventos, pedir esclarecimentos, enviar ficheiros, tudo em cima do acontecimento.

A carta, essa, coitada, chega sempre atrasada.

Não é só escrevê-la – o que, por si só, leva tempo –, é também dobrar o papel, enfiar no envelope, lamber o selo, escrever o nome e a morada, enviá-la pelo correio. E esperar que percorra estradas, embarque e desembarque do avião, entre no saco do carteiro e chegue ao destino. Sim, esperar pacientemente.

Ou desesperar sem poder perguntar, naquele instante, o motivo da demora. Porque não respondes à carta que te enviei? Será que não a recebeste?

A dúvida fica a remoer – muitas vezes durante semanas
Santarém, 5 de junho de 1962
Minha boa Amiga,
Soube agora – somente agora – que a Sophia me havia telefonado há dias para a minha antiga morada. Peço que me perdoe tão tarde dar sinal de vida, mas realmente só ontem fui notificado do telefonema. Peço-lhe, por conseguinte que, num rápido postal, me diga do que se trata. Poderá fazer-me esse favor?
(…)
Carta do poeta Herberto Helder à poetiza Sophia Mello Breyner Andresen

***

Meses
Lisboa, 22 de março de 1950
Querido Amigo,
Não te tenho escrito por não ter presente o número da tua porta. Vou pôr 16 e seja o que o demo quiser.
(…)
Carta do poeta Mário Cesariny para o «homem que pinta» e também escritor Cruzeiro Seixas.
***
Até ao dia em que …
São Paulo, 10 de novembro 1924
Meu caro Carlos Drummond
Já começava a desesperar da minha resposta? Meu Deus! Comecei esta carta com pretensão… Em todo o caso, de mim não desespere nunca. Eu respondo sempre aos amigos. Às vezes demoro um pouco, mas nunca por desleixo ou esquecimento. As solicitações da vida é que são muitas e as da minha agora muitíssimas…
(…)
Carta do poeta Mário de Andrade para o poeta Drummond de Andrade. 

Quando abrimos o envelope, já é passado.

Tanta coisa que, entretanto, terá mudado. Noivos que, nesse tempo, se casaram, recém-licenciados que arranjaram emprego, casais que tiveram filhos, avós que tiveram netos, viajantes que partiram ou regressaram. Sabe-se lá o tanto que pode ter já acontecido…

Tão mais fácil enviar um email, certo? Ainda assim, não deve haver pessoa no mundo que não goste de receber uma carta. Mesmo aquelas que nunca receberam uma conseguem, certamente, imaginar a excitação que seria abrir a caixa do correio e ver um postal ou um envelope com o seu nome escrito.

Para: Exma. Sra. Hermengarda Nicolau

Os olhos saltam logo das órbitas de tão felizes que ficam.

Há que fazer a devida ressalva para as cartas das finanças ou aquelas que trazem as contas e as faturas para pagar por multibanco ou débito direto. Os olhos também se reviram, mas, como toda a gente sabe, o motivo é bem diferente.

Essas não interessam, naturalmente. As que nos comovem são aquelas que foram escritas por alguém que arranjou tempo para se dedicar só a nós. Sentado numa mesa, em cima da cama, numa esplanda, escrevendo palavra a palavra, cada uma com destinatário único.

Nem precisa ser nada de especial. Só mesmo para perguntar como vai a vida, o que temos feito com os nossos dias, o que se passa na vizinhança, na escola, em casa.

Cidade do Cabo, 4 fevereiro de 1969
Minhas queridas,
A bonita carta da Zindzi chegou em segurança, e fiquei muito feliz por saber que ela agora está no 2º ano. Quando a mamã veio ver-me em dezembro, disse que vocês as duas haviam passado nos exames e que a Zeni estava agora no 3º ano.
Agora sei que Kgatho e Maki também passaram. Agrada-me muito ver que todos os meus filhos estão a ir bem. Espero que consigam fazer ainda melhor até ao final do ano.
Fiquei feliz ao saber que a Zeni já sabe cozinhar batatas fritas, arroz, carne e muitas outras coisas. Estou ansioso pelo dia em que poderei desfrutar de tudo o que ela cozinhar.
(…)
Carta de Nelson Mandela da prisão para as filhas Zenani e Zindzi Mandela.
***
Key West, 28 de maio de 1934
Querido Scott,
(…)
Como estão o Scotty e a Zelda? A Pauline manda cumprimentos. Estamos todos bem. Ela vai a Piggott por algumas semanas com o Patrick. E vai trazer de volta o Bumby. Nós temos um bom barco. Eu vou indo bem numa longa história. Difícil de escrever.
Sempre teu amigo,
Ernest
Carta do escritor Ernest Hemingway para o escritor F. Scott Fitzgerald.

As cartas não têm grandes propósitos, não precisam de motivos especiais, nem de serem urgentes.

Mas quando são enviadas, há sempre um remetente que fica em ânsias para que não demore muito a chegar ao outro lado. E um destinatário apanhado de surpresa com notícias que chegam de lugares onde, se calhar, nunca esteve, ou se calhar, gostava de voltar.

Quem as envia nunca as escreve a despachar, mesmo que tenha de interromper e retomar a escrita mais tarde. Com a prática, aprende também a contar histórias, a aperfeiçoar as melhores técnicas para prender a atenção de quem está longe.

E quem as recebe, lê e relê, leva-a para todo o lado e guarda-a para todo o sempre. Não é por acaso que há registos de cartas com séculos e séculos de existência.

Ninguém (ou quase ninguém) as deita fora. A carta sobrevivente mais antiga do mundo é do ano 230 depois de Cristo e foi enviada de um irmão para outro irmão em papiro e num grego antigo.

Theadelphia (Egito), ano 230 d.C.
Saudações, meu senhor, meu incomparável irmão Paulus.
Eu, Arrianus, te saúdo e rezo para que tudo corra pelo melhor possível na tua vida. Uma vez que Menibios vai ter contigo, acho conveniente enviar também os meus cumprimentos, assim como estender as saudações ao senhor nosso pai.
(…)
Mas envia-me também o molho de fígado de peixe na quantidade que achares melhor. A senhora nossa mãe está bem e manda saudações para ti, para as tuas esposas e filhos mais doces, para os nossos irmãos e para todo o nosso povo.
(…)
Rezo para que estejas bem na graça do Senhor.

É a carta mais antiga, mas o que não faltam são cartas que ficaram para a História de países, mas também para as histórias de cada um de nós. Cartas enviadas dos campos de batalha, das prisões, de pais e filhos separados, de namorados secretos ou de artistas exilados. Cartas de amor, cartas públicas de escritores, ativistas ou políticos, cartas que chegaram aos nossos dias, trazendo registos que, de outro modo, se perderiam para sempre.

Prisão de Birmingham, Alabama, 16 de abril de 1963
(…)
Nunca tinha escrito uma carta tão longa. Temo que seja longa demais para o vosso tempo precisoso. Posso assegurar que ela teria sido muito mais curta se tivesse sido escrita numa confortável secretária. Mas o que mais se pode fazer quando se está sozinho numa cela estreita da prisão, além de escrever cartas longas, ter pensamentos longos e fazer longas orações?
Carta aberta de Martin Luther King

Quase todas as famílias têm em casa cartas antigas.

Empilhadas, atadas com cordel, guardadas em caixas. Cartas com mechas de cabelo, com pétalas secas, com corações preenchidos a vermelhos, desenhos e rabiscos de crianças. Cartas perfumadas, em papel azul, bege ou rosa. Algumas já rasgadas, outras com manchas de tinta, de gordura, de café ou carcomidas pelas traças. São marcas do tempo.

Tornaram-se objetos que se podem sentir entre os dedos, agarrar, dobrar, enfim, tudo o que o email não consegue.

Sensações muito parecidas com os livros. A diferença é que não é uma leitura solitária a despertar a imaginação para lugares, cheiros ou emoções tão estranhos ou tão familiares. A carta não é uma ligação direta a viajar num email de um computador para o outro. É antes um encontro de duas mentes a partilharem experiências. Muitas vezes – quantas vezes – só para dizer, a quem está do outro lado, que nada os irá separar. Aconteça o que acontecer.

PS: diga a si mesma, minha querida mamã, que preencheste minha vida com doçura como ninguém poderia ter feito. E que é a mais refrescante das lembranças, a que mais me desperta.

Antoine Saint Exupéry – Lettres à sa mère, Gallimard (1955)

Se ainda te sobra tempo para viajar pelo passado, experimenta ler: «A vida sem telemóvel não foi assim há tanto tempo.»

Excertos das cartas retirados de: