A saudade tem o peso de um fio a trespassar paredes, atravessar ruas, subir elevadores, entrar pela cozinha, contornar o sofá da sala e, por fim, ligar quem, nesta quarentena, vive na outra ponta. E, se continuarem a ler, irão perceber também que há muitos fios, entrelaçados, com diferentes texturas e tamanhos, ligando todos e tudo o que mais amamos.
Estes dias, trancados em casa, de tudo se faz para esquecer que em casa se está trancado. Viajar nos livros, brincar ao faz-de-conta, conversar nos chats ou espreitar à janela. E rir também, é verdade, mas, aqui e acolá, uma tristeza infiltra-se pela fresta da porta, lembrando os beijinhos dos avós, as risadas entre amigos, os passeios de bicicleta e até os ralhetes dos professores… Quem diria!
O que vem a ser este vazio a ocupar mais e mais espaço dentro de nós? Não vale a pena chamar o médico, muito menos correr para as urgências. A esta altura da quarentena, toda a gente sabe que é a SAUDADE a crescer como uma trepadeira dentro do peito. Como toda a gente já sabe também que a pergunta que o Bichinho das Contas fez no início deste artigo é, no mínimo, parva. Por maior que seja a saudade, não é possível pesá-la. Não dá para desacorrentá-la do corpo, enrolá-la num novelo e colocá-la na balança.
Se nem conseguimos dizer de que é que ela é feita…
Há quem, erradamente, diga tratar-se de um afeto genuinamente português. Não façamos confusão. Lá fora, por todo o mundo, uns quantos milhões esperam, como nós, pelo fim da pandemia para desempacotar abraços e beijinhos e sair porta fora matando a saudade. O sentimento é, portanto, universal. A palavra saudade é que, por mais que se procure, não tem uma tradução direta para outras línguas. E, já agora, nem sequer uma definição única.
Mil e um sentidos da palavra

Saudade
Saudade é amar um passado que ainda não passou,
é recusar um presente que nos magoa,
é não ver o futuro que nos convida.
Pablo Neruda
Se cada um a sente à sua maneira, também cada um saberá melhor do que ninguém o que é que ela significa. O problema é explicar aos outros. A sorte é que não faltam poetas, escritores e compositores para extraí-la com pinças do nosso tórax para transformá-la em coisas concretas. Cada qual com uma versão muito própria. Mas essa é a riqueza da saudade. Tem tantos significados e aplica-se a tantas situações que podemos escolher aquela que melhor nos convém em cada momento.
Para quem a sente agora como um passo arrastado, que pesa em todos os lugares da casa e do corpo, poderá talvez identificar-se com este curto excerto da Menina do Mar:
_Na terra há tristeza dentro das coisas bonitas.
_Isso é por causa da saudade, disse o rapaz.
_Mas o que é saudade? -, perguntou a Menina do Mar.
_A saudade é a tristeza que fica em nós quando as coisas de que gostamos se vão embora.
Sophia de Mello Breyner Andresen, A Menina do Mar
Para os outros que até se apegaram a ela e no íntimo têm um certo gosto em remoê-la, aqui fica um excerto provavelmente bem adequado:
«Linda palavra galega que parece que canta, que palpita, que estremece e que chora.»
Júlio Dantas – Abelhas Doiradas
Como há sempre quem, além de uma moinha desgostosa, também sinta um motim interior, mais uma citação escolhida a dedo:
«Tenho uma saudade tão braba da ilha onde já não moro»
Vitorino Nemésio – Tenho Uma Saudade Tão Braba.
Os ainda muitos que nem sabem bem do que mais sentem a falta podem vir a gostar desta.
Toda saudade é a presença da ausência de alguém ou de algum lugar. De algo enfim.
Gilberto Gil – Toda a Saudade.
E porque esta é também uma palavra destinada aos lugares e aos momentos que guardamos do passado:
«A saudade é a nossa alma dizendo para onde ela quer voltar»
Rubem Alves
Seja isso, aquilo ou aqueloutro, será sempre – e para resumir – a:
«Expressão do excesso de amor em relação a tudo o que merece ser amado».
Eduardo Lourenço – Portugal como Destino Seguido de Mitologia da Saudade
A primeira saudade

Ó sino da minha aldeia
Ó sino da minha aldeia,
A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.
Fernando Pessoa
A saudade é tudo isso e mais ainda que estes e tantos outros já escreveram, cantaram ou declamaram. O espantoso, no meio deste turbilhão de significados, é que a palavra faz parte do nosso vocabulário desde, pelo menos, a Idade Média. Júlio Dantas, que, além de escritor e dramaturgo, foi também historiador, conta no livro «Abelhas Doiradas» (1925) que ela aparece pela primeira vez nas cantigas de um trovador da corte de D. Afonso III (5º rei de Portugal, entre 1248 e 1279). Fernão Fernandes Cogominho é o nome dele e, num suspiro dirigido a um amor não correspondido, soltou num português arcaico:
«Non queredes viver migo, e moiro de soydade».
Como é que a palavra se formou é outro grande mistério. Boa parte dos investigadores acredita ser um desvio do latim solitate (solidão), que mais tarde se misturou com a palavra saudar (cumprimentar), originando a sua forma atual. Outros estudiosos julgam que se trata de uma derivação da palavra árabe sawda – à letra quer dizer «a negra», mas no sentido mais amplo significa algo sombrio ou melancólico.
É um debate com muitas incertezas, mas também sem muita utilidade, se estivermos mais interessados nos significados que a saudade foi ganhando até chegar ao início do século 20. Foi pouco depois da implantação da República, em 1910, que o Saudosismo – movimento literário e filosófico – propagou essa ideia de que a saudade é uma parte inseparável da identidade portuguesa.
Desde aí, filósofos, psicólogos, ensaístas e grande variedade de outros pensadores lhe dedicaram dezenas – ou mesmo centenas – de teses, estudos ou ensaios. É assunto com pano para mangas. A saudade dos marinheiros e dos pescadores que ficaram no mar, a saudade da infância que se deixou lá para trás, a saudade de um amor que se perdeu, a saudade que os emigrantes levam na bagagem ou até mesmo saudade de um futuro luminoso pelo qual se espera.
É tudo saudade que aperta, lateja, consome, doi, pesa, chora e quase mata. Mas também nos faz sentir vivos.
«A saudade sempre é vida. Por mais que doa na gente, recordar um Bem, querida, é vivê-lo novamente».
José Lourenço – Mil trovas de Amor e Saudade
E, de um modo muito particular, é igualmente felicidade:
«Choras sem compreenderes que a saudade é um bem maior que a felicidade. Porque é felicidade que ficou!»
Manuel Bandeira – À maneira de Olegário Mariano.
A Saudade é, só para complicar um pouco mais:
«…tecida de fios complexos, emaranhados, repetitivos e variações do mesmo bordado.»
Ivone Gerbara
Fios inquebráveis
Vivo Noutra Terra
Aqui em terra distante
Vivo mal e bem
Sinto saudades imensas
De quem me quer bem
Tenho um salário melhor
Não há que duvidar
Mas era na minha terra
Que eu queria estar
E ganhar
P’ra viver
E não ter
Que emigrar
Sérgio Godinho
Será, por fim, esta a definição que, se calhar, melhor se cola a todas as saudades que os poetas, escritores, músicos e pensadores já inventaram. São muitos fios, com muitas cores, entrelaçados, com diferentes texturas e tamanhos a ligar pessoas, lugares, memórias, cheiros, sentimentos ou emoções.
A saudade é a forma mais profunda de estarmos ligados a todos e tudo o que amamos.
São esses tais «fios complexos» que trespassam paredes, atravessam ruas, sobem elevadores, entram pela cozinha, contornam o sofá da sala e ligam quem agora, neste isolamento, vive na outra ponta.
Esta quarentena pode ser uma bruxa da pior espécie. Disso não tenhamos dúvidas. Mas nunca será forte o suficiente para partir este fio que nos liga ao que mais amamos. Só cada um de nós tem o poder de quebrá-lo com um abraço, uma gargalhada, um beijinho. Chama-se a isso matar a saudade. E já estivemos mais longe disso.
😢 Aproveita este ambiente um bocado nostálgico para ler também este artigo: «Por que choramos?»
Crédito das ilustrações
- Casal a preto e branco – Giovana Milanezi/ CC BY-ND 2.0
- Melhores amigas – via Flirkr/CC BY-ND 2.0


























































































Marco Sousa Santos apresentou, em 2009, a sua Poltrona Shell na bienal experimentadesign, em Lisboa e, logo ali, causou sensação. Pouco tempo depois, a cadeira, inspirada no formato de uma concha, viria a ser considerada pela revista holandesa «Frame» como uma das 59 peças-ícones do design contemporâneo. Feita de madeira de bétula finlandesa de contraplacado altamente resistente, a peça é montada à mão por carpinteiros de uma pequena fábrica de Sintra e é sobretudo procurada no estrangeiro – Espanha, França, Alemanha, Suíça, Holanda, Áustria, Austrália, Estados Unidos, Porto Rico, Coreia do Sul e Brasil.
Não há um português, acima dos 50-60 anos, que não tenha tido uma motorizada Famel. É um exagero, há que reconhecer, mas foram mesmo muitos os que já tiveram uma moto da fábrica hoje abandonada em Águeda. Cheia de cromados, em vermelho e preto ou em outras cores vivas, elas circularam entre os anos 1960 e 1980, zumbindo como mosquitos nas estradas e anunciando a sua presença a dezenas de metros de distância. Muitos modelos ficaram na memória – o Foguete, o Foguetão, o Tri-carro, a Famel de Competição e, a mais lendária de todas, a Famel Xf17, com motor de 5 velocidades e muito cobiçada pelas oficinas de restauro.
Os primeiros azulejos a chegar a Portugal vieram das oficinas de Sevilha, em 1498, diretamente para o Palácio Nacional de Sintra. D. Manuel I ficou deslumbrado com o brilho desta peça, mas é apenas no fim do século 18 que a primeira fábrica abre em Lisboa. Por essa altura, já o azul e branco estavam na moda, cobrindo fachadas de edifícios ou interiores de igrejas e casarões da nobreza. A combinação de cores é ela própria uma mistura da influência holandesa e da porcelana oriental. A partir do século 18, o azulejo deixa de ser privilégio dos ricos e entra nas casas da burguesia, substituindo os quadros e as tapeçarias. Mas só no século seguinte, a mecanização permite reduzir o custo e espalhar o seu uso pelas paisagens urbanas e rurais de Portugal.

Até parecia que, nos anos 1970-1980, não havia outro desodorizante. Haver, havia, mas nenhum era tão original na embalagem como a Lander. Um frasco de vidro canelado, uma tampa metálica e uma barra de desodorizante que se empurrava na base à medida que se gastava. Era esse o kit completo que toda a gente tinha em casa e as mulheres também na mala. Musk, Clorofila e Bouquet foram os perfumes mais populares. A Sagilda, fundada em 1955, nas Caldas da Rainha, é a empresa que, além de sabonetes líquidos e de glicerina, ainda hoje produz o desodorizante, usando a mesmíssima embalagem.
A espátula de cozinha não é uma criação portuguesa. A sua origem também não é muito clara, sendo atribuída a três homens. O primeiro é um médico romano, de nome Galen, que, no século 2, forjou um utensílio para misturar preparados medicinais. O segundo é o húngaro Horace Spatula que, em 1798, construiu o mata-moscas. E o terceiro é John Spatula, radicado nos EUA, que, na década de 1890, terá criado o utensílio por ter uma mão aleijada. Quem quer que seja, pouco importa. Foi em Portugal que a espátula de cozinha ganhou status ao ser batizada de Salazar. O motivo é óbvio. Este é o único utensílio que rapa o fundo dos tachos e das tijelas sem desperdiçar um niquinho sequer. Tal como Oliveira Salazar, o lendário avarento que governou o país por 40 anos, apregoando as virtudes da humildade, da poupança e da modéstia.



























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Nos lugares mais distantes das cidades, os rapazes e as raparigas aprendiam com uma televisão a preto e branco. 
Impossível estar sempre atento, quando no ecrã havia gente tão diferente do costume.
Pouco tempo depois, surgiram as primeiras vozes a perguntar se a Telescola ainda fazia sentido.
O país tinha a ambição de pertencer à Europa dos ricos, mas faltava ainda um bom bocado.