Querubim Lapa. Um anjo a espalhar arte pelas ruas

Quem vive em Lisboa tem sorte. Não, não é pelo trânsito, considerado o pior da Península Ibérica. Nem pelas carruagens do metro apinhadas em hora de ponta. Ou sequer por causa dos aviões a fazerem razias nos prédios da cidade. Nada disso, é por causa de um artista com nome de anjo que, durante mais de 50 anos, espalhou a sua arte pelas ruas da capital.  Querubim Lapa era como ele se chamava.

Quem conhece bem a obra dele, sabe que também andou por outros pontos do país, deixando a sua marca em edifícios como o Hotel do Mar, em Sesimbra, o Hospital Universitário de Coimbra, a Biblioteca José Saramago, em Almada, o Casino do Estoril, em Cascais, ou a fachada da Câmara Municipal do Cartaxo.

E voou para muito mais longe, soltando um rasto colorido em cidades como Los Angeles, Luanda, Brasília, Maputo, Copenhaga ou Frankfurt. Mas foi em Lisboa que pousou, desde que saiu de Portimão, no início da década de 1940, para estudar na Escola de Artes Decorativas António Arroio. Essa foi a sorte dos lisboetas.

Sorte mesmo! A arte dele está sobretudo na rua.

Sem bilheteiras à entrada ou multidões a bloquear a vista para as obras. Mas também sem funcionários dos museus a zelar por todas elas. As cerâmicas de Querubim estão onde as pessoas passam cheias de pressa, ao virar da esquina e ao relento.

É tão fácil esquecer que precisam de cuidado. Na Escola Secundária Dona Luísa de Gusmão, os azulejos começaram a cair quadradinho a quadradinho e, agora, há clareiras a ficarem maiores de dia para dia. Nem é caso inédito. O mesmo aconteceu em Campolide, na Escola Básica Mestre Querubim Lapa, onde foi preciso fazer tudo de novo.

Esperemos que a câmara municipal ou o Ministério da Educação acordem ainda a tempo de salvar o painel. Seria uma tristeza enorme abrir este vazio na cidade. Não muito diferente da Galeria Uffizi, em Florença, ficar sem a Vénus do Botticelli ou acabar a visita ao Museu do Prado, em Madrid, e não encontrar «As Meninas» de Velázquez.

No rasto de Querubim

Reitoria da Universidade de Lisboa
Avenida 24 de Julho | Manuel V. Botelho / CC BY-SA 3.0
Palácio da Justiça
Escola Artística António Arroio

 Nas ruas, no metro ou interior dos edifícios, a arte do pintor-ceramista está espalhada por toda a cidade de Lisboa. 

O lugar da arte de Querubim é lá fora. Haverá, no entanto, sempre gente a passar sem lhe prestar atenção. E gente que, quando menos esperar, irá reparar nela. Mas quem quiser mesmo seguir as peugadas dos seus painéis de cerâmica vai ter de percorrer a cidade de ponta a ponta.

Subir ao Centro Comercial do Restelo, descer à Avenida 24 de Julho, passar pela antiga Casa da Sorte, no Chiado, parar em frente à escola básica de Campolide, a tal com o seu nome, entrar na Reitoria da Universidade de Lisboa ou tomar um café na Pastelaria Mexicana, na Praça de Londres.

Um dia só não chega para passar ainda pelo Palácio da Justiça, pelo hall do Hotel Ritz, pelo Banco de Portugal, na Avenida Almirante Reis, pela Estação de Metro da Bela Vista ou pela Loja das Meias, na Avenida da Liberdade.

Foi a cerâmica que tornou Querubim Lapa conhecido em todo o lado. Mas o que ele queria mesmo era ser pintor. A verdade é que, além dos muitos quadros a óleo que pintou, também esculpia e assinava trabalhos em gravura ou tapeçaria. Foram, no entanto, os painéis cerâmicos a cobrir o exterior ou o interior dos edifícios que ficaram famosos. É o que mais dá nas vistas.

E o que, ao fim e ao cabo, lhe pagava as contas. Era principalmente isso que os arquitetos lhe pediam.

E, como ele não queria separar uma coisa da outra, moldou a cerâmica à pintura, à escultura e à arquitetura.

Nasceu então algo de novo na cidade. Fazer diferente foi, aliás, o que ele sempre procurou. A única maneira de dar um passo em frente é contrariar tudo o que está feito, dizia, quando entrevistado pelos jornalistas.

Deve ser por isso que nunca correu atrás das modas. Começou por ser neorrealista, mas a grande motivação até era contestar o regime de Salazar, que emoldurava toda a arte na corrente do modernismo. Querubim Lapa pintou mendigos, costureiras e principalmente mulheres do povo para denunciar a pobreza e a opressão exercida pelo Estado Novo.

De nenúfar em nenúfar

 Querubim Lapa misturou todas as artes para inventar uma cerâmica colorida e diferente de tudo o que se fazia. 

Ser desta ou daquela corrente artística não era o que lhe fazia feliz. Andou pelo expressionismo, deixou-se inspirar pelos «Nenúfares» de Monet, experimentou o abstracionismo, o cubismo e até voltou, por breves momentos, ao neorrealismo «atualizado» logo após o 25 de Abril. Mas sempre se sentiu deslocado no meio artístico.

Nem quando andou na Faculdade de Belas Artes, em Lisboa, fazia tudo o que os professores queriam.

Boa parte deles eram uns «botas de elástico», queixava-se. Estavam tão presos às regras que não deixavam margem para explorar novos caminhos. E ele não gostava nada de separar a arte em gavetas. Arquitetura de um lado, pintura do outro, escultura noutro, e a cerâmica, essa, nem estatuto tinha para entrar no clube dos eleitos. Era antes uma expressão «cansada», sem qualquer hipótese de sair da prateleira de bibelôs da casa da avozinha.

Querubim Lapa misturou todas as artes para fazer uma cerâmica colorida. Deu-lhe volume com os baixos-relevos e brilho com os vidrados. Aprendeu ainda com os operários da Viúva Lamego, a fábrica onde trabalhava, a fazer tintas e a usar materiais como o esmalte. Testou pigmentos e fez novas cores, trabalhou o barro para encontrar texturas diferentes e conversou com os arquitetos para estudar o melhor encaixe dos seus painéis nos edifícios.

Conversas no ateliê

 A porta da oficina, na António Arroio, estava sempre aberta para os alunos poderem participar nos trabalhos de Querubim. 

Foi assim, livre como um pássaro com asas de anjo, que Querubim Lapa trabalhou praticamente até ao último dia dos seus 90 anos. Mesmo depois de reformado, repartia o tempo entre o ateliê da Fábrica Viúva Lamego, onde executava as grandes obras, e a oficina na António Arroio, onde deu aulas durante 43 anos.

Os alunos da escola é que, tal como os lisboetas, também tiveram muita sorte. A porta da oficina estava sempre aberta. Os miúdos entravam para conversar, mas sobretudo para ver como ele trabalhava e até ajudá-lo a acabar muitos dos painéis.

Não se tratava de mais uma disciplina do curso que tinham de frequentar, nem sequer havia hora certa para acontecer. Mas foi ali que se puderam expandir em obras grandes, coisa pouco habitual nas salas de aula.

De serralheiro a artista

 Querubim estava pronto para tirar o curso de serralheiro quando o professor o aconselhou a mudar-se para uma escola artística. 

Agora que já ficamos a conhecer um bocadinho melhor a sua vida, só falta contar o último segredo:

Querubim Lapa não planeava ser artista. Era para ser antes serralheiro.

Mas, logo no primeiro ano do curso, o professor reparou nos seus desenhos e achou que o lugar dele era na Escola António Arroio. Terá sido ele, porventura, o grande responsável por ter mudado o destino do pintor-ceramista-escultor.

Mas, se é para reconhecer o mérito de todos os que influenciaram o percurso do artista, será preciso destacar igualmente o papel das mulheres da sua família. Foi precisamente para fugir às quatro irmãs que Querubim começou a rabiscar sozinho, deitado no chão do seu quarto. Elas já deviam saber, melhor que ninguém, o que era melhor para ele. 🤣

A casa de Querubim e Susana

Se quase toda a arte de Querubim Lapa está na rua, há uma parte que está dentro da casa dele e que, naturalmente, é privada. Ainda assim, no acervo do jornal Público, há uma apresentação multimédia que merece ser visitada.
Espreitem, é maravilhoso descobrir os cantos da casa e ouvir o artista a explicar os detalhes ocultos na azulejaria da cozinha, os bilhetes de amor para a Susana, a sua mulher, escondidos nos quadros do quarto ou no interior dos móveis e ainda os desenhos espalhados pelos seus cadernos.
O trabalho é parte do projeto «Como se não existisse nada – Querubim e Suzana» (2016) de Sibila Lind. A jornalista multimédia e realizadora acompanhou, durante um ano, o dia-a-dia de Querubim e Susana. E o que dali resultou foram muitas pequenas histórias de amor do casal.

Para visitar a casa, basta carregar aqui.

Ficha biográfica
Nome completo: Querubim Lapa de Almeida
Nasceu em: Portimão, em 1925 (dia e ano não revelados)
Morreu em: Lisboa, 2 de maio de 2016

Será que já conheces a extraordinária história de Yayoi Kusama? Clica aqui se mais quiseres saber.

Fontes consultadas: Entre Nós (RTP) | Revista UP | Wikipédia |

Quantas línguas são faladas no mundo?

A pergunta é simples, a resposta nem por isso. Como a cada duas semanas há, pelo menos, uma língua que desaparece, as contas só podem ser aproximadas. As estimativas andam à volta das sete mil. Dos assobios aos estalidos, passando por códigos secretos, são ricas e variadas as formas que povos encontraram para comunicar na selva, nas cidades ou nas serras. E se achas que o português e o mirandês são as únicas línguas que se falam por aqui, o melhor é ler já a seguir o que o Bicho que Morde descobriu.

Kuşköy em turco significa aldeia dos pássaros. Essa é a povoação, no nordeste da Turquia, cercada de vales e montanhas cobertas de plantações de chá e avelãs. Quando um habitante precisa de falar com outro habitante, lança um uma série de assobios e espera pela resposta, devolvida também em assobios. O kus dili que, traduzido para português, quer dizer língua dos pássaros, é a forma que encontraram para vencer as distâncias e comunicar com os agricultores dos Montes Pônticos.

São cerca de 10 mil os aldeões que ainda sabem falar a língua dos pássaros. Mas, com o telemóvel a substituir cada vez mais os assobios, o provável é o kus dili desparecer. Tal como os cerca de 50 a 60 por cento dos idiomas que se calculam poderem vir a acabar no próximo século.

Estima-se, aliás, que a cada 14 dias há uma língua que morre, levando com ela as histórias, as canções, as anedotas e os costumes de um povo.

Esta é a razão para não ser possível dizer com rigor quantos idiomas existem no mundo. Serão entre 6500 e 7100, embora cerca de dois mil com menos de mil falantes. As línguas vivem numa grande selva, onde cada uma luta pela sobrevivência. É um mundo injusto, onde os mais fortes eliminam os mais fracos.

 

O rei da selva

 O inglês é a língua mais falada no mundo, mas o português também está no top 10, é o nono idioma, com 252 milhões de falantes. 

O inglês, com 1,2 mil milhões de falantes, é, como sabemos, o leão desta selva, estendendo o seu reinado pelos filmes, música, televisão, reuniões de negócios e até colóquios internacionais que põem toda a gente a falar da mesma maneira.

Existem outras línguas que, embora não conseguindo competir com o poder de sua majestade, surgem a seguir nesta cadeia de grandes predadores. Entre os milhares de idiomas que tentam resistir, apenas 23 contam com mais de meio milhão de falantes – entre os quais o português com 252 milhões.

A esmagadora maioria tem poucas hipóteses de resistir não só ao domínio da língua inglesa como, em alguns casos, às perseguições políticas e religiosas ou até à falta de dinheiro dos governos para investir na sua preservação.

Os que correm grande perigo são também os dialetos das pequenas comunidades, a lutar pelo seu espaço em países muitos populosos.

O recorde da diversidade

 A Papua Nova Guiné, na Oceânia, é o país com mais línguas: 850 faladas por pequenas comunidades isoladas nas montanhas da selva. 

É o caso da Indonésia com mais 700 línguas e 270 milhões de habitante. O bahasa, no entanto, sobrepõe-se a todas elas como língua oficial. Ou, então a Papua Nova Guiné, com oito milhões de pessoas e cerca de 850 línguas.

É um recorde absoluto e a proeza muito se deve ao facto de uma boa parte das populações viver isolada na selva montanhosa sem contacto com o mundo exterior.

Havendo, contudo, vontade, é sempre possível salvar um idioma, como já aconteceu com o hebraico. Estava praticamente extinto no fim do século 19, mas começou a ser recuperado em paralelo com o nascimento de um sentimento nacional judaico. Hoje, é a língua oficial do estado de Israel, sendo falada por oito milhões de israelitas.

Ou o catalão que, depois de décadas de perseguição pela ditadura de Francisco Franco, renasceu a partir dos anos 1970, como forma de afirmação política e cultural da região espanhola da Catalunha.

São línguas que sobrevivem a tudo porque continuam a ser ensinadas nas escolas, mas também porque os mais novos aprendem com os mais velhos em casa.

Este é o segredo para um idioma durar para sempre, mesmo quando o resto do mundo fala numa língua diferente. Só em Nova Iorque, por exemplo, são faladas mais de 800 línguas, além do inglês, claro.

A(s) língua(s) portuguesa(s)

 Barranquenho, minderico ou romani são algumas línguas ainda faladas em Portugal, além do português e do mirandês, línguas oficiais. 

E quem julga que o português é a única língua genuína que por aqui se fala, é capaz de ficar surpreendido ao saber que há outras formas de comunicar a fazer também parte do nosso património linguístico. Não, não é apenas o mirandês, que em 1999 ganhou estatuto de segunda língua oficial e conta com três dialetos – o central, o raiano e o sendinês.

É também o cabo-verdiano ou crioulo, língua oficial de Cabo Verde, falado por cerca de 200 mil pessoas. E o barranquenho com cerca de três mil falantes, do concelho de Barrancos, muito influenciado pelo espanhol.

Ou o minderico, com cerca de 200 falantes. Começou no século 17, como um código secreto entre comerciantes e fabricantes de mantas e acabou por se alastrar pelas comunidades da Serra de Aires e Candeeiros.

E não fica por aqui, o caló português que, segundo as contas do site Ethonologue, é falado por cinco mil ciganos, mistura o português com muitas palavras do romani. E o próprio romani, ainda falado por meio milhar de pessoas da comunidade cigana.

E já que estamos a incluir tudo, tudinho, porque não acrescentar as cerca de 15 línguas dos imigrantes residentes em Portugal, segundo as estimativas do Pordata? Pelo andar da carruagem, qualquer dia também teremos de incluir nesta lista o inglês algarvio… admirem-se! 😉

Vejam como soam as cinco línguas que o Bicho Que Morde selecionou por serem muito diferentes de tudo o que se fala por este planeta fora.

Kuş dili

Trata-se de uma versão com 400 anos da língua turca, que usa assobios agudos para comunicar a grandes distâncias. A língua está associada a Kuşköy, uma aldeia no norte dos Montes Pônticos, na Turquia, que todos os anos celebra um festival dedicado à língua dos pássaros. Em 2017, a UNESCO incluiu o idioma na lista do Património Cultural Imaterial.

 Vídeo: a linguagem dos pássaros da aldeia Kuşköy

!Xóõ

É a língua dos estalidos produzidos com a ajuda da língua ou dos lábios e sem a ajuda dos pulmões. Também chamada de taa, pertence à família de línguas africanas khoisan. É falada por cerca de quatro mil pessoas espalhadas por um vasto território do Botsuana e por algumas regiões da Namíbia.

Vídeo: a língua mais difícil do mundo

Pirahã

Falado por cerca de 350 indígenas das margens do Rio Maici, no Amazonas, tem apenas 12 fonemas e só conhece o presente. Nesta língua, que não tem forma escrita, não há passado nem futuro, tal como não existem também números ou palavras para descrever as cores, a não ser claro ou escuro.

Vídeo: a comunicação sem passado nem futuro

Rotokas

Falado por cerca de quatro mil habitantes de Bougainville, ilha da Papua Nova Guiné. Não apresenta sons nasais e tem apenas 11 fonemas e 12 letras no alfabeto (A, E, G, I, K, O, P, R, S, T, U, V).

Vídeo: o mais pequeno alfabeto do mundo

Minderico

Também chamada de piação dos charales do Ninhou, a língua tem duas variantes regionais: a de Minde e a de Mira de Aire, designado também calão mirense. Em 2015, foi incluída no Registo da Memória do Mundo da UNESCO, um programa que visa sensibilizar o público para a urgência de preservar o património documental. Ficam aqui alguns exemplos de palavras usadas no minderico: carranchano (amigo), fusca (noite), gargantear (cantar), bruxo (computador) ou albertinas (bolachas).

Vídeo: o código secreto dos comerciantes de têxteis

🧡💛🤍 Aqui fica mais uma sugestão de leitura para quem quer saber também quantas cores tem o mundo.

Fontes consultadas: Ethnologue – Languages of the World | National Geographic | Living Tongues | Junta de Freguesia de Minde | The kids should see this | Endangered Languages |

Por que são os morcegos, afinal, os heróis deste filme?

Está na hora de reabilitar a imagem dos morcegos, que nestes últimos meses têm visto a reputação muito danificada. É certo que são o principal suspeito por espalhar este novo coronavírus. Tal como já estiveram na origem de epidemias anteriores, o Sars ou o Mers, por exemplo. O que eles fazem pela sobrevivência do planeta é, no entanto, incomparavelmente maior do que as doenças que transmitem. Não há, por isso, um obrigado/a suficientemente grande para compensar toda a maledicência que têm vindo a sofrer.

A má fama dos morcegos não é, obviamente, de agora. Muito antes da Covid-19, já eles povoavam casas assombradas, florestas amaldiçoadas ou casebres de bruxas malvadas, que ilustram lendas, mitos ou livros para crianças e adultos. Ninguém se esquece, aliás, do sanguinário Conde Drácula, a personagem inventada pelo irlandês Bram Stoker, em 1897.

Ainda há quem acredite que os morcegos se divertem a abocanhar os pescoços das suas vítimas, embora eles só apreciem frutas e insetos.

Bom, na verdade, há alguns – poucos, muito poucos mesmo – que são vampiros.

Mas até isso é uma vantagem para os humanos. O composto químico anticoagulante, usado para digerirem o sangue das vacas ou dos porcos, é muito útil na medicação dos pacientes com tromboses e outros problemas cardíacos.

Drácula ou Batman, qual preferes?

 Ambos são personagens inspiradas nos morcegos. Enquanto uma é o terror das aldeias, a outra combate o crime nas cidades. 

Haverá sempre duas formas de olhar para os morcegos. Uma delas é verem-nos como os vilões desta história: seres feios e dentuços, escondidos nas grutas, à espera da escuridão da noite para atacar os mais desprotegidos.

Ou, então, heróis como o Batman a vigiar o planeta, enquanto todos os outros dormem. Quem defende a primeira hipótese tem bom remédio: fechar esta página e continuar a navegar pelo restante site.

Todos os outros e outras….

Sejam bem-vindos/as ao fabuloso mundo do único mamífero com asas à face da Terra.

Esse mundo é tão grande que se estende por países de todos os continentes, exceto a Antártica. Do que eles gostam mais, contudo, são das florestas tropicais, junto ao eixo do Equador, onde encontram calor, humidade e alimento em abundância.

O termómetro da Terra

 Ao detetarem os estragos provocados no ambiente, os morcegos são grandes aliados dos cientistas na avaliação da saúde do planeta. 

Estão por todo o lado e, entre as cerca de duas mil espécies, vão do mais pequeno – como o morcego-zangão, do tamanho de um polegar – à raposa voadora, que pode atingir 1,8 metros (que monstruosidade!). São de variados tipos e envergaduras, mas têm um grande talento comum: os guinchos ultrassónicos que nenhum humano consegue captar. É uma espécie de sonda que lhes permite caçar, medir distâncias e comunicar no silêncio da noite.

Não julguem que é para compensar a falta de visão. Os morcegos, ao contrário do que muitos pensam, podem ver, ouvir e cheirar. Essas altas frequências sonoras – também usadas, por exemplo, pelos golfinhos -, são uma boa ferramenta para, no meio da escuridão, conseguirem apanhar os insetos mais minúsculos.

Humanos, animais e plantas só têm a ganhar quando eles estão por perto. Nas florestas, nos campos de cultivo ou nas zonas urbanas, os morcegos são como um termómetro a medir os estragos provocados no ambiente. Os cientistas contam muito com a ajuda deles para avaliar a saúde dos ecossistemas, desde espécies ameaçadas, explorações agrícolas intensivas ou excesso de betão e cimento a colocar em perigo os habitats selvagens.

O apreciador de frutas tropicais

 Quem gosta de mangas suculentas ou bananas maduras devia saber que, sem os morcegos, elas nunca chegariam à nossa fruteira. 

E não esqueçamos a sua função polinizadora. Ah, pois, não são só as abelhas, embora, neste capítulo, tenham o papel principal. Mas será pouco prudente menosprezar as mais de cinco centenas de plantas que, por este planeta fora, dependem dos morcegos para se multiplicarem, incluindo as bananas, os abacates, as mangas ou as goiabas.

É que, nestes frutos com flores noturnas mais pálidas, as abelhas nem sequer se aproximam. Elas só têm olhos para as cores garridas que brilham durante o dia. As restantes plantas, mais discretas, estabeleceram um acordo muito útil para elas e para os morcegos, que também se alimentam destas delícias tropicais.

Quebrar este equilíbrio tem consequências desastrosas, como já aconteceu recentemente no México.

Quando foram colhidas antes do tempo da floração, as plantas de agave – utilizadas na produção de tequilha e de mezcal– não deixaram só os morcegos sem alimento. Também essas plantas – ao não se reproduzirem através da polinização, mas da clonagem – acabaram por perder a sua diversidade genética e a ser dizimadas pelas doenças trazidas pela bicharada.

Por muitos avanços existentes na agricultura, os morcegos continuam a ser o pesticida mais natural e eficaz no controlo de pragas. Numa noite, são capazes de devorar milhares de insetos nocivos para as plantações. Eles enchem a barriga até ficarem saciados, mas têm a noção das medidas certas. Os químicos, por outro lado, além de contaminarem os solos, eliminam de vez os insetos e, consequentemente, acabam com o principal alimento dos morcegos.

Os bombeiros da Natureza

 Os morcegos preferem viver nas zonas florestais ardidas, fertilizando os solos e ajudando a Natureza a renascer. 

Como se tudo isso não fosse por si só uma grande bênção, os morcegos ajudam também na reflorestação de áreas destruídas pelo fogo ou pela exploração madeireira. Tal como os pássaros, eles largam nas fezes as sementes dos frutos que vão fertilizar os solos e permitir que a Natureza possa renascer. No caso dos incêndios, o seu papel é ainda mais vital. Estudos de investigadores australianos, publicados no ano passado, concluíram que os morcegos preferem as áreas florestais ardidas. Há gostos para tudo. E ainda bem que assim é.

Porque são os morcegos transmissores de doenças?

O Bicho que Morde não quer ser acusado de esconder informação. Vamos, por isso, à parte espinhosa (ou será dentuça?) desta história. Sim, os morcegos transmitem doenças, muitas delas perigosas para a saúde humana. Os investigadores ainda tentam entender porque é que eles parecem ter uma maior predisposição para transportar e transmitir vírus potencialmente mortais para os humanos, como é o caso do Ébola, Marburg, SARS (Síndrome Respiratória Aguda) e agora o novo coronavírus (Covid-19).

Uma das hipóteses mais prováveis está na combinação de três fatores: cavernas húmidas, excesso de população e características genéticas. Os morcegos, ao viverem em comunidades muito numerosas e concentradas em espaços confinados, oferecem aos vírus as condições ideais para viverem felizes.

A convivência pacífica com o vírus

Acrescente-se as características genéticas dos morcegos e está encontrado o paraíso para muitas doenças se espalharem. Aos morcegos, no entanto, nada lhes acontece. Ao contrário dos humanos e dos ratos, os seus genes estão com as antenas sempre ligadas. É uma espécie de superimunidade que ganharam à conta das altas temperaturas corporais atingidas durante os voos. Registando valores que atingem os 40 graus centígrados, eles são capazes de conviver com os vírus sem apanhar sequer uma ligeira constipação.

Connosco é que é bem diferente. As nossas febres, por mais altas que sejam, não chegam nem de longe ao calor com que os vírus já se habituaram durante o convívio com os morcegos. A batalha do nosso sistema imunitário é, neste caso, muito maior.

Que tal não sirva de desculpa para amaldiçoar os morcegos. Basta deixá-los em paz no seu mundo. É do que precisam para continuarem a ser os melhores vigilantes do planeta.

Ernesto von Rückert

Nota final: os morcegos também são bibliotecários zelosos e discretos nas suas funções. Tanto a biblioteca Joanina, da Universidade de Coimbra, como o Palácio de Mafra dependem de morcegos-anões para conservarem obras valiosíssimas com séculos de antiguidade. Não é fácil dar de caras com eles. É à noite que saem dos esconderijos para caçar traças, moscas e outros insetos, evitando assim o uso de químicos no combate às pragas dos livros. E, pronto, é só um acrescento que o Bicho que Morde achou que iam gostar de saber. 😉

Se tens um carinho especial por animais amaldiçoados, vais gostar também de ler este artigo: «Por que gostam os abutres de cadáveres?»

Crédito da foto da biblioteca Joanina: Ernesto von Rückert / CC BY 

Júlio Verne é que tinha razão!

Júlio Verne (1828 – 1905) é muito mais do que um autor de ficção científica. Ao longo da sua obra literária, ele inventou um helicóptero, um submarino, um foguetão lunar, uma televisão, uma internet e muitas outras tecnologias que só entraram no mundo real nos séculos seguintes.

Não julguem que eram apenas ideias vagas. Em todas as invenções, havia descrições técnicas e detalhadas sobre como essas máquinas funcionam. Muito do seu trabalho vinha das revistas científicas que devorava todas as tardes. Mas essa pesquisa era apenas a rampa de lançamento para a imaginação dele disparar rumo ao futuro, esse lugar onde tudo é possível. «O que uma pessoa pode imaginar, outros podem tornar real», dizia Júlio Verne. E não é que tinha razão?

Descubram, a seguir, algumas das grandes invenções que ele antecipou com décadas – em alguns casos, um século – de avanço.

«Cinco Semanas em Balão»

Balão de ar quente

1863Victoria é o aeróstato que Samuel Fergusson construiu para atravessar a África de leste a oeste. A vela, em tafetá, estava untada de uma goma impermeável e resistente a ácidos e gases. Tinha ainda tubos de aço – a ligar a caixa de calor ao globo -, revestidos de borracha para evitar fissuras. O balão de Júlio Verne pesava 1814 quilos, estava equipado com barómetro, bússola e termómetro e ainda três âncoras de ferro para forçar o poiso. A travessia narrada em «Cinco Semanas em Balão» acontece 43 anos antes da primeira grande viagem feita sem escalas por Gordon Bennett, entre Paris e o Norte de Inglaterra, em 1906.

1783 – O primeiro balão tripulado do mundo subiu aos céus a 5 de junho de 1783. Os Irmãos Montgolfier – Joseph-Michel e Jacques-Étienne – foram os inventores franceses do aparelho.

«Paris no Século 20»

Automóvel

1863Júlio Verne narra o dia-a-dia da capital francesa na década de 1960, descrevendo as ruas movimentadas com carros que, em vez de puxados por cavalos, são impulsionados pela força invisível de um motor.

1886 – Em junho, o engenheiro alemão Karl Benz apresentou o Benz Patent-Motorwagen, o primeiro automóvel movido a gasolina do mundo. Com três rodas de uma bicicleta, chassi de madeira, um banco e uma manivela a servir de volante, o veículo já tinha motor, mas não ia além de 16 km/h.

O computador

1863 Casmodage é outra invenção de Júlio Verne que surge no livro «Paris no Século 20». Trata-se de um aparelho com teclas semelhantes às do piano que, pressionadas, fornecem o resultado de somas, subtrações e multiplicações.

1946 – O ENIAC (Electrical Numerical Integrator and Computer) foi o primeiro computador digital eletrónico de grande escala criado pelos americanos John Eckert e John Mauchly. O engenho começou a ser desenvolvido em 1943, durante a Segunda Guerra Mundial, para calcular trajetórias tático-militares com base em estimativas matemáticas, mas só se tornou operacional já depois da guerra. O computador pesava 30 toneladas, tinha 70 mil transistores e 17 468 válvulas a vácuo, ocupando uma área equivalente à de um pavilhão desportivo.

«Da Terra à Lua»

Foguetão Lunar

1865Um foguetão em forma de bala foi lançado com três astronautas próximo do Cabo Caneveral, na Flórida, Estados Unidos, para o espaço. Júlio Verne dá as coordenadas geográficas para o lançamento da primeira nave a fazer uma viagem à Lua, muito aproximada do local que a Nasa conclui, 100 anos mais tarde, ser o melhor ponto para as missões deste tipo.

A cápsula lunar descrita por Verne tem um sistema de refrigeração em circuito fechado, transporta alimentos concentrados e está equipada com foguetes secundários. Está ainda protegida com paredes de alumínio de 20 centímetros. Os astronautas descolaram da gravidade da Terra com um empurrão de 11 km por segundo e demoraram 97 horas de voo para chegar ao satélite do nosso planeta.

1969Saturno V, com 110 metros de altura e três toneladas, também chamado de Moon Rocket, foi o foguete usado no voo Apolo 11. Neil Armstrong e Buzz Aldrin foram os primeiros homens a pisar a Lua no dia 20 de julho. Os dois passaram duas horas e 15 minutos fora da nave e recolheram 21,5 kg de material lunar.

«Vinte mil Léguas Submarinas»

Submarino elétrico

1870O escritor francês narra a história de um monstro marinho, que se desloca a velocidades incríveis e destrói tudo por onde passa. Esse monstro é Nautilus, o primeiro submarino elétrico da ficção científica. A eletricidade é alimentada através do sódio fornecido pela extração da água do mar. Nautilus tem um casco duplo, separado em compartimentos estanques e atinge a velocidade máxima de 93 km /h (50 nós).

1886 – O Gymnote, do engenheiro naval francês Gustave Zédé, é considerado o primeiro submarino totalmente elétrico e o primeiro equipado com torpedos. Foi construído com um único casco de aço, uma quilha de chumbo destacável e três hidroplanos de cada lado.

Escafandro autónomo

1870É nas Vinte Mil léguas Submarinas que surge também o primeiro escafandro autónomo, equipado com um reservatório de ar acorrentado nas costas. Ao contrário dos engenhos nessa altura, o mergulhador não precisava de estar ligado a uma bomba que, a partir da terra, enviava oxigénio por um tubo de borracha.

1943 –Jacques-Yves Cousteau e Emile Gagnan inventaram o primeiro escafandro autónomo. O Aqualung substituiu os anteriores pesados escafandros, continuando ainda hoje entre os mais populares para a prática do mergulho.

Arma de eletrochoques (taser)

1870O comandante do Nautilus, o capitão Nemo, usa uma arma que lança projéteis carregados com eletricidade estática, muito parecida com os atuais tasers – dispositivos que paralisam o inimigo através de descargas elétricas. «Quem lhe tocasse receberia um choque que seria mortal».

1969 – O taser foi inventado pela Nasa em 1969, mas só ganhou notoriedade quando, em 1993, começou a ser fabricada em grande escala por uma empresa americana.

«Uma cidade flutuante»

Navio Great Eastern

1871 «Uma Cidade Flutuante» traz a aventura do navio Great Eastern, com os tripulantes e os passageiros a enfrentarem tempestades, acidentes, um ciclone e mortes até chegarem ao destino. O tamanho gigantesco da embarcação e as suas infraestruturas, como por exemplo o uso massivo do vapor para alimentar as máquinas, são descritas em detalhe por Júlio Verne.

1858 – O SS Great Eastern foi um navio de passageiros britânico projetado por Isambard Kingdom Brunel e construído pelos estaleiros da J. Scott Russell & Co., em Londres. Na altura, foi considerada a maior embarcação do mundo. Tinha capacidade para cerca de quatro mil passageiros e conseguia fazer uma viagem do Reino Unido até à Austrália sem reabastecer.

Quinhentos Milhões da Begum

Satélite

1879No livro, o leitor assiste ao lançamento de uma máquina que vai orbitar a terra.

1957 – O Sputnik 1 foi o primeiro satélite artificial da Terra, ao ser lançado pela União Soviética, a 4 de outubro de 1957, no foguetão espacial Protão.

«A Casa a Vapor»

Autocaravana

1880Júlio Verne conta as viagens de um grupo de colonos britânicos pela Índia numa residência com rodas puxada por um elefante mecânico movido a vapor.

1910 – Na década de 1910, os ingleses transformaram o famoso Modelo T-Ford numa autocaravana que, aos fins-de-semana, servia para as escapadinhas no campo. Nos EUA, também já havia americanos a fazer o mesmo.

«Robur, O Conquistador»

O avião e o helicóptero

1886Robur inventa um barco voador impulsionado por 64 pequenas hélices. Para espanto de todos, o engenho eleva-se do solo e desloca-se na vertical. E, com este invento, o protagonista prova aos membros do Weldon Institute ser possível às embarcações mais pesadas que o ar dominar os céus.

1903 – No dia 17 de dezembro, os irmãos Wright levantam voo no seu avião de Kitty Hawk (Carolina do Norte), fazendo o primeiro voo sustentado e controlado de uma máquina a motor mais pesada do que o ar. Em 1907, o francês Paul Cornu inventa uma máquina voadora com asa rotativa, o primeiro helicóptero da História.

«O dia de um Jornalista Americano no Ano 2889»

Carro voador

1889Francis Bennet, o protagonista desta história, usa um aerocarro nas suas deslocações rotineiras.

Futuro – As primeiras experiências para projetar um carro voador aconteceram no início do século XX com Glen Curtiss e o seu Curtiss Autoplane. Desde então, são muitos os fabricantes, empresas e startups a desenvolverem testes para lançar um modelo. É o caso da americana Boeing, com o seu táxi aéreo, ou da NEC, empresa japonesa que quer ter os seus veículos a flutuar nas estradas a partir de 2030.

Telejornais

1889Na mesma obra, surge também a versão televisiva dos jornais: o Crónicas da Terra é um bloco noticioso com jornalistas a conversarem com cientistas sobre os principais acontecimentos do dia. Verne também antecipa, nesse livro, a invenção da televisão: o fonotefoto permite aos assinantes do Crónicas da Terra receberem os relatos das notícias acompanhadas de imagens, obtidas através da fotografia intensiva.

1940 – Lowell Thomas foi o jornalista que apresentou a primeira transmissão de notícias regular na história da televisão. O bloco noticioso diário, na verdade, era uma transmissão simultânea do seu programa de rádio da NBC, com a transmissão para televisão e apenas para Nova Iorque.

«Ilha de Hélice»

Internet

1895Na «Ilha de Hélice», surgem várias descrições sobre transmissão e partilha de informações em rede, que muitos autores consideram ser uma visão muito aproximada do que é a internet. «A Ilha toma conhecimento das novidades pelas telecomunicações telefónicas com a baía Magdalena, de onde se unem os cabos submarinos na profundidade do Pacífico.»

1969 – No dia 29 de outubro, a Universidade da Califórnia enviou o primeiro email do mundo para o Instituto de Pesquisa de Stanford, nos EUA, mas foi na década de 1990 que a World Wide Web (www) foi criada. O físico e professor britânico Tim Berners-Lee foi o inventor do primeiro navegador ou browser.

Já que chegaste aqui, convido-te a conhecer também a história de Paganini: «A maldição de um talentoso violinista».

Créditos da fotos de Tim Berners-LeeITU Pictures CC BY 2.0 

Os Cinco: a aventura continua!

Há 78 anos, em maio de 1942, a escritora inglesa Enid Blyton publicou os «Cinco na Ilha do Tesouro». Foi nessa data que ficámos a conhecer os irmãos Júlio, David e Ana, a prima Zé e Tim, o cão rafeiro com faro de caçador. A ideia inicial era escrever meia dúzia de livros e acabar com a brincadeira em três ou quatro anos, no máximo. O plano, entretanto, saiu furado, mas pelos melhores motivos. A criançada ficou de tal forma viciada, que ela estendeu esta aventura até 1963, publicando ao todo 21 livros.

Comprados nas papelarias ou então requisitados nas bibliotecas, estes foram os primeiros livros a sério para muitas crianças das décadas de 1970 e 1980. Sem letras grandes, nem bonecada, mas com páginas escritas do princípio ao fim e uma narrativa organizada em capítulos. Tal e qual como qualquer livro de adultos.

O segredo do sucesso não é difícil de perceber. Enid Blyton era uma hábil contadora de histórias, apesar de muito criticada por usar vocabulário simples para caracterizar as personagens ou narrar as aventuras.

Mas ela, desde cedo, percebeu que uma boa leitura vive das emoções que desperta e não de palavras pomposas e complicadas. Nunca precisou de floreados e rodriguinhos para prender os leitores aos seus livros.

Tinha antes uma imaginação tão fervilhante que, muitas vezes, dizia ter uma «tela de cinema» a correr à solta dentro da cabeça.

As ideias escorriam-lhe como cascatas de água, levando-a a escrever a uma velocidade incrível de 10 mil palavras por dia. Capítulos inteiros foram, muitas vezes, teclados numa só tarde, na sua máquina de escrever pousada no colo.

São páginas e páginas sem uma gota de tédio para emperrar a leitura, guiada pelos cinco a explorar passagens e esconderijos secretos, mansões e barcos assombrados e a perseguir contrabandistas ou bandidos da pior espécie. Era muita adrenalina a acelerar naquela escrita, mas muita gulosice também.

Limonada, scones e compotas

 Impossível ler sem salivar com as descrições dos lanches dos cinco. Havia pães, bolos variados, frutas, compotas, e picles. 

Se há trechos que os leitores nunca esquecerão são justamente as descrições detalhadas dos piqueniques com as toalhas de algodão estendidas sob o céu azul e banhadas de sol, limonada caseira e muita comida para inquietar as papilas gustativas de crianças conformadas com papos secos e copos de leite frio que tinham para o lanche.

Sandes de pepino, ovos cozidos, alface fresca e crocante, rabanetes vermelhos, sardinhas enlatadas, pão derretido na boca, presunto, scones e bolos variados, potes de manteiga, compotas, tortas de maçã, tomate, beterraba, picles feitos pelas mulheres dos agricultores ou frutas suculentas.

Meu Deus! Como terá salivado a miudagem quando os livros foram publicados pela primeira vez….

É claro que as gerações seguintes também, mas, em plena Segunda Guerra Mundial e com a Europa a racionar leite, arroz, carne ou farinha, aquele fartote de alimentos coloridos pôs certamente muita gente, naquela altura, a lambuzar-se com os olhos e com a imaginação.

Sem escola e sem adultos por perto

 Júlio, David, Ana e a prima Zé são livres para fazer o que lhes dá na gana. Sem pais nem adultos por perto para lhes moer o juízo. 

A comida sempre foi uma parte importante, mas não fiquem com ideias erradas. O papel principal sempre esteve guardado para os cinco. Ou, dito de outra maneira, para as aventuras que viveram sempre que começavam as férias da escola. E, no mundo dos cinco, só havia férias escolares. Melhor ainda: férias intermináveis e sem adultos por perto.

A miudagem devorava tudinho até à última página. No fim – há que admitir –, sobrava uma pontada de inveja a ressoar na cabeça: onde é que se meteram os pais desta malta? Porque é que, às páginas tantas, não aparecia uma mamã, de rolos na cabeça, a gritar de uma marquise de alumínio para a praceta cercada de prédios:

«Não vou repetir nem mais uma vez que o jantar está na mesa!»

Nenhum deles tinha um único pai a moer-lhes o juízo ou sequer a mostrar qualquer interesse em passar as férias com eles. Era estranho, mas toda a gente sabe que, nos livros, tudo é possível. Júlio, David e Ana, a prima Zé e o cão Tim estavam entregues a si próprios para fazer o que lhes desse na gana.

É verdade que eles não tinham televisão, internet ou videojogos. E quem é que se lembra disso quando corre pelos prados, sobe ao topo de castelos em ruínas, atravessa túneis, visita quintas abandonadas, rebola nos campos verdes ou apanha banhos de sol nas enseadas de areia?

Enfiados nos apartamentos das cidades, a coleção «Os Cinco» foi (e ainda é) o escape de muita criançada que tinha (e ainda tem) de desesperar pelas férias de verão para poder respirar ar fresco e liberdade. E, quase 80 anos depois, os livros de Enid Blyton continuam a mostrar como a infância é a mais empolgante aventura de todas as gerações.

Os 5 + 1 – As personagens e a autora

É o irmão mais velho de Ana e David. É também o mais sensato de todos e, logo, o líder do grupo. Nos livros, é descrito como alto, forte, inteligente, além de responsável e gentil.

Ao contrário da prima Zé, é assustadiça. Ela não gosta de aventuras arriscadas, mas acaba sempre por vencer o medo e participar em todas as peripécias. O forte da Ana é planear, organizar e preparar as refeições, mantendo tudo limpo e arrumado, seja dentro de uma tenda, de uma gruta ou de uma caravana.

É muito brincalhão, um pouco atrevido até, mas também muito protetor da irmã mais nova, Ana.

É uma maria-rapaz, exigindo que toda a gente a chame de Zé e nunca de Maria José (George ou Jo e nunca Georgina, na versão original). Faz questão de ter o cabelo curto e vestir-se como um rapaz. Enid Blyton diz que se inspirou nela própria para criar esta personagem teimosa, destemida e que também ferve em pouca água, tal como o pai, o cientista Quentin Kirrin.

É o cão da Zé e um importante aliado, que ataca ferozmente os inimigos do grupo. Como matreiro que também é, especializou-se em lançar olhinhos de cachorro abandonado sempre que quer comer as guloseimas das crianças. Não tem medo de nada, tirando os banhos, que não suporta.

Aos 45 anos, quando lançou o primeiro livro da coleção «Os Cinco» («The Famous Five», na versão original), Enid Blyton já era uma escritora bem conhecida com várias obras infantis publicadas.

A personagem Noddy também está entre as suas criações mais famosas. Os livros dela estão entre os mais vendidos do mundo, com as estimativas a apontarem para os 500 milhões de exemplares.

Num inquérito feito, em 2008, pela organização do Prémio Costa Book Awards, ficou em primeiro lugar no ranking dos escritores mais populares, ultrapassando grandes nomes como Jane Austen, Roald Dahl e JK Rowling.

O genérico da série de TV (1978)

Se queres mais uma boa sugestão de leitura, clica também neste artigo : Bill Watterson. Três quadrados fora da caixa

Por que é bom falar com as plantas?

Se é bom falar com as plantas, não é certamente por causa delas, que não têm ouvidos, olhos nem nariz para ouvir, ver ou cheirar. Nós é que, regra geral, gostamos de atribuir características humanas não só aos bichos como também aos vegetais. É provavelmente uma maneira de nos sentimos mais próximos deles. Mas nada disso é preciso para tornar o reino das plantas mais interessante. Elas são organismos vivos, complexos e cheios de mistérios, que vamos agora descobrir.

Nos últimos anos, houve inúmeras descobertas científicas sobre as incríveis habilidades das plantas, provando que estão longe de serem criaturas aborrecidas e passivas. É certo que não têm cérebro, não podendo sentir dor ou todo o amor que lhes damos ao regar e falar com elas. Mas, além de compartilharem muito do DNA dos humanos e animais, têm respostas e órgãos em abundância a imitar muito bem as nossas capacidades para reagir ao ambiente e comunicar com os outros.

Dos jacarandás, aos catos, passando pelas algas ou pelas urtigas, as plantas têm entradas sensoriais intrincadas e variadas, que lhes permitem lançar e detetar substâncias químicas não apenas para captar as cores, como coordenar ataques, combinar estratégias de defesa, sincronizar os tempos para amadurecer ou pedir socorro às suas companheiras.

Da raiz até à folha, a planta está conectada entre si e geneticamente programada para adaptar-se ao meio onde tem as suas raízes enterradas.

Começando logo pela capacidade de proprioceção que é o que lhes permite perceber onde estão localizadas as várias partes do seu corpo sem ter de usar a visão ou o toque. É uma característica comum nos humanos e nos animais, ajudando no equilíbrio e coordenação dos movimentos.

No interior de um vegetal

 Apesar de não terem cérebro, as células das plantas comunicam entre si, ajudando-as a crescer e a criar defesas contra doenças. 

Se pudéssemos, aliás, espreitar o interior de uma planta, iríamos descobrir que, apesar de não terem sistema nervoso, as suas células são capazes de comunicar entre si, usando aquilo que os investigadores chamam de recetores de glutamato.

Trata-se de uma proteína que, nos animais, auxilia na transmissão dos sinais nervosos de um neurónio para outro, facilitando a aprendizagem e a memória. No reino vegetal, desempenham um papel importante no seu crescimento ou na defesa contra doenças e pragas.

Como quase todas as plantas têm mais tipos de recetores de glutamato que todo o nosso sistema nervoso, é provável que sejam importantes para muitas outras funções que os investigadores procuram ainda compreender.

E há também estudos a sugerir que têm a capacidade de comunicar entre elas, além de métodos sofisticados para responderem a estímulos do exterior. Quando muito próximas umas das outras, as plantas libertam substâncias químicas no solo, avisando as suas companheiras para acelerarem, por exemplo, o crescimento.

O comportamento é uma estratégia de defesa para não ficarem na sombra de outras plantas e privadas da luz solar.

Os canais subterrâneos servem para falar com as vizinhas sobre tudo o que as inquieta, desde ataques de pulgões, instruções para se preparem para dias de seca ou até para perceber se os novos moradores do bairro são da família ou intrusos. Mas não é única via de comunicação de que dispõem, já que os mesmos sinais químicos podem ser também lançados e captados pelo ar.

A solidariedade e as decisões coletivas

 O solo ou as vias aéreas são os canais que plantas e árvores usam para alertar sobre os perigos ou tomar decisões em conjunto. 

É o caso dos salgueiros, por exemplo, que, quando atacados por lagartas, atiram feromonas para a atmosfera, avisando os salgueiros da vizinhança de que há invasores a rondar a sua tribo. Esses sinais gasosos são rapidamente detetados pelos companheiros, que desatam a fabricar essa substância em quantidades industriais, tornando as suas folhas desagradáveis e tóxicas para as lagartas.

Também os frutos são capazes de tomar decisões em conjunto sem precisar de convocar reuniões ou assembleias de condóminos.

Basta expelirem para o ambiente o etileno, hormona vegetal, responsável pelo seu amadurecimento. É assim que as laranjas, as maçãs ou as ameixas informam as suas parceiras de que estão prontas para entrar na vida adulta. E assim também que os pomares e bosques inteiros decidem em conjunto estar na hora de os seus frutos caírem maduros das árvores.

A rede que liga a floresta

 As árvores comunicam-se através de uma teia de raízes e de fungos, que transportam informações e nutrientes para toda a floresta. 

Se todas essas habilidades já nos deixam boquiabertos, o que dizer então da rede de comunicação criadas pelas florestas para manter o equilíbrio do ecossistema? Há uns anos, os investigadores observaram em laboratório que as raízes de pinheiros poderiam transferir carbono para outras raízes de pinheiro.

Ficaram tão espantados com a proeza que decidiram analisar o solo das florestas. E o que descobriram deixou-os pasmados. As árvores comunicam-se através do micélio – uma emaranhada teia subterrânea de raízes e de fungos a ligar toda a floresta. É uma espécie de internet vegetal que ajuda a passar não só as mensagens como também os nutrientes.

As árvores usam o micélio para enviar sinais químicos e conseguir saber quais é que estão mais necessitadas de carbono, nitrogénio, fósforo e carbono e quais estão em condições de enviar esses elementos.

Os sinais andam para trás e para diante, levando e trazendo informação e substâncias essenciais para a floresta encontrar o seu equilíbrio. A rede de micélio permite também que as mais velhas cuidem das mais novas. Uma única árvore adulta pode fornecer, através da rede, alimento para centenas de árvores mais jovens.

A vida toda com as raízes no mesmo lugar

 Por estarem presas ao solo, as plantas desenvolveram mecanismos incrivelmente sensíveis, para se protegerem dos perigos ou encontrar comida. 

Há muitos mais mistérios que os cientistas não conseguiram ainda descodificar, tal é a riqueza da biologia vegetal. Tudo o que as plantas e as árvores são capazes de fazer é o resultado deste enorme constrangimento de não poderem soltar as suas raízes e saírem por aí de mochilas às costas em busca de comida, de um companheiro ou simplesmente de um lugar mais tranquilo para viver.

Se as andorinhas viajam de norte para sul, fugindo ao inverno, os leopardos correm atrás das presas e as formigas armazenam alimentos para os tempos mais difíceis, as plantas desenvolveram mecanismos incrivelmente sensíveis.

Só assim conseguem ver onde está a comida, avaliar as condições climatéricas e sentir o perigo que se aproxima, sobrevivendo em ambientes sempre em mudança. Elas são capazes de quase tudo como nós. Só não conseguem ouvir quando conversamos com elas. Mas, a verdade é que não precisam dos ouvidos para nada.

Se gostas de mistérios da natureza, lê também: Por que é a natureza (quase) toda simétrica?

Obrigado Ignaz Semmelweis!

Quantas vezes lavas as mãos por dia? Muitas mais do que antes, seguramente. Que remédio! A medicina pode até ter evoluído imenso, mas água e sabão continuam entre as melhores armas para derrotar os velhos e os novos vírus. Simples, não é? Só que não foi assim tão fácil para o médico que há 173 anos descobriu o poder deste gesto para salvar vidas. Ele bem que tentou convencer os colegas. E, de tanto insistir, arruinou a carreira e acabou os dias fechado numa instituição para doentes mentais.

Está na hora de conhecer um pouco melhor a vida de Ignaz Semmelweis. É o mínimo que poderíamos fazer para reconhecer tudo o que ele tem feito por nós nestes tempos de pandemia.  Entremos, por isso, no Hospital Geral de Viena, na Áustria, onde ele trabalhou como médico obstetra, entre 1844 e 1850. Mas não abram a porta de repente e sem antes usar a máscara. É agora procedimento obrigatório em qualquer recinto fechado, mas, naquele tempo, servia unicamente para afastar o bafio pestilento a pairar no ar.

Sim, custa a acreditar, mas é verdade: nessa altura, os hospitais eram lugares nauseabundos.

Quartos, corredores, salas, tudo tresandava a xixi, vómito e outras imundícies acumuladas por falta de limpeza. O cheiro era tão intenso que toda a gente usava lenços para tapar o nariz. Os médicos – a bem da verdade – também não se preocupavam muito com a higiene. Raramente lavavam as mãos ou sequer os instrumentos.

Não será difícil concluir que, até à segunda metade do século 19, seria mais seguro ficar doente em casa do que correr para os hospitais. O perigo de infeções causadas por vírus e bactérias nem passava pela cabeça deles. Acreditava-se antes que as doenças viajavam em nuvens de vapores venenosos a espalhar partículas em decomposição vindas do subsolo e conhecidas como miasmas.

O mistério das mortes nas maternidades

 Semmelweis descobriu que as infeções podiam ser evitadas com a lavagem das mãos, mas os colegas continuaram desleixados. 

No Hospital Geral de Viena, no entanto, as infeções não atingiam todos os pacientes da mesma forma. Com duas maternidades a funcionar em alas separadas, Semmelweis estranhou que uma tivesse mais mamãs e bebés a adoecerem do que a outra. Os casos aconteciam principalmente com os médicos e estudantes de medicina do que com as parteiras.

Durante meses, ele testou várias hipóteses, acabando por concluir que, ao não lavarem as mãos, os médicos transportavam «partículas cadavéricas» vindas das salas de autópsias. Era esta, afinal, a grande diferença entre as duas maternidades.

Logo de seguida, colocou uma bacia cheia de cal, água e cloro para que, sob a sua vigilância, todos desinfetassem as mãos antes de entrarem na maternidade.

Um mês depois, o índice de mortalidade caiu de quase 20% para menos de 2%.

O resultado seria mais do que suficiente para o hospital adotar novas regras de higiene, mas, a triste história é que os médicos continuaram desleixados. Enquanto uns nem sequer seguiam as recomendações dele, outros lavavam as mãos a despachar e sem os cuidados básicos.

Nós é que somos culpados?

 Os médicos ficaram ofendidos por Semmelweis atribuir a causa de morte dos doentes às más práticas dos hospitais. 

Na primavera de 1850, Semmelweis fez mais uma tentativa para ser ouvido. Subiu ao palco da conferência da Sociedade Médica de Viena e, perante uma multidão, alertou para os perigos das más práticas dos hospitais.

_ Quem é este espertinho para vir aqui dizer que nós é que somos os culpados das mortes dos pacientes? – cochicharam os médicos entre eles.

Rapidamente o burburinho subiu de tom com a classe em peso a atacar o médico por pôr em causa a velha teoria das nuvens venenosas – tão velha que viajou da Idade Média até ao século 19 sem nunca ser questionada.

A gota de água foi quando Semmelweis publicou um livro com a sua tese e chamou de «assassinos» aos médicos que não lavavam as mãos.

Aí é que foi a desgraça completa, foi corrido do hospital e regressou a Budapeste, na Hungria, onde nasceu.

Nos anos seguintes, continuou a trabalhar num pequeno hospital da cidade, dando aulas e ensinando também aos colegas a importância da lavagem correta das mãos. Os novos hábitos de higiene eliminaram praticamente as febres e as infeções, mas não foi por isso que o chorrilho de críticas ao seu trabalho acabou. Semmelweis continuava, todos os dias, a ser atacado por defender a sua teoria.

O fim trágico de Semmelweis

 O médico húngaro foi arrastado para um asilo, onde acabou por morrer duas semanas mais tarde. 

E, com isso, foi ficando mais triste, mas também mais intempestivo. Ninguém podia tocar no assunto, que explodia como uma fera, levando tudo atrás. Os colegas decidiram que o melhor seria interná-lo num asilo. Foi arrastado contra a vontade, enfiado num colete de forças e trancado numa cela.

Não durou muito tempo o pobre Semmelweis. Duas semanas depois, morreu aos 47 anos, no dia 13 de agosto de 1865. Mas não foi nem de tristeza nem de fúria. Foi antes de uma ferida na mão direita que infetou e, sem tratamento próprio, acabou por gangrenar.

Quão mais trágico e irónico poderia ter sido o fim deste homem?

Ao remexerem nos papéis que deixara no gabinete, os colegas encontraram uma nota onde ele desabafava: “(…) Quando olho para o meu passado, só consigo dissipar a tristeza imaginando um futuro onde as febres mortais serão banidas (…)”.

Sabemos hoje que essas infeções não desapareceram. Mas de lá para cá, a medicina deu passos gigantes. No nosso presente, toda a gente sabe que os hospitais, por mais problemas que tenham, são lugares que curam e não lugares que matam.

Louis Pasteur, Joseph Lister e Robert Koch foram os cientistas que, décadas mais tarde, muito beneficiaram do trabalho de Semmelweis para revolucionar – cada um na sua especialidade-, os métodos de combate às infeções. Eles e todos nós só podemos estar gratos e gratas à dedicação com que este médico húngaro se entregou à medicina e aos doentes.

Obrigado Ignaz Semmelweis!

Que tal ler também a extraordinária vida de um outro médico? Como Lazowski usou a ciência para derrotar os nazis.

O carteiro trouxe uma carta para ti

E se abrisses a caixa do correio e encontrasses uma carta endereçada para ti? Seria pouco provável nos dias que correm, mas, menos improvável se enviasses uma a alguém que te é querido. Escreve quando tiveres um tempinho e aguarda pela resposta. Enquanto esperas, lê alguns excertos de outras cartas tão importantes para contar as histórias de países, mas também de famílias e de amigos que, mesmo à distância, continuaram juntos.

Ninguém pede para voltar aos aos tempos em que não existia nem internet, nem email, nem chats, nem todas as tecnologias que nos põem a comunicar em tempo real com alguém na outra ponta. Seja essa ponta o fim da rua ou a longínqua Sibéria. Ninguém pede, salvo seja… Ninguém pode, por muito que queira, regressar ao passado.

O email é a resposta para os dias impacientes que hoje as empresas, os amigos, as tarefas do dia-a-dia ou as deslocações para aqui e acolá impõem. A vantagem dele, obviamente, é ser imediato. É como uma conversa. Mas em vez de voz, palavras tecladas. Em vez de pensamentos soltos e trivialidades, perguntas diretas e orientações precisas. No trabalho, então, é assustador passar um dia sem ele.

Tornou-se vital para tomar decisões em minutos, convocar, adiar ou cancelar reuniões, lançar ideias, acrescentar mais ideias, descartar ideias, enviar convites, anunciar mudanças, decretar regras, divulgar eventos, pedir esclarecimentos, enviar ficheiros, tudo em cima do acontecimento.

A carta, essa, coitada, chega sempre atrasada.

Não é só escrevê-la – o que, por si só, leva tempo –, é também dobrar o papel, enfiar no envelope, lamber o selo, escrever o nome e a morada, enviá-la pelo correio. E esperar que percorra estradas, embarque e desembarque do avião, entre no saco do carteiro e chegue ao destino. Sim, esperar pacientemente.

Ou desesperar sem poder perguntar, naquele instante, o motivo da demora. Porque não respondes à carta que te enviei? Será que não a recebeste?

A dúvida fica a remoer – muitas vezes durante semanas
Santarém, 5 de junho de 1962
Minha boa Amiga,
Soube agora – somente agora – que a Sophia me havia telefonado há dias para a minha antiga morada. Peço que me perdoe tão tarde dar sinal de vida, mas realmente só ontem fui notificado do telefonema. Peço-lhe, por conseguinte que, num rápido postal, me diga do que se trata. Poderá fazer-me esse favor?
(…)
Carta do poeta Herberto Helder à poetiza Sophia Mello Breyner Andresen

***

Meses
Lisboa, 22 de março de 1950
Querido Amigo,
Não te tenho escrito por não ter presente o número da tua porta. Vou pôr 16 e seja o que o demo quiser.
(…)
Carta do poeta Mário Cesariny para o «homem que pinta» e também escritor Cruzeiro Seixas.
***
Até ao dia em que …
São Paulo, 10 de novembro 1924
Meu caro Carlos Drummond
Já começava a desesperar da minha resposta? Meu Deus! Comecei esta carta com pretensão… Em todo o caso, de mim não desespere nunca. Eu respondo sempre aos amigos. Às vezes demoro um pouco, mas nunca por desleixo ou esquecimento. As solicitações da vida é que são muitas e as da minha agora muitíssimas…
(…)
Carta do poeta Mário de Andrade para o poeta Drummond de Andrade. 

Quando abrimos o envelope, já é passado.

Tanta coisa que, entretanto, terá mudado. Noivos que, nesse tempo, se casaram, recém-licenciados que arranjaram emprego, casais que tiveram filhos, avós que tiveram netos, viajantes que partiram ou regressaram. Sabe-se lá o tanto que pode ter já acontecido…

Tão mais fácil enviar um email, certo? Ainda assim, não deve haver pessoa no mundo que não goste de receber uma carta. Mesmo aquelas que nunca receberam uma conseguem, certamente, imaginar a excitação que seria abrir a caixa do correio e ver um postal ou um envelope com o seu nome escrito.

Para: Exma. Sra. Hermengarda Nicolau

Os olhos saltam logo das órbitas de tão felizes que ficam.

Há que fazer a devida ressalva para as cartas das finanças ou aquelas que trazem as contas e as faturas para pagar por multibanco ou débito direto. Os olhos também se reviram, mas, como toda a gente sabe, o motivo é bem diferente.

Essas não interessam, naturalmente. As que nos comovem são aquelas que foram escritas por alguém que arranjou tempo para se dedicar só a nós. Sentado numa mesa, em cima da cama, numa esplanda, escrevendo palavra a palavra, cada uma com destinatário único.

Nem precisa ser nada de especial. Só mesmo para perguntar como vai a vida, o que temos feito com os nossos dias, o que se passa na vizinhança, na escola, em casa.

Cidade do Cabo, 4 fevereiro de 1969
Minhas queridas,
A bonita carta da Zindzi chegou em segurança, e fiquei muito feliz por saber que ela agora está no 2º ano. Quando a mamã veio ver-me em dezembro, disse que vocês as duas haviam passado nos exames e que a Zeni estava agora no 3º ano.
Agora sei que Kgatho e Maki também passaram. Agrada-me muito ver que todos os meus filhos estão a ir bem. Espero que consigam fazer ainda melhor até ao final do ano.
Fiquei feliz ao saber que a Zeni já sabe cozinhar batatas fritas, arroz, carne e muitas outras coisas. Estou ansioso pelo dia em que poderei desfrutar de tudo o que ela cozinhar.
(…)
Carta de Nelson Mandela da prisão para as filhas Zenani e Zindzi Mandela.
***
Key West, 28 de maio de 1934
Querido Scott,
(…)
Como estão o Scotty e a Zelda? A Pauline manda cumprimentos. Estamos todos bem. Ela vai a Piggott por algumas semanas com o Patrick. E vai trazer de volta o Bumby. Nós temos um bom barco. Eu vou indo bem numa longa história. Difícil de escrever.
Sempre teu amigo,
Ernest
Carta do escritor Ernest Hemingway para o escritor F. Scott Fitzgerald.

As cartas não têm grandes propósitos, não precisam de motivos especiais, nem de serem urgentes.

Mas quando são enviadas, há sempre um remetente que fica em ânsias para que não demore muito a chegar ao outro lado. E um destinatário apanhado de surpresa com notícias que chegam de lugares onde, se calhar, nunca esteve, ou se calhar, gostava de voltar.

Quem as envia nunca as escreve a despachar, mesmo que tenha de interromper e retomar a escrita mais tarde. Com a prática, aprende também a contar histórias, a aperfeiçoar as melhores técnicas para prender a atenção de quem está longe.

E quem as recebe, lê e relê, leva-a para todo o lado e guarda-a para todo o sempre. Não é por acaso que há registos de cartas com séculos e séculos de existência.

Ninguém (ou quase ninguém) as deita fora. A carta sobrevivente mais antiga do mundo é do ano 230 depois de Cristo e foi enviada de um irmão para outro irmão em papiro e num grego antigo.

Theadelphia (Egito), ano 230 d.C.
Saudações, meu senhor, meu incomparável irmão Paulus.
Eu, Arrianus, te saúdo e rezo para que tudo corra pelo melhor possível na tua vida. Uma vez que Menibios vai ter contigo, acho conveniente enviar também os meus cumprimentos, assim como estender as saudações ao senhor nosso pai.
(…)
Mas envia-me também o molho de fígado de peixe na quantidade que achares melhor. A senhora nossa mãe está bem e manda saudações para ti, para as tuas esposas e filhos mais doces, para os nossos irmãos e para todo o nosso povo.
(…)
Rezo para que estejas bem na graça do Senhor.

É a carta mais antiga, mas o que não faltam são cartas que ficaram para a História de países, mas também para as histórias de cada um de nós. Cartas enviadas dos campos de batalha, das prisões, de pais e filhos separados, de namorados secretos ou de artistas exilados. Cartas de amor, cartas públicas de escritores, ativistas ou políticos, cartas que chegaram aos nossos dias, trazendo registos que, de outro modo, se perderiam para sempre.

Prisão de Birmingham, Alabama, 16 de abril de 1963
(…)
Nunca tinha escrito uma carta tão longa. Temo que seja longa demais para o vosso tempo precisoso. Posso assegurar que ela teria sido muito mais curta se tivesse sido escrita numa confortável secretária. Mas o que mais se pode fazer quando se está sozinho numa cela estreita da prisão, além de escrever cartas longas, ter pensamentos longos e fazer longas orações?
Carta aberta de Martin Luther King

Quase todas as famílias têm em casa cartas antigas.

Empilhadas, atadas com cordel, guardadas em caixas. Cartas com mechas de cabelo, com pétalas secas, com corações preenchidos a vermelhos, desenhos e rabiscos de crianças. Cartas perfumadas, em papel azul, bege ou rosa. Algumas já rasgadas, outras com manchas de tinta, de gordura, de café ou carcomidas pelas traças. São marcas do tempo.

Tornaram-se objetos que se podem sentir entre os dedos, agarrar, dobrar, enfim, tudo o que o email não consegue.

Sensações muito parecidas com os livros. A diferença é que não é uma leitura solitária a despertar a imaginação para lugares, cheiros ou emoções tão estranhos ou tão familiares. A carta não é uma ligação direta a viajar num email de um computador para o outro. É antes um encontro de duas mentes a partilharem experiências. Muitas vezes – quantas vezes – só para dizer, a quem está do outro lado, que nada os irá separar. Aconteça o que acontecer.

PS: diga a si mesma, minha querida mamã, que preencheste minha vida com doçura como ninguém poderia ter feito. E que é a mais refrescante das lembranças, a que mais me desperta.

Antoine Saint Exupéry – Lettres à sa mère, Gallimard (1955)

Se ainda te sobra tempo para viajar pelo passado, experimenta ler: «A vida sem telemóvel não foi assim há tanto tempo.»

Excertos das cartas retirados de:

A boneca perdida de Kafka

Franz Kafka morreu com a fama de homem sombrio e angustiado. Feitio que nada combina com o que se passou no verão de 1923. Esta é a história de como o escritor checo ajudou uma criança desconhecida a ultrapassar a perda da sua única boneca. Mas também a história de como os rótulos são para os produtos e não se colam às pessoas. E, por fim, uma história inacabada, que qualquer um pode completar.

Com os dias de sol a aquecer, cada vez mais, o verão da cidade de Berlim, Franz Kafka saía todas as tardes para dar algumas voltas no parque de Steglitz. Eram passeatas curtas, muitas vezes com a companheira Dora, só mesmo para encher os pulmões de ar fresco, antes de se encafuar no quarto e recomeçar a escrever.

Num desses passeios, um choro miudinho arrastou a atenção dele para um banco do jardim. Uma criança de trancinhas escuras soluçava ao mesmo ritmo das lágrimas, a correr como dois rios pela cara. Franz aproximou-se dela, pousou a mão no ombro e perguntou o que se passava.

_ Perdi a única boneca que tinha! – balbuciou a rapariga, aumentando, logo de seguida, os decibéis do choro para níveis audíveis em quase todo o parque.

Franz ficou atrapalhado com o súbito berreiro.  E ali, naquele momento, improvisou uma história para a sossegar.

_ Não fiques triste, por favor. Ela não está perdida, não te preocupes.

_ Como é que sabes?

_ Sei porque ela deixou comigo uma carta para te entregar quando já estivesse longe.

_Uma carta? Qual carta? E de onde te conhece ela? – perguntou a rapariga, que, entretanto, parara de chorar, mas franzia o sobrolho meio desconfiada.

_Peço desculpa pela minha falta de educação. O meu nome é Franz Kafka e sou o carteiro das bonecas.

_ Sério?

_ Claro que sim. Trago-ta amanhã a esta hora, se voltares ao parque.

Comprometido com a mentira, Kafka escreveu, nessa mesma noite, uma carta em nome da bonequinha. E, como combinado, voltou ao parque no dia seguinte. Ao ver a rapariga a balouçar as pernas no mesmo banco, abriu um sorriso e estendeu-lhe um envelope lacrado.

A partir daí, todos os dias e, durante três semanas, o escritor entregou pontualmente as cartas da boneca à rapariga.

Cada uma, com uma nova aventura e também com um selo diferente, de Paris, de Praga, de Barcelona, Londres, Tóquio, de Casablanca ou de outro lugar distante por onde a viajante andaria a passear.

Uma história incompleta

Um livro tem de ser como um machado para quebrar o mar de gelo que há dentro de nós.Franz Kafka - Carta a Oscar Pollak (1904)

Agora, preparem-se, vem aí a parte estúpida desta história, passada na Alemanha, no verão de 1923. Infelizmente, ninguém sabe o que está escrito nessas cartas. Ou sequer quem era a criança que comoveu o escritor checo. Durante anos, Klaus Wagenbach, um estudioso da obra de Kafka, procurou pela menina nas proximidades do parque, bateu à porta dos vizinhos, publicou anúncios nos jornais e nada, nem uma pista sequer.

O que se sabe é o que Dora, a companheira de Kafka, contou aos amigos, depois dele morrer com tuberculose num sanatório perto de Viena. O episódio acabou por ir parar aos jornais, transformando-se rapidamente num mistério a intrigar escritores, investigadores e leitores de todas as partes do mundo.

Durante essas três semanas – assegura Dora Diamant -, Kafka escreveu as cartas com a mesma dedicação com que se empenhou nos muitos contos e romances que o tornariam, mais tarde, num dos mais importantes nomes da literatura do século 20.

É provável que já tenham ouvido falar das obras mais conhecidas dele.

«O Processo», por exemplo, conta a história de Josef K., um bancário, muito zeloso do seu trabalho, acusado por um crime que, por mais que procurasse as respostas nos tribunais ou na polícia, nunca viria a descobrir quais eram. Ou «A Metamorfose», centrado nas aventuras do caixeiro-viajante Gregor Samsa, que, ao ver-se subitamente transformado num inseto gigante e repelente, passa a viver enclausurado no seu quarto.

São livros que, de tão bizarros e sombrios, aprisionam os leitores até à última página. No caso, em particular, de «O Processo», também deu origem ao adjetivo «kafkiano», usado em muitas partes do mundo para descrever leis ou modelos de organização labirínticos, confusos, intricados e estupidamente inúteis.

O escritor esquisito

Acreditando apaixonadamente em algo que ainda não existe, nós a criamos.Franz Kafka – O Castelo

Deveria ser um homem muito estranho este Kafka… Mas como é que, sendo tão esquisito, conseguiu cativar uma criança crédula, ao ponto de ela acreditar que as bonecas têm sonhos e vontade própria? É natural esta dúvida. Boa parte dos leitores estão convencidos de que os escritores e escritoras revelam muito do que são através dos seus livros.

O que não é totalmente falso. Mas não significa que seja totalmente verdadeiro.

Colar um rótulo a qualquer pessoa, já agora, é anular tudo o que ela é.

E, no caso de Kafka, que tinha fama de «neurótico», ou «atormentado», seria esquecer que era gentil, generoso e até um bocado ingénuo, como conta o alemão Reiner Stach na biografia de três volumes que escreveu sobre o autor.

Há, aliás, centenas de biografias, estudos e ensaios sobre o autor e a sua obra. Sabemos muita coisa sobre Kafka – da infância aos últimos dias, passando pelos livros publicados. Só não sabemos o que está escrito naquelas cartas. Mas podemos sempre imaginar… Tal como já o fizeram outros escritores. O americano Paul Auster recorda esta história no livro «The Brooklyn Follies».

O brasileiro Moacyr Jaime Scliar também quis escrever sobre este episódio, mas desistiu ao descobrir que outro escritor já o havia feito e estava prestes a publicar a história. E chegamos assim a Jordi Sierra i Fabre, o autor do livro para crianças «Kafka e a boneca viajante». Ao longo de pouco mais de 100 páginas, o catalão imagina como teriam sido as conversas entre Kafka e Elsi e o conteúdo das cartas de Brígida – nomes inventados pelo escritor – que ajudaram uma rapariguita de Berlim a ultrapassar a perda da sua única boneca.

Fica aqui um curto excerto deste livro, só para espicaçar a imaginação. A história verdadeira ficará para sempre incompleta. Mas isso é que a torna ainda mais especial. Qualquer um pode completá-la.

Querida Elsi,
antes de mais nada, desculpa por ter ido embora tão de repente, sem me despedir. Sinto muito e espero que não estejas zangada. Às vezes, fazemos coisas sem perceber, ou reagimos diante do que o nosso instinto nos diz, acabando por magoar quem não queremos. É que as despedidas são tristes e eu não queria que chorasses ou me tentasses convencer a ficar mais um pouco.
Mas agora sei que vais ficar mais tranquila sabendo que estou bem, vais alegrar-te por nós as duas. Viver é seguir sempre em frente, aproveitar cada momento, cada oportunidade e necessidade[…]. Ensinaste-me muitas coisas, que me fizeram ser uma boa boneca. A partida foi triste por te deixar, mas bonita porque graças a ti sou livre para fazer isso. Sierra i Fabre - Kafka e a boneca viajante

O livro «Kafka e a boneca viajante» ganhou, em 2007, o Prémio Nacional de Literatura Infantil y Juvenil em Espanha. Não está traduzido em Portugal, mas tem uma edição do Brasil, que é possível encomendar.

Já leste, por acaso, «O Principezinho: a história por detrás do clássico»?

Ilustrações: «Marigold Garden» (1910), de Kate Greenaway.

As 10 proibições de Salazar

Antes do 25 de Abril de 1974, havia muitas proibições, por isso, estas 10 que os Bichos no Sótão desenterraram são apenas uma amostra. Alguns destes exemplos podem até dar vontade de rir de tão cómicos que são, mas servem para ter uma pequena ideia de como era a vida no país de Salazar, em que até os sonhos, as ambições e o amor eram controlados por decretos.

Beijos na boca

Um beijinho, mesmo de fugida, mesmo pequenino, se fosse na boca, era o suficiente para um namorado atrevido ser arrastado para a esquadra. Além de multado em pelo menos 57$00 (28 cêntimos), só saía em liberdade depois de o agente da polícia lhe rapar a cabeça. É isso que nos conta o jornalista e escritor António Costa Santos no seu livro ProibidoBeijos na rua ou no jardim eram considerados atos exibicionistas que afrontavam a moral e os «bons costumes» do Estado Novo.

Escolas mistas para rapazes e raparigas

Rapazes e raparigas nunca se cruzavam na escola. Se elas iam para aulas de manhã, eles iam só da parte da tarde. No caso em que as escolas tinham mais do que uma sala, as turmas eram separadas por géneros e havia um pátio de recreio para rapazes e outro para raparigas.

Cantar o hino nacional era a primeira coisa que se fazia e todas as salas tinham afixados na parede uma fotografia de Salazar, outra do presidente da República e um crucifixo, além da palmatória na mesa do professor ou professora, que servia para castigar os malcomportados.

Outro castigo frequente era colocar a criança num canto da sala com orelhas de burro enfiadas na cabeça. Até à década de 50, a instrução básica obrigatória era de três anos para as raparigas e de quatro para os rapazes.

Biquinis e fatos de banho decotados

Em 1940, Portugal começou a receber refugiados de toda a Europa. Fugiram da II Guerra Mundial e trouxeram novos hábitos que deixaram Salazar arrepiado. Sobretudo as mulheres que iam sozinhas aos cafés, fumavam como os homens e exibiam as suas minissaias nas esplanadas do Rossio, em Lisboa. Depressa surgiram tentativas para travar essas «modernices» que ameaçavam os costumes incentivados pelo Estado Novo.

Em maio de 1941, o ministro Mário Pais de Sousa decidiu tomar providências no sentido de salvaguardar o «mínimo de condições de decência» nas praias portuguesas. O que este palavreado da lei significa é que os banhistas só podiam usar fatos de banho com as medidas e os decotes previamente determinados pelo Ministério do Interior.

As mulheres eram obrigadas a usar fatos inteiros. Biquínis nem pensar!

O traje tinha de cobrir o peito e as cavas deviam contornar as axilas. Os homens deveriam vestir um calção de corte inteiro, bem ajustado à perna e à cintura, com a parte da frente reforçada e cobrindo boa parte da barriga.

Quem não respeitasse as regras era detido e julgado no próprio dia, podendo ir para a prisão e arriscando-se ainda a uma multa máxima de 300$ (1,50€), aplicada pelo capitão do porto ou comandante da PSP. A fiscalização ficava por conta dos cabos-do-mar que, a partir de meados da década de 1960, não tiveram outro remédio senão começar a fechar os olhos às centenas de turistas mais atrevidos que passaram a frequentar as praias do Estoril e do Algarve.

BD estrangeira

A febre da BD chegou em força na década de 1950. Por toda a Europa e Estados Unidos, as crianças e os adolescentes viviam colados aos livros de banda desenhada. Mas, em Portugal, as histórias aos quadradinhos vindas do estrangeiro estavam proibidas. Nem as publicações americanas, inglesas ou francesas ou sequer as traduções brasileiras ou espanholas estavam autorizadas. Significava isto que as aventuras do Super-Homem, Batman, Capitão Marvel, Tarzan ou até as personagens da Walt Disney não tinham poder para entrar no país.

Os restantes heróis estrangeiros só podiam ser publicados na revista «Mundo de Aventuras» se cumprissem um certo de número de regras. Desde logo, o nome tinha de ser aportuguesado e qualquer tentativa de sacar uma arma era prontamente eliminada, muitas vezes, decepando braços e mãos. E foi assim que alguns dos heróis mais populares entre as crianças portuguesas passaram a ter uma nova identidade. Flash Gordon, era o Capitão Relâmpago, Big Ben Bolt era Luís Euripo, Cisco Kid usava o nome de Luís Ciclone e Rib Kirby era Ruben Quirino.

Isqueiros sem licença

O fiscal dos fósforos ou agente da polícia que apanhasse alguém com um isqueiro sem a respetiva licença de porte deveria confiscá-lo e passar uma multa de 250$ (1,5€). O decreto-lei publicado em novembro de 1937 tinha como finalidade incentivar a indústria nacional fosforeira. A licença era individual, custava 60 escudos (30 cêntimos) e era passada por uma repartição de finanças. Quem denunciasse o infrator ficaria com 15% desse valor. A lei existiu até ao início da década de 1970.

Vender Coca-Cola

Os donos da Coca-Cola fizeram várias tentativas para a bebida entrar em Portugal, mas Salazar nunca cedeu. A explicação oficial era que o seu elevado teor de cafeína podia criar habituação. Proteger os vinhos e os refrigerantes nacionais foi também uma outra justificação apresentada pelo regime. A verdadeira razão, porém, estaria no medo de que, com a entrada da marca americana no país, entrassem também ventos de modernidade que comprometessem os valores morais em que o Estado Novo acreditava.

Pelo menos, foi essa a explicação que Salazar escreveu numa carta endereçada a um representante da Coca-Cola e que está publicada na coletânea Cenas da Vida Portuguesa, de Maria Filomena Mónica (Quetzal):

«Portugal é um país conservador, paternalista e – Deus seja louvado – atrasado, termo que eu considero mais lisonjeiro do que pejorativo. O senhor arrisca-se a introduzir em Portugal aquilo que eu detesto acima de tudo, ou seja, o modernismo e a famosa efficiency».

A bebida entrou oficialmente no país no dia 4 de julho de 1977, curiosamente a data em que os Estados Unidos comemoram a independência.

Vadiagem e mendigos

A proibição de mendigar nas ruas e noutros lugares públicos começa em 1931, tornando-se cada vez mais repressiva nos anos seguintes. O Código Penal dessa altura punia com prisão até seis meses quem fosse considerado vadio. Isto é, quem não tivesse casa, profissão nem meios de subsistência.

Só poderiam pedir esmola os que tivessem uma caderneta a comprovar alguma incapacidade física ou mental ou, então, não pudesse trabalhar devido à velhice.

Os restantes eram capturados pela polícia, julgados como vadios e, por regra, acabavam por serem libertados ao fim de alguns dias. É apenas em 1976 que o Serviço de Repressão à Mendicidade é extinto, acabando-se também com as normas que mandam prender os mendigos.

Mulheres a viajar sem autorização dos maridos

As mulheres não podiam viajar para fora do país a não ser que tivessem autorização dos maridos. A lei foi introduzida no Código do Processo Civil de 1939 e só acabaria três décadas mais tarde, já com Marcello Caetano no poder.  Até 1967, elas tinham também de pedir o consentimento dos maridos se quisessem exercer atividades ligadas ao comércio, assinar contratos ou tomar decisões sobre bens (casas ou propriedades) que lhes pertenciam. Estavam igualmente impedidas trabalhar na administração local, na carreira diplomática, na magistratura e no Ministério das Obras Públicas, interdição que só acabaria, segundo a historiadora Irene Flunser Pimentel, em 1962.

Enfermeiras, telefonistas e hospedeiras só solteiras

Telefonistas da Anglo Portuguese Telephone, enfermeiras dos Hospitais Civis, funcionárias do Ministério dos Negócios Estrangeiros e hospedeiras de ar da TAP não podiam casar. A proibição para as telefonistas acabou em 1939, mas continuou mais umas décadas para as outras profissões.

As enfermeiras só se puderam casar em 1962 e tanto as hospedeiras como as mulheres a trabalhar no Ministério dos Negócios Estrangeiros só viram essa norma abolida após a revolução de 1974.

No caso das professoras primárias, o casamento, a partir de 1936, era permitido quando obtivessem autorização do ministro da Educação Nacional e apenas nas situações em que o vencimento delas era igual ou inferior ao dos maridos.

Os maridos podiam abrir a correspondência das mulheres

Antes do 25 de Abril, foram muitas as disigualdades entre homens e mulheres, com elas a serem empurradas para as tarefas domésticas, sem direito a votar ou a poderem decidir sobre a educação dos filhos. A discriminação chegou ao ponto de os maridos terem o direito de abrir a correspondência das mulheres.

Esse direito estava consagrado no Código Civil de 1966 e só viria a acabar em 1976.

É nesse ano, aliás, que a nova Constituição estabelece finalmente a igualdade entre homens e mulheres em todos os domínios.

Se queres saber mais sobre os costumes no início do século 20, lê também «A vida portuguesa ilustrada a preto e branco».

]

Fontes consultadas: Salazar contra Superman | Público (Os malditos do Estado Novo) | Público (Políticas de repressão à mendicidade no Estado Novo) | Caminhos da Memória (1) | Caminhos da Memória (2) | Diário de Notícias | Antena Livre | Correio do Minho |