Toy Story: a verdadeira história dos brinquedos dos nossos pais

Brinquedos

Não é propriamente um segredo, mas não deixa de ter piada imaginar os nossos pais a pedinchar aos pais deles pelos brinquedos que fizeram sucesso há 20 ou 30 anos. Bonequinhos em miniatura, pistolas de água ou o primeiro videojogo, qualquer um destes objetos tem histórias intermináveis. As as melhores, no entanto, nem sequer estão aqui. Só quem brincou com estes tesourinhos pode contar as aventuras vividas na infância. Perguntem-lhes como era e vão ver como eles nunca mais se calam.

1970-1990

Carrinho de rolamentos

brinquedos

Tudo o que um carrinho de rolamento precisa é uma mão cheia de pregos, tábuas e, claro, rolamentos de transmissão, peças dos carros antigos que sobravam nas oficinas. Depois é só serrar aqui, martelar acolá e já está: prontinho para mais uma corrida pela ribanceira abaixo. Sem capacete, joalheiras ou cotoveleiras. Que se lixe! Arranhões, joelhos esfolados, cotovelos em ferida eram o preço da adrenalina. As corridas de carrinhos de rolamentos ainda hoje acontecem nas cidades ou nas terrinhas, mas o progresso acabou com boa parte do sofrimento. A brincadeira dos miúdos pobres é agora um desporto radical com pista de alcatrão e com equipamento e acessórios de segurança obrigatórios.

Playmobil (para rapazes) …

brinquedos

Hans Beck era um marceneiro alemão que nas horas vagas fazia bonequinhos de madeira. Tão talentoso era que acabou contratado pela fábrica de brinquedos Geobra Brandstätter para trabalhar como desenhista nos anos 60 do século passado. Os bonecos Playmobil surgiram em 1971, mas foi só com a crise do petróleo, dois anos mais tarde, que a ideia de Hans saiu da oficina e chegou às lojas alemãs. Os brinquedos, por terem somente 7,5 centímetros precisavam de pouca matéria-prima (plástico, derivado do petróleo). Mas esta não é a única característica deles.

As mãos em forma de u – que mais tarde passaram a girar – os braços e as pernas articulados, olhinhos redondos e um rosto sorridente são as marcas deste boneco que tão depressa se transforma num polícia, como num astronauta, num índio, num cowboy ou num pirata. Transformações que só têm piada porque trazem acessórios a condizer com o tema: tenda apache, nave espacial, espingarda, arco e flechas, entre outros.

Em 1975, o boneco playmobil é lançado internacionalmente, chegando a vários países, entre os quais Espanha e Portugal. No início da década de 2000, chegou também aos Happy Meals da McDonald’s, o que para boa parte das crianças foi como ter Natal em qualquer altura do ano, já que os brinquedos não são para os bolsos de todos os papás.

… e PinyPon (para raparigas)

brinquedos

Começou por ser um programa infantil chileno emitido a partir de 1965, mas a bonecada ficou famosa nos anos 1970 e 1980 depois de a marca espanhola Feber comercializar os brinquedos de plástico por toda a Europa e Américas. Medem 6 centímetros, têm várias roupas e cabeleiras para trocar, originalmente não tinham boca e surgiam quase sempre aos pares.

E como eram trabalhadores os primeiros Pinypons! Sabiam fazer de tudo um pouco, fosse numa quinta com vaquinhas e porquinhos, num circo com palhaços e malabaristas, a vender cachorros quentes à entrada de uma feira, a preparar refeições numa cozinha portátil, a plantar flores numa casa com jardim ou a conduzir um trator vermelho ou um carocha colorido.

View-Master

brinquedos

A primeira vez que o famoso aparelho vermelho da Sawyer’s Photographic Services apareceu foi em 1939 na Feira Mundial de Nova Iorque. Era uma espécie de binóculos com dois visores e uma ranhura no topo para colocar uns discos de cartão com uma dúzia de imagens em 3D. Havia versões para adultos com slides coloridos de cidades ou de monumentos aproveitados para fins turísticos. E ainda uma versão infantil, essa sim, é que era o delírio entre os mais novos. Ao clicar numa alavanca era possível ver histórias curtas a desenrolarem-se com a bonecada da Disney. A moda chegou a Portugal sobretudo nos anos 70 e 80 do século passado pois até aí, ter um brinquedo destes só se um familiar fosse ao estrangeiro e o trouxesse de presente.

G.I. Joe

brinquedos

Destemidos, armados até aos dentes e sempre prontos a defender a humanidade contra a Cobra, terrível organização criminosa determinada a dominar o mundo. Apesar de lançados no mercado em 1964 pela Hasbro, uma multinacional americana de jogos e brinquedos, só nas décadas de 1980 e 1990 é que os soldados G.I. Joe se tornaram uma febre entre a rapaziada rendida aos personagens como o ninja Snake Eyes, o sargento Slaughter ou o Cobra Commander, vilão implacável, que na série de TV (transmitida pela SIC nos anos 90), nunca venceu uma única batalha.

Game Boy

brinquedos

Criança com um Game Boy era a mais sortuda do mundo. Era o que toda a gente queria e não era caso para menos. Foi o primeiro jogo de consola do mundo, lançado pela japonesa Nitendo em meados da década de 1980. Depois vieram outros jogos, mais avançados, com mais botões, setinhas ou ecrãs, mas este foi o primeiro e o mais popular, chegando a vender perto de 120 milhões por todo o mundo. Super Mario Bros (1985) ou o Tetris (1989) com as peças do puzzle coloridas estão até hoje entre as melhores memórias da infância dos quarentões e cinquentões.

Transformers

brinquedos

Primeiro vieram os desenhos animados, que estrearam em 1989 na RTP, aos sábados de manhã. Máquinas alienígenas assumem formas de carros ou de aviões (no caso dos maus) mas, perante qualquer ameaça, transformam-se subitamente em robôs gigantes e disformes a travar épicas batalhas.

A coisa teve tanto sucesso que a rapaziada não tinha outro assunto no recreio da escola. Logo a seguir veio a bonecada, nada, mas mesmo nada barata. Para muitos pais, que não aguentavam a ladainha dos filhos a pedinchar por um Starscream – que se transforma num jato F-22 «Raptor»  -, ou um Optimus Prime com o seu canhão incorporado, a solução era comprar uma imitação barata. Não eram tão sofisticados, mas a criançada lá se conformava com as versões mais modestas e fazia a festa com o mesmo entusiasmo.

Bola Koosh (fluffy)

brinquedos

Brincar com uma bola parece a coisa mais divertida do mundo, mas para um bebé ou uma criança de 2 ou 3 anos pode ser uma tarefa bem complicada tentar agarrar um objeto redondo e pesado. Deve haver uma maneira mais fácil, pensou Scott Stillinger. E foi assim que, em 1986, o engenheiro americano inventou uma bola com mais de 2 mil elásticos presos no centro para os dois filhos brincarem. Em menos de nada virou uma moda entre as crianças americanas e do mundo inteiro.

Coloridas e macias ao toque podia-se até atirar à cara que não aleijava. Em Portugal, contudo, mais do que um brinquedo, foi um objeto decorativo que as raparigas usavam no porta-chaves ou como penduricalhos nas mochilas. E desta invenção tão simples nasceu uma indústria que tornou Scott num milionário. Em 1997, o inventor vendeu a patente à empresa Hasbro, ganhando mais de 100 milhões de dólares com o negócio.

Pega monstros

brinquedos

Qual tazos, caveiras luminosas, brincos de plástico ou qualquer outro brinde que a marca Matutano oferecia nos pacotes de batatas fritas. Os pega monstros é que eram! Foram um sucesso como não houve outro nos primeiros anos da década de 1990. A miudagem ia direto ao fundo do pacote. As batatas ficavam para depois. Primeiro a brincadeira.

Coisa pegajosa, feita de cola transparente, borato de sódio, água e corantes, colava-se nos cabelos, na cara ou atirava-se contra as paredes, ardósia da sala de aula e mobília lá de casa na esperança de agarrar e trazer algo de volta. Às vezes era uma folha de papel, um clip ou lápis de cor, mas muitas outras vezes era só lixo como cabelos, poeira ou pelos de gato.

Pistola de água super soaker

brinquedos

Lonnie G. Johnson pode até ter inventado uma catrefada de aparelhos complicados como engenheiro da NASA. Ninguém lhe tira o mérito mas, verdade seja dita, nada bate a sua pistola de água super soaker. O brinquedo chegou em 1993 e rapidamente espalhou-se pelo mundo, revolucionando as batalhas travadas no fundo do quintal, nos arbustos dos jardins ou por entre os carros estacionados nas pracetas ao pé de casa.

Com um alcance de quase 20 metros e um reservatório até 2 litros foi o brinquedo mais mortífero que qualquer criança podia pedir. Melhor do que isso, só mesmo uma tarde tórrida de verão para enfrentar o inimigo e regressar triunfante a casa mais ensopado do que um pintainho em dia de chuva.

Cozy coupe

brinquedos

Carro com tejadilho amarelo e carroçaria de plástico vermelha é um clássico da multinacional americana de brinquedos Little Tikes. Lançado em 1979, foi contudo na década de 1990 – com mais de 500 mil exemplares vendidos ao ano –, que conduziu milhões de bebés e crianças pelas autoestradas da fantasia. Inspirado no carocha da Wolksvagen e no carro dos Flinstones era movido a pés e tinha quase tudo como um carro a sério – buzina, chaves, ignição e até tampa de gasolina.

Toy Story (parte 2): a verdadeira história dos brinquedos dos nossos avós

brinquedos

Sabes quantos anos tem a Barbie ou em que ano apareceram os legos? E quando achas que surgiu o Sr. Cabeça de Batata? Não foi só nos filmes de animação Toy Story, isso é mais que certo. Estes são apenas alguns dos brinquedos que surgiram durante a infância dos nossos avós. Tiveram tanto sucesso, que os seus inventores ficaram milionários.

1950-1960

Lego

brinquedos

Foi numa pequena oficina no sul da Dinamarca que o mestre carpinteiro Ole Kirk Christiansen construiu em 1932 o primeiro conjunto de blocos. Feitos em madeira, as peças vermelhas e brancas permitiram montar os primeiros carrinhos para os filhos. Dois anos depois, Ole Kirk funda a empresa Lego – o nome é a combinação de duas palavras dinamarquesas leg+godt (= jogar+bem). O sucesso, porém, só viria a acontecer duas décadas mais tarde. Em 1955 é lançado no mercado o Lego System Play com as peças melhoradas, possibilitando mais combinações para os blocos, entretanto, fabricados em plástico.

O sistema, patenteado em Janeiro 1958, consiste em encaixar as peças-tijolo através de pinos à superfície e tubos ocos no interior das peças. A originalidade está na simplicidade com que se pode montar e desmontar as peças que permitem atualmente 102.981.500 combinações diferentes. Mais do que um brinquedo, as peças de lego – com as quais mais de 400 milhões de crianças já brincaram – são usadas não só nos jardins-de-infância para ajudar no desenvolvimento dos bebés, como nas universidades para ensinar princípios de engenharia, de tecnologia, matemática ou ciências.

 Hula Hoop

brinquedos

Muito antes de o hula-hoop tornar-se uma moda na década de 1950, a brincadeira já era uma arte entre os malabaristas chineses, hábeis a rodopiar múltiplos aros nos braços, nas pernas e à volta da cintura. Foi preciso esperar quase 30 anos para dois americanos, Richard Knerr e Arthur Melin, transformarem simples arcos de plástico coloridos numa moda entre crianças e adultos americanos. Em menos de nada, o brinquedo, lançado pela Wham-O with, vendeu dezenas de milhares, não tardando a contagiar boa parte do mundo.

Senhor Cabeça de Batata

brinquedos

Esquecido durante décadas, o Sr. Cabeça de Batata voltou às luzes da ribalta nos filmes Toy Story, da Disney, entre 1995 e 2010. Um regresso em grande para o primeiro brinquedo a ser anunciado na televisão, em 1952. O Sr. Cabeça de Batata foi inventado por George Learner para convencer as crianças de que comer legumes é divertido e faz bem à saúde. Tinha várias peças, entre olhos, boca, orelhas, nariz, bigode, chapéu ou sapatos que eram distribuídos nas embalagens de cereais de pequeno-almoço para espetar em cenouras, batatas ou qualquer outro legume.

O boneco teve tanto sucesso entre a miudagem, nos Estados Unidos, que a empresa Hassenfeld Brothers – mais tarde se viria a chamar Hasbro –, agarrou-o logo e começou a vendê-lo, lucrando mais de 4 milhões de dólares nos primeiros anos. Mas, foi só com os filmes Toy Story que o Sr. Cabeça de Batata ganhou finalmente vida e personalidade: rabugento, ciumento e malcriado, mas com um coração grande e capaz de fazer tudo para salvar os amigos.

Barbie

brinquedos

Foi durante uma viagem à Europa que a americana Ruth Handler conheceu Bild Lilli uma boneca alemã de calções e saltos altos que os adultos punham no painel dos carros. Ruth lembrou-se logo de como a filha, Bárbara, adorava brincar com bonecas de papel, fingindo que elas faziam tudo o que as mulheres faziam – compras, passeios de carros, cabeleireiro, mudar de roupa e tudo o resto. «Por que é que as bonecas para as crianças têm de ser bebés quando as raparigas como a minha filha preferem brincar aos adultos?»- Pensou a mãe. E foi assim que nasceu a ideia de criar uma boneca adulta para as meninas, inspirada na Lilli.

Elliot Handler, marido de Ruth, foi o parceiro ideal para o sucesso da Barbie, já que era um dos fundadores da Mattel, um dos maiores fabricantes de brinquedos do mundo. A boneca foi lançada na Feira Anual de Brinquedos de Nova Iorque, a 9 de Março de 1959 com o nome da filha, Barbara Millicent Roberts.

As primeiras bonecas, que custavam 3 dólares, tinham duas versões – uma loira e outra morena, a loira foi a que ficou. Hoje, Barbie é a boneca mais conhecida no mundo, fabricada na China e vendida em mais de 150 países. Ela é tão famosa que, em 1992, candidatou-se à presidência dos EUA e, em 2002, deixou as marcas das suas mãos no passeio da fama, em Hollywood, ao lado de outras estrelas de carne e osso como Charlie Chaplin e Marlin Monroe.

Ecrã mágico

brinquedos

Foi nos finais da década de 1950 que o eletricista francês Arthur Cassangnes inventou na sua garagem o Ecrã Mágico (Telecran) e o mostrou na feira de brinquedos de Nuremberga em 1959. O engenho, contudo, só viria a despertar a atenção de um dos maiores manda-chuvas da indústria dos brinquedos no ano seguinte. W. Winzeler, presidente da companhia americana Ohio Art, lançou o ecrã de Cassangnes nos Estados Unidos em 1960 com o nome Etch A Sketch.

O brinquedo original é controlado por dois botões giratórios nos cantos inferiores da moldura vermelha, cada um deles dirige, por sua vez, uma caneta nos sentidos vertical e horizontal. A tela cinzenta está revestida com pó de alumínio e quando a caneta apara o pó desenha uma linha preta. Para apagar o desenho, basta virar o quadro de cabeça para baixo e sacudi-lo.

🤍💛❤ Aproveita a onda nostálgica e espreita também: O design português que fica na memória!

Muhammad Yunus. O banqueiro dos que não têm dinheiro

Muhammad Yunus

Quantos mil milhões serão precisos para acabar com a pobreza? Alguém tem um palpite? Muhammad Yunus precisou de 25 euros e uma simples ideia para que milhões de pessoas, em todo o mundo, pudessem sair da pobreza. É uma história maravilhosa, a dele, que os Bichos-carpinteiros têm muito orgulho em apresentar.

Muhammad Yunus tem 81 anos e nasceu em Chittagong, uma cidade portuária do Bangladesh perto da baía de Bengala. Foi um menino de sorte, já que os pais, não sendo ricos, conseguiram que os 9 filhos fossem para a escola e se tornassem doutores.

Yunus até ganhou uma bolsa e foi para os Estados Unidos fazer o doutoramento em Economia na Universidade Vanderbilt. Assim que terminou os estudos, foi convidado a ser assistente de Economia na Middle Tennessee State University. Mas, esse capítulo, não é o mais importante.

A melhor parte desta história começa quando, em 1972, ele regressa à cidade onde nasceu para dar aulas de Teoria Económica na Universidade de Chittagong. É por volta dessa altura que percebe que algo está errado com a Economia.

_ Teoria e só teoria… -, pensa o professor em voz alta a meio de uma aula.

_ O que foi que disse professor? – Pergunta um dos alunos da fila da frente.

_ Nada, nada Saif. Estava apenas a falar com os meus botões.

_ Ok, professor, mas parece-me que não está muito satisfeito connosco.

_ Não é nada disso, não te preocupes. É comigo que não estou satisfeito.

_ O que se passa professor Yunus? – Quis saber Afroja. Os outros alunos levantam os olhos dos cadernos e olham para o professor.

_ Bom, se querem mesmo saber, acho que algo está muito errado com o ensino da Economia.

Os alunos ficam calados. Não sabem o que dizer e Yunus decide explicar então por que anda tão triste nos últimos tempos.

_ De que servem tantas teorias, tantos estudos, tantos doutores se mesmo aqui ao lado há um bairro cheio de gente que se mata a trabalhar e, ainda assim, não consegue fazer uma refeição decente por dia?

_ Sabe uma coisa professor? Já tinha pensado nisso –, confessa Saif.

_ Pois eu passo o tempo a pensar nisso. Criámos um sistema com a finalidade de apenas fazer dinheiro em vez de resolver os problemas das pessoas.

_ E como mudar isso professor?

_ Não faço ideia, mas desconfio que as respostas não estão dentro destas quatro paredes.

_ Temos de ir ter com eles, não é?

_ É isso mesmo! Temos de ver de perto, fazer perguntas e ouvir o que as pessoas mais pobres têm para ensinar. Acho que só assim poderemos chegar a algum lado e mostrar que a economia não serve unicamente para fazer dinheiro pelo dinheiro.

Da teoria à prática: a primeira lição

Os alunos de Muhammad Yunus saem da sala de aula e vão à aldeia, encostada à universidade, onde dezenas de famílias são exploradas por agiotas.

 

Nessa mesma tarde, o professor sai com os seus alunos do campus universitário, dirigindo-se para a aldeia de Jobra, a poucos quilómetros da universidade. O seu colega, o professor Latifee, também vai com eles porque conhece muitas famílias que ali vivem, além de ter um jeito especial para falar com elas.

A aldeia está separada em três partes: a fração dos muçulmanos, a fração dos hindus e a fração dos budistas. A turma de Muhammad Yunus começa pelos muçulmanos. Caminham entre as ruas, cheias de crianças descalças, muitas delas a brincar só em cuecas, por entre as galinhas e as cabras.

Escolhem uma casa ao acaso. No alpendre, uma mulher trabalha com uma faca e canas de bambu. Ao lado, estão vários instrumentos feitos por ela.

_ Boa tarde, minha senhora – cumprimenta Latifee.

Ela dá um salto ao ouvir a voz dele. Levanta-se e corre assustada para dentro de casa.

_ Não tenha medo. Somos professores da Universidade de Chittagong e só queremos fazer algumas perguntas.

_ Não está ninguém em casa –, ouve-se lá de dentro.

O que ela quer dizer é que não há nenhum homem em casa. No Bangladesh é de muito mau tom as mulheres falarem com estranhos na ausência dos maridos. Mas a visita deles desperta a curiosidade dos vizinhos. Devagarinho aproximam-se, querendo saber o fazem por ali.

A mulher acaba também por sair, ficando à porta com o filho nos braços.

_ Como te chamas? – Pergunta Yunus.

_ Sufia Begum.

_ E que idade tens?

_ 21.

_ O que fazes com o bambu?

_ Ferramentas.

_ Onde arranjas o bambu?

_ Compro.

_ Quanto custa?

_ 5 taka [mais ou menos 5 cêntimos]

_ Tens esse dinheiro?

_ Não. Peço emprestado a um paikar*

[*um comerciante de bambu, mas também um agiota, ou seja, alguém que, sem autorização do banco central, empresta dinheiro, cobrando juros estupidamente altos].

_ Que acordo tens com ele?

_ Ao fim de cada dia tenho de lhe vender as minhas ferramentas para pagar o empréstimo. O que sobrar fica para mim.

_ E quanto fazes por dia?

_ 5 taka e 50 paisa.

_ Então tens um lucro de 50 paisa?

Sufia diz que sim com a cabeça.

_ Porque não pedes mais dinheiro emprestado para fazeres mais ferramentas e aumentares o teu lucro?

_ Podia fazer isso, mas o paikar iria cobrar muito dinheiro, como já aconteceu com outros vizinhos. Em vez de aumentarem o rendimento ficaram com tantas dívidas que já nem conseguem pagá-las.

_ Quanto é que ele cobra?

_ Varia de pessoa para pessoa. Alguns pagam mais 10% do valor do empréstimo por semana, mas há casos em que pagam 10% por cada dia que se atrasam a devolver o empréstimo.

Nos dias seguintes, Yunus e os alunos fazem várias visitas à aldeia. Organizam-se em grupos e procuram outras famílias com histórias parecidas à de Sufia. Ao fim de algumas semanas e, depois de percorrerem os quarteirões muçulmano, hindu e budista, encontram 42 famílias nas mesmas condições.

De regresso à sala de aula: a segunda lição

Muhammad Yunus
Raufur Rahaman Talukder via Wikimedia Commons

A maioria dos pobres trabalha o dia inteiro, ainda assim, não consegue sair da pobreza. Algo tem de mudar, mas o quê?

Muhammad Yunus sabe que a maior parte da população do Bangladesh vive na pobreza. O país tem paisagens belíssimas e tradições muito ricas, mas também é um dos lugares mais pobres do mundo.

_ O que causa a pobreza? – Pergunta o professor aos alunos durante a aula de Teoria Económica.

_ O desemprego –, responde um deles.

_ O desemprego não é a causa, pois a maioria dos pobres trabalha e não é pouco – contrapõe o professor.

_ Será que a culpa também é deles? – Quis saber outro aluno.

_ Nada há de errado com eles. Em Jobra ou em qualquer outra aldeia toda a gente sabe o que tem a fazer para sustentar a família.

_ O sistema! – Atira um aluno ao fundo da sala.

_ Nem mais! O que alimenta a pobreza é o sistema e a saída é emprestar-lhes algum dinheiro para poderem investir nos seus trabalhos sem ficarem à mercê de agiotas.

_ Pois, sim, tudo isso é muito bonito… – interrompe o mesmo aluno – mas não há banco nenhum disposto a emprestar dinheiro a quem não tem dinheiro. Os pobres não têm conta no banco, muitos nunca chegam sequer perto da porta de um banco e a verdade é que os bancos querem distância deles.

_ Mas se eles conseguissem os empréstimos, poderiam mudar-se para bairros com melhores condições, por os filhos a estudar, concorrer a melhores empregos e, quem sabe, até criar os seus próprios negócios –, riposta o professor.

_ Poderia ser tudo muito fácil, mas no fim é tudo muito complicado –, concluiu o aluno.

A teoria e a prática: assim nasce um banco

Muhammad Yunus
David Stanley via Flickr

Muhammad Yunus fundou o Grameen Bank para conceder empréstimos a quem tem poucos rendimentos.

Ao ver que não podia contar com os bancos, Muhammad Yunus decide ele próprio emprestar o dinheiro às famílias. Mas, prestem atenção, não deu; emprestou e exigiu juros de volta, embora mais baixos do que os praticados pelos bancos. Caso contrário, estaria a fazer caridade, algo em que ele não acredita.

O professor da Universidade de Chittagong está convencido de que a caridade apenas prolonga a pobreza, tornando os pobres cada vez mais pobres e dependentes da ajuda dos outros. Por isso, deixa bem claro que o dinheiro terá de ser devolvido.

O empréstimo serviria apenas para começarem pequenos negócios. Poderiam comprar matérias-primas para fazer cestos e vender, ferramentas para construir móveis, comprar vacas e vender o leite.

Não é nenhuma fortuna o que ele empresta. É pouco mais de 25 euros no total, o que dá qualquer coisa como 50 cêntimos para cada família. Parece uma ninharia, mas é o suficiente para começarem com os seus próprios negócios e, passado alguns meses, devolverem o dinheiro com juros e tudo!

Muhammad Yunus fica tão surpreendido que logo se pôs a sonhar mais alto.

Se um empréstimo tão pequeno mudou a vida de dezenas de famílias, quantas mais poderia ele ajudar, fazendo o mesmo que em Jobra?

É então que, em 1976, decide fundar o seu próprio banco, o Grameen Bank, que na língua bengala quer dizer banco da aldeia. A instituição tem como clientes só os pobres. A notícia corre todas as vilas e aldeolas do distrito de Chittagong. Em pouco tempo, camponeses, artesãos, pescadores, mendigos, mulheres casadas, solteiras e viúvas entram no banco de Muhammad Yunus para pedir empréstimos.

Alguns usam o dinheiro para comprar vacas e venderam leite aos vizinhos, outros abrem pequenas mercearias à beira da estrada, outros ainda compram redes de pesca, em algumas aldeias, os habitantes juntam-se e pedem empréstimos um pouco maiores para abrir poços de água, distribuindo água potável por comunidades inteiras.

Com uma ideia tão simples, o professor Muhammad Yunus inventa um banco, onde não é preciso gravata, burocracia, cheques, cartões de plástico ou contratos cheios de cláusulas e letrinhas miúdas.

O Grameen Bank tem como regra de ouro confiar nos seus clientes.

Até agora, tem resultado. Basta olhar para os números: 97% dos empréstimos são devolvidos pelos credores dentro do prazo, o que ultrapassa até as percentagens atingidas pelos bancos tradicionais. Ao longo das últimas décadas, a instituição dele já emprestou mais de 20 mil milhões de dólares a mais de 10 milhões de pessoas.

Uma lição para o mundo inteiro

Muhammad Yunus
Muktar Hossain via Wikimedia Commons

Ao sair da pobreza, as populações carenciadas estão também a contribuir para aumentar a riqueza do país.

Hoje, o Bangladesh ainda tem muita gente pobre, mas nada se compara há uns bons anos. Desde 1992, a pobreza desceu de 56% para 31%. O fundador do Grameen contribuiu e muito para encolher as estatísticas. E, tão importante como isso, é a lição que Muhammad Yunus ensina aos alunos e ao mundo inteiro.

_ Os pobres não são mais nem menos do que os ricos ou os remediados. Quando se trata de governarem as suas próprias vidas são criativos e têm uma enorme energia para irem à luta. Emprestar dinheiro a quem não tem dinheiro é só o empurrão de que precisam para saírem de uma pobreza que que começou com os bisavôs, passou para os avós e continuou com os pais deles.

_ E agora, chegou o momento de quebrar esta corrente! – Gritou um dos seus alunos cheio de entusiasmo.

_ Espero que tenhas razão, rapaz, não só por eles, mas por todos nós. Ao sair da pobreza, os habitantes de Jobra ou de qualquer outra aldeia estão também a contribuir para aumentar a riqueza do país.

Só mais uma história para aquecer o c❤ração 

Muhammad Yunus
Nasir Khan via Wikimedia Commons

Hajeera passou de criança enjeitada a mulher de negócios. Um pequeno empréstimo bastou para conseguir alimentar a família e pôr as filhas a estudar.

Ao longo dos anos, Muhammad Yunus conheceu muitos casos que lhe aquecem o coração até hoje. Alguns testemunhos estão descritos na biografia dele, «O Banqueiro dos pobres», como a história de Hajeera Begum nascida em 1959 numa aldeia perto de Dhaka, capital do Bangladesh. O pai é um lavrador que mal consegue sustentar as seis filhas. Por isso, nem pensa duas vezes quando um homem mais velho e cego se oferece para casar com ela.

É o único pretendente que não exige um dote para ficar com Hajeera. O dote é uma pequena fortuna em dinheiro, em joias ou em propriedades que um pai tem de dar aos futuros maridos das suas filhas. O costume foi caindo em desuso nas últimas décadas, mas ainda hoje é praticado entre muitas famílias, não só na Ásia Meridional como na África Subsaariana.

Quando a família é muito pobre, as filhas acabam por ser grandes encargos financeiros porque a noiva precisa de um dote para se casar. O valor aumenta à medida que a rapariga cresce e o casamento é, como tal, a solução mais fácil para muitos pais que assim transferem a responsabilidade para os genros.

Com o marido cego, o único rendimento que entra lá em casa são os pagamentos que Hajeera recebe das limpezas que faz nas casas de outras famílias. Ainda assim insuficiente para conseguir alimentar como deve ser as três filhas do casal.

Certo dia, Hajeera ouviu falar que um tal Banco Grameen empresta pequenas quantidades de dinheiro com juros muito baixos e sem necessidade de apresentar qualquer garantia.

_ O que achas de falar com eles? – Pergunta ao marido –. Podíamos talvez comprar um terreno para cultivar.

_ Nem te atrevas, ouviste? – Grita ele, levantando-se da cadeira e agitando a bengala como se quisesse espantar a ideia estapafúrdia da mulher.

_ Qual é o mal? – Pergunta Hajeera.

_ Já ouvi falar dessa coisa maldita, nada mais é do que uma conspiração dos cristãos para acabar com o islão.

Sabe-se lá porque é que é que o banco tem essa fama, boa parte dessas histórias são invenções maldosas dos agiotas que viram o seu negócio arruinado pelo Grameen. Eram só boatos, mas o certo é que muitos muçulmanos olham com desconfiança para a instituição fundada por Muhammad Yunus.

Sem contar nada ao marido, Hajeera entrou um dia numa agência do banco onde a convidaram a assistir a uma sessão de esclarecimento. Os funcionários encaminharam-na para uma sala e explicaram passo a passo os princípios pelos quais a instituição se rege. Entre as muitas regras que os credores têm de respeitar, há algumas fundamentais, tais como:

✅ Para obter um empréstimo, o candidato tem de se juntar a um grupo de pessoas, que fica “moralmente” responsável pelo seu pagamento.

✅ O acordo não precisa de cartórios, advogados ou bancários, é unicamente baseado na confiança e na crença de que o crédito é um direito de qualquer pessoa, pobre, rica ou remediada.

✅ Todos os empréstimos devem ser pagos em pequenas prestações, semanais ou quinzenais.

✅ Pode ser concedido, simultaneamente, mais de um empréstimo, ao mesmo indivíduo, que, no entanto, terá primeiro de provar que tem um plano de poupança.

Após a sessão, Hajeera teria de ser entrevistada por um grupo de funcionários para mostrar que percebera bem quais seriam as condições do empréstimo. Ela está tão nervosa que mal abre a boca.

Um dos funcionários vai buscar um copo de água e senta-se ao pé dela.

_ Tenha calma senhora Begum, respire fundo e vai ver que corre tudo bem.

_ Peço mil perdões, mas não estou habituada a estes ambientes –, explicou ela. – Desde criança que me dizem que não sirvo para nada. Os meus pais passaram a vida a dizer que eu só trouxe a miséria para a nossa casa. Quantas vezes ouvi a minha mãe dizer que eu nunca devia ter nascido porque não valho nem um cêntimo do dote que teriam de pagar para arranjar um marido.

_ Isso não é verdade! – Interrompe o funcionário.

_ Talvez seja… Não sei… Não sei se alguma vez serei capaz de pagar esse empréstimo.

_ Nós aqui acreditamos que sim. E temos tanta certeza disso que vamos repetir a entrevista e depois começaremos a discutir os pormenores do acordo. Combinado?

Hajeera porta-se lindamente durante segunda entrevista e, poucas semanas mais tarde, recebe o seu primeiro empréstimo: 2000 thaka, que corresponderá a 23 euros. Está tão feliz que as lágrimas lhe caem pela cara sem parar.

É um dia de festa, mas de grande ansiedade também. Hajeera segue o conselho dos seus orientadores e compra um bezerro para engorda e ainda algumas sacas de arroz para secar, descascar e vender.

Quando o marido se depara com o animal no quintal, fica tão entusiasmado que nem se lembra mais das alarvidades que disse sobre a instituição de Muhammad Yunus. Hajeera consegue no prazo de três meses pagar o seu primeiro empréstimo e fazer um segundo, que usa para arrendar um pedaço de terra com 70 bananeiras e comprar mais um bezerro.

Ela é agora proprietária de um terreno onde cultiva arroz e bananas. As traseiras da casa estão cheias de cabras, patos e galinhas. Os funcionários do banco estão tão orgulhosos dela que, de vez em quando, convidam-na para falar em sessões que a instituição promove pelas aldeias e vilas nas redondezas de Dhaka.

Apesar da timidez, Hajeera sobe ao palco e conta a história dela, terminado mais ou menos da mesma maneira.

_ Nós lá em casa já conseguimos fazer três refeições por dia e, uma vez por semana, até comemos carne. Se vocês perguntarem o que penso do banco Grameen, digo-vos que, para mim, foi mais do que uma mãe, pois deu-me uma nova vida. Espero que a pobreza acabe aqui e para isso conto enviar as minhas filhas para a escola. Quero que estudem e cheguem à universidade. O futuro delas vai ser muito melhor, eu sei.

🟡🟣🔴Nota final: Muhammad Yunus provou que o microcrédito resulta não só no Bangladesh, mas no mundo inteiro. Há centenas e centenas instituições que seguem o exemplo do Banco Grameen em quase 100 países. Em Portugal, por exemplo, Associação Nacional de Direito ao Crédito foi criado em 2002 e já ajudou alguns milhares de pessoas.

AS três inspirações de Muhamad Yunus

A mãe Sofia

Desde pequeno que Yunus sabia o que era a pobreza. Não é que lá em casa faltasse alguma coisa, mas em Bathua, aldeia onde nasceu, a maioria das crianças tinha de trabalhar para ajudar a família. Ele é o terceiro de 14 filhos de Dula Mia e Sofia Khatun (cinco acabaram por morrer ainda na infância). O pai era ourives e sempre fez das tripas coração para os filhos estudarem. Foi uma grande inspiração para ele, mas a mãe é que acabou por ser a maior influência da vida dele. Sofia procurava sempre ajudar os vizinhos pobres, recebendo-os em casa e, muitas vezes, dando-lhes roupas e refeições. «Graças a ela, sempre soube que nasci com a missão de ajudar os mais desfavorecidos, embora ainda não soubesse como», contou Yunus na sua biografia.

Os escuteiros

Muhammad Yunus adorava as longas caminhadas de mochila às costas, gostava também dos jogos, de promover debates ou angariar dinheiro para as atividades do seu grupo de escuteiros. Foi com os eles que, durante os anos do secundário, partiu à descoberta do mundo, viajando pelo Canadá, Japão e Filipinas. Em 1953, atravessou a Índia de comboio para participar no I Jamboree Nacional do Paquistão. As viagens eram quase sempre acompanhadas pelo director da escola, figura que também teve uma grande impacto na sua juventude. «Sempre fui um líder nato, mas Quazi Sahib é que me ensinou a sonhar alto e a saber canalizar as energias das minhas paixões nos projetos certos

Luta pelos direitos civis

Enquanto viveu nos Estados Unidos, entre 1965 e 1972, Muhammad Yunus viu de perto a luta dos negros pelos direitos civis. Em vários estados, sobretudo os sulistas que até 1863 permitiam a escravidão, a população afro-americana era tratada como inferior. Mississippi, Alabama, Tennessee ou Georgia impunham por exemplo leis para separar os brancos dos negros em lugares públicos, proibiam casamentos entre as diferentes raças ou negavam o acesso aos direitos mais básicos como saúde e educação. Durante os anos 1960 e 1970, Yunus sentiu-se inspirado pelos movimentos dos direitos civis e juntou-se a eles. Ao regressar ao Bangladesh ficou muito perturbado com as injustiças sociais à sua volta. Em 1974, o país atravessava uma das maiores secas, causando uma onda de fome sobretudo nas vilas e aldeias rurais. Yunus não poderia fazer de conta que a pobreza não existia e, por isso, usou os seus conhecimentos em economia para melhorar a vida dos mais desfavorecidos.

Sites consultadosGrameen bank |Yunus Centre |

Já que chegaste a estas bandas, dá também um salto ao Paquistão para conhecer mais uma incrível história: Deixem passar a ambulância do barbudo 

Quanto pesa o pó das nossas casas?

Pó

O pó entra em casa sem pedir licença nem fazer barulho. Acomoda-se atrás das portas, debaixo da cama, nos livros e revistas ou por cima do frigorífico. Quase não damos pela presença dele até que, sem saber como, descobrimos que, uma a uma, as partículas se acumularam nos lugares mais secretos, formando pequenas nuvens ou tapetes de poeira. É nesse momento que não dá mais para adiar a decisão: está na hora de pegar no aspirador ou no pano de flanela e espantar a sujidade para fora de casa. Mas não por muito tempo. O pó, esse intruso silencioso, regressa sempre ao local do crime.

 

Ao fim de um ano a limpar, quanto pó sacudimos das nossas casas? As contas dependem naturalmente do tamanho dos apartamentos ou das moradias e também de outros fatores como animais de estimação, varandas, quintais ou localização geográfica das habitações. Em qualquer dos casos, nunca é coisa pouca. Uma casa com seis divisões, por exemplo, acumula em média cerca de 18 quilos por ano, segundo os cálculos feitos por investigadores americanos.

Limpar até à origem do pó

pó
Charles Keene, Wikimedia Commons

 De onde vem e de que é feito o pó? A pergunta intriga também os cientistas, que gastam muito tempo a pensar em poeira 

Mas de onde vem e de que é feito o pó que aparece em casa? A pergunta não intriga apenas quem anda a tentar livrar-se dele com paninhos, espanadores, aspiradores e produtos de limpeza. Há também cientistas que gastam muito do seu tempo a pensar em poeira.

Quanto mais investigam, mais descobertas espantosas fazem. A mais evidente é que o pó vem de todos os lados e é feito de partículas de muitas coisas insignificantes. Cerca de 60% da poeira vem de fora. Ao abrimos as portas e janelas, deixamos entrar as partículas suspensas no ar. Sempre que chegamos a casa, transportamos também connosco terra e sujidade agarradas aos sapatos e às roupas. As restantes 40% das poeiras são fibras que se soltam dos peluches, lençóis, toalhas, roupas, tapetes e tecidos, além de cabelos, pele morta, pelos de animais de estimação, migalhas de comida ou restos de cadáveres de insetos.

Decompor cada partícula para saber o que contém o pó pode ser uma canseira. Andrea Ferro, investigadora da Universidade de Clarkson, em Nova Iorque, deu-se a esse trabalho e descobriu que há poeiras de todos os tamanhos e composições. Desde partículas simples, com um único composto orgânico ou inorgânico. Até às mais complexas com um núcleo inorgânico (minerais, carbono ou metais) e um revestimento orgânico (insetos, pólen ou escamas de pele, por exemplo).

Os químicos camuflados no pó

pó

 

 Produtos domésticos, materiais de construção, eletrodomésticos ou mobília também libertam partículas 

 Pode ser muito complicado desvendar a composição da poeira, mas uma coisa é certa, se a casa não for aspirada com alguma regularidade, há partículas que demoram uma eternidade a desaparecer. Ao analisar a sujidade doméstica, Andrea encontrou por exemplo DDT em muitas amostras de pó recolhidas do chão. Trata-se de um pesticida usado depois da Segunda Guerra Mundial para combater os mosquitos, mas, por ser prejudicial à saúde, acabou proibido na década de 1970. Apesar disso, ainda hoje, está presente nas casas americanas.

Este não foi o único químico encontrado. Dos escapes dos carros, da queima de combustíveis ou de outros processos industriais desprendem-se também partículas de arsénio ou de chumbo que viajam com o vento até às nossas casas e que é preciso eliminar com uma boa aspiradela.

Dentro de casa há também uma grande variedade de partículas que se libertam de produtos de higiene, de limpeza, de móveis, de pisos envernizados ou de tintas de parede. Investigadores de cinco instituições americanas encontraram em casas de 14 estados dos EUA 45 químicos provenientes de produtos domésticos, materiais de construção, eletrodomésticos ou mobília. A maior parte dessas substâncias pode ser eliminada com boas práticas como lavar as mãos e aspirar a casa.

Vida selvagem dentro de casa

pó

 Cadáveres de mosquitos, aranhas e formigas desfazem-se em pó e acumulam-se nos cantos da casa 

E há também gigantescas colónias de minúsculas criaturas a morar no pó, mais propriamente nove mil espécies de micróbios, entre os quais dois mil fungos e cinco mil bactérias dos mais variados tipos, segundo as contas de um outro estudo americano. Não é motivo para ficarmos paranoicos e desatarmos a esfregar tudo e a toda a hora. A maioria destes organismos é inofensiva e alguns deles poderão até ser bons para a nossa saúde. A quantidade e a variedade das bactérias, por exemplo, vão mudando consoante a existência de gatos, cães e outros animais. Os fungos, por outro lado, variam de região para região, estando sobretudo dependente das características climatéricas.

Já que o assunto são agora seres microscópicos, não há como escapar aos milhões de ácaros, que se multiplicam em ambientes húmidos, ou nos insetos, que depois de mortos, ficam desfeitos em partículas minúsculas. Segundo as estimativas das universidades da Carolina do Norte e do Colorado Boulder, o pó pode esconder cadáveres de mais de 600 tipos de artrópodes (aranhas, mosquitos, formigas, besouros, entre outros).

O pó aprisionado na eletricidade

pó

 Aprisionado nos eletrodomésticos, sofás, carpetes, peluches ou fios elétricos, o pó já não consegue libertar-se 

Quem diria que as nossas casas seriam verdadeiros viveiros ou jardins zoológicos a pulsar de vida selvagem? Resta saber porque gosta tanto o pó de viver connosco, quando tem mais espaço e liberdade lá fora. A verdade é que em muitos casos não se trata de uma opção.

Com tanta tralha dentro de casa, a poeira tem tendência para se acumular nos lugares mais secos onde as cargas elétricas positivas e negativas estão em repouso (eletricidade estática). Ou seja, a poeira é atraída pelos eletrodomésticos, televisores, computadores, cabos e fios elétricos, sofás, carpetes e outros têxteis. Uma vez aprisionado, já não consegue se libertar a não ser que apareça uma alminha caridosa disposta a limpar todos os cantos da casa.

Há muitas maneiras de travar batalhas contra o pó, mas nenhuma delas é suficiente para vencer a guerra de uma vez por todas. O pó vai dando umas tréguas, aqui e acolá, mas volta sempre para mostrar que é um casmurro da pior espécie.

Também nós, munidos de panos de flanela, de vassouras ou de um bom aspirador, somos tão casmurros como o pó. 😁

🕷 Por falar em criaturas minúsculas, já leste o artigo «Quantos insetos existem no planeta?». Vais ficar arrepiado/a 😉

Quanto tempo é preciso para nascer?

gestação

Humanos: 9 meses (273 dias). Cangurus: 16 meses (487 dias). Elefantes africanos: 21 meses (650 dias). Pinguins: 35 dias. O tempo de gestação não é igual para todos, tal como não é igual o tempo que cada espécie precisa para crescer, aprender e tornar-se autónomo.

Um rapaz com 7 anos ainda é uma criança, mas um cão de porte médio com essa idade é um jovem adulto pronto a constituir família. E o rinoceronte, aos cinco anos, passa a viver a sua própria vida. Com essa idade, as galinhas ganham rugas e entram na velhice, enquanto que as tartarugas marinhas se tornam adolescentes.

Nascer também não é igual nem no peso nem no tamanho. Um humano recém-nascido tem mais ou menos três quilos e 50 centímetros de altura, um caganito ao lado de uma bebé girafa com um metro e meio de altura ou de um filhote de baleia-azul com 1300 kg, seis metros de cumprimento e um apetite voraz capaz de mamar 380 litros de leite por dia.

O tempo de gestação, por regra, é proporcional ao tamanho das espécies tirando uma ou outra exceção, como a salamandra alpina, que demora quase três anos para incubar os seus ovos, ou uma opossum-da-virgínia (gambá-da-virgínia), que leva oito dias para ser mãe de 12 a 18 crias do tamanho de um inseto.

Explicando um pouco melhor, a duração de uma gravidez entre a maioria dos mamíferos não tem unicamente a ver com o tempo que um feto precisa para desenvolver o coração, o cérebro, os pulmões, o nariz ou os ouvidos. Também está relacionado com o tamanho do corpo da mãe e com a capacidade de ela conseguir alimentar o filho sem colocar em risco a saúde de ambos.

É por isso que, segundo os investigadores da Universidade de Rhode Island, nos Estados Unidos, uma gravidez humana tem nove meses de gestação. Essa é a quantidade máxima de tempo e de energia que as mães aguentam. Caso contrário, os bebés eram capazes de ficar ainda mais uns bons tempos nas barriguinhas das mamãs.

O principal motivo para os fetos quererem adiar o nascimento é que, aos nove meses, ainda estão totalmente dependentes dos pais. Na hora do parto, o cérebro de um recém-nascido tem apenas 30% do tamanho que atinge na idade adulta. Um filhote de chipanzé, por exemplo, já nasce com 40% do cérebro desenvolvido, o que poderá explicar por que os humanos demoram mais tempo que os primatas a conquistar a sua autonomia.

Se pudessem esperar que o desenvolvimento do cérebro atingisse o tamanho suficiente para conseguirem se desenvolver mais depressa após o nascimento, o período de gestação prolongar-se-ia entre 18 e 21 meses. Mas, segundo os especialistas, é demasiado tempo para as mamãs que, ao nono mês, entram na zona de perigo metabólica, ou seja, já não lhes sobra mais energia nem para elas nem para o feto continuar a se desenvolver.

E agora que já sabes porque nascemos ao fim de nove meses, espreita os períodos de gestação e incubação no reino animal.

Gestação

gestação

🐿

❤ Esquilo vermelho – 36-39 dias

Clica aqui e descobre mais
» Crias por gestação: 2-8
» Esperança média de vida: 10-14 anos
» Risco de extinção: elevado
» Habitat: florestas e bosques da Euroásia (Arménia, Azerbaijão, Cazaquistão, Chipre, Geórgia, Rússia e Turquia)

🐱

 Gata – 60-65 dias

Clica aqui e descobre mais
» Crias por gestação: 3-4
» Esperança média de vida: 16-20 anos
» Risco de extinção: nenhum
» Habitat: os EUA são o país com maior número de gatos – 74,5 milhões.

🐶

Cadela – 52 dias 

Clica aqui e descobre mais
» Crias por gestação: 3-6
» Esperança média de vida: 10-14 anos
» Risco de extinção: nenhum
» Habitat: Os EUA também detêm o recorde do maior número de cães (75,8 milhões).

Veado Vermelho – 236 dias dias

Clica aqui e descobre mais
» Crias por gestação: 1-2
» Esperança média de vida: 10-20 anos
» Risco de extinção: moderado
» Habitat: Europa Ocidental, Norte da África e Ásia Menor

🐄

❤ Vaca – 284 dias

Clica aqui e descobre mais
» Crias por gestação: 1
» Esperança média de vida: 22 anos
» Risco de extinção: nenhum
» Habitat: Brasil, Argentina, Irlanda ou Chade são alguns países onde há mais vacas do que habitantes.

🦦

❤ Lontra-europeia – 60 dias

Clica aqui e descobre mais
» Crias por gestação: 1-5
» Esperança média de vida: 6 a 8 anos
» Risco de extinção: elevado
» Habitat: da costa ocidental da Irlanda e de Portugal até ao Japão, das zonas árticas da Finlândia até à Indonésia e às zonas subsaarianas da África do Norte.

👉 Clica aqui para veres uma imagem do Diabo da Tasmânia

❤ Diabo da Tasmânia – 21 dias

Clica aqui e descobre mais
» Crias por gestação: 3-4
» Esperança média de vida: 7 a 9 anos
» Risco de extinção: elevado
» Habitat: Austrália, na ilha da Tasmânia e em algumas ilhas próximas, como Robbins, Bruny e Badger.

gestação

Lince Ibérico – 63 a 74 dias

Clica aqui e descobre mais
» Crias por gestação: 1-4
» Esperança média de vida: 13 anos
» Risco de extinção: elevado
» Habitat: Península ibérica.

🐻

❤ Urso pardo – 180 a 266 dias

Clica aqui e descobre mais
» Crias por gestação: 2
» Esperança média de vida: 25-30 anos
» Risco de extinção: elevado
» Habitat: Florestas no norte dos EUA e Canadá, Europa e Ásia.

👉 Clica aqui para veres uma imagem do tigre banco

❤ Tigre Branco (Bengala) – 95 a 112 dias

Clica aqui e descobre mais
» Crias por gestação: 2-4
» Esperança média de vida: 26 anos se não estiver em cativeiro.
» Risco de extinção: elevado
» Habitat: Regiões da Índia, Nepal, Butão.

🐺

❤ Lobo – 60 a 63 dias

Clica aqui e descobre mais
» Crias por gestação: 5-6
» Esperança média de vida: 20 anos
» Risco de extinção: elevado
» Habitat: nas suas variadas espécies, os lobos sobreviveram à Era do Gelo e adaptaram-se a todos tipos de habitats – florestas, desertos ou áreas urbanas.

🐨

❤ Coala – 35 dias

Clica aqui e descobre mais
» Crias por gestação: 1-2
» Esperança média de vida: 17 anos
» Risco de extinção: elevado
» Habitat: florestas de eucaliptos da Austrália.

🐃

❤ Bisonte americano – 213 a 365 dias

Clica aqui e descobre mais
» Crias por gestação: 2
» Esperança média de vida: 20 a 25 anos
» Risco de extinção: nenhum
» Habitat: planícies do Norte da América.

🐵

❤ Macaca Mandril – 175 dias

Clica aqui e descobre mais
» Crias por gestação: 1
» Esperança média de vida: 20 anos em liberdade
» Risco de extinção: elevado
» Habitat: florestas tropicais do sul dos Camarões, Gabão, Guiné Equatorial e República do Congo.

🐴

❤ Égua – 329-345 dias

Clica aqui e descobre mais
» Crias por gestação: 1
» Esperança média de vida: 20-25 anos
» Risco de extinção: nenhum
» Habitat: Disseminada por todo o planeta.

🐳

❤ Baleia azul – 365 dias

Clica aqui e descobre mais
» Crias por gestação: 1
» Esperança média de vida: 80 a 110 anos
» Risco de extinção: elevado
» Habitat: oceanos Pacífico, Antártico, Índico e Atlântico.

🐘

❤ Elefante africano – 645 e 650 (10 meses – 1 ano)

Clica aqui e descobre mais
» Crias por gestação: 1
» Esperança média de vida: 30-40 anos
» Risco de extinção: elevado
» Habitat: África ao sul do Saara.

🦘

❤ Canguru Vermelho – 487 dias (16 meses)

Clica aqui e descobre mais
» Crias por gestação: 1
» Esperança média de vida: 22 anos
» Risco de extinção: elevado
» Habitat: Austrália continental.

🦨

❤ Gambá da Virgínia – 8 -13 dias (o mais curto de todos os mamíferos).

Clica aqui e descobre mais
» Crias por gestação: até 18 (cada uma do tamanho de uma abelha)
» Esperança média de vida: 4 anos
» Risco de extinção: baixo
» Habitat: desde o Sudeste do Canadá até à Argentina.

🦏

❤ Rinoceronte – 450 a 480 dias (15-16 meses), dependendo da espécie (branco, preto ou indiano)

Clica aqui e descobre mais
» Crias por gestação: 2
» Esperança média de vida: 35-50 anos, dependendo da espécie.
» Risco de extinção: elevado
» Habitat: o rinoceronte-de-sumatra, o rinoceronte-de-java e o grande rinoceronte indiano vivem na Ásia. O rinoceronte-negro e o branco são africanos.

🦒

❤ Girafa – 420 – 460 dias

Clica aqui e descobre mais
» Crias por gestação: 1 (com um metro e meio de altura).
» Esperança média de vida: 20-25 anos
» Risco de extinção: elevado (entrou na lista dos animais vulneráveis em 2016).
» Habitat: savanas africanas.

🐬

❤ Golfinho – 300 a 547 dias (10-18 meses).

A orca tem um período gestacional, entre os 15 e 18 meses, nos casos do golfinho-riscado e do tursiops aduncos são 12 meses.

Clica aqui e descobre mais
» Crias por gestação: 1
» Esperança média de vida: 20-35 anos
» Risco de extinção: elevado
» Habitat: podem ser encontrados em todos os oceanos, além de rios ou estuários.

❤ Mula – Não se reproduz 

Ela é filha de uma égua e de um burro e essa combinação faz com que as fêmeas nasçam sem óvulos.

Clica aqui e descobre mais
» Crias por gestação: 1
» Esperança média de vida: 30 anos
» Risco de extinção: elevado
» Habitat: todos os continentes e regiões.

Incubação

gestação

🐧

❤ Pinguim imperador- 35-42 dias

Clica aqui e descobre mais
» Crias por ninhada: 1
» Esperança média de vida: 20 anos
» Risco de extinção: elevado

🦆

❤ Pato real – 27-28 dias

Clica aqui e descobre mais
» Crias por ninhada: 8-13
» Esperança média de vida: 5-10 anos
» Risco de extinção: baixo

🕊

❤ Pomba – 17-19 dias

Clica aqui e descobre mais
» Crias por ninhada: 2-3 ovos em 2 a 3 incubações por ano.
» Esperança média de vida: 15-30 anos na natureza e 3-5 anos na cidade.
» Risco de extinção: nenhum

gestação

❤ Tartruga-marinha –  45-60 dias

Clica aqui e descobre mais
» Crias por ninhada: 45-60 ovos, dependendo da espécie, mas a taxa de sobrevivência das crias é de 1-2 para por cada mil ovos.
» Esperança média de vida: 40-80 anos, dependendo da espécie.
» Risco de extinção: elevado

👉 Clica aqui para veres uma imagem da avestruz

❤ Avestruz  – 35-45 dias

Clica aqui e descobre mais
» Crias por ninhada: 10-12 ovos por ano, incubados num ninho comunitário (os ovos são chocados pelas fémeas de dia e pelos machos à noite).
» Esperança média de vida: 50-70 anos
» Risco de extinção: baixo

🐊

❤ Jacaré de papo-amarelo – 70-90 dias

Clica aqui e descobre mais
» Crias por ninhada: 25 
» Esperança média de vida:  50 anos
» Risco de extinção: elevado

gestação

❤ Iguana verde – 70-105 dias (10 a 15 semanas)

Clica aqui e descobre mais
» Crias por ninhada: 3
» Esperança média de vida:  15 anos
» Risco de extinção: elevado

🦅

❤ Águia Real – 43 a 45 dias

Clica aqui e descobre mais
» Crias por ninhada: 2 
» Esperança média de vida:  32 anos
» Risco de extinção: elevado

 gestação

❤ Tucano – 18 dias

Clica aqui e descobre mais
» Crias por ninhada: 2 a 4 ovos
» Esperança média de vida: 15 anos
» Risco de extinção: elevado

👉 Clica aqui para veres uma imagem da salamadra alpina (ou preta).

❤ Salamadra Alpina – 1095 dias (3 anos)

Clica aqui e descobre mais
» Crias por ninhada: possuem um sistema de ovidutos, em que cada um produz dezenas de ovos, mas apenas dois sobrevivem
» Esperança média de vida: 15-20 anos
» Risco de extinção: nenhum

🐓🐣

❤ Galinha – 22 dias

Clica aqui e descobre mais
» Crias por ninhada: 150 durante o período de vida (só dos ovos fecundados pelos galos é que nascem os pintainhos).
» Esperança média de vida: 4-7 anos
» Risco de extinção: nenhum

👉Lê também: Por que têm riscas as zebras?

Fontes consultadas: Live Science | ScienceDaily | União Internacional para a Conservação da Natureza |

 

Louis braille acendeu uma luz na escuridão

Louis Braille

Aos três anos, Louis Braille teve um acidente que o deixou cego da vista direita. Aos cinco, a infeção alastrou-se para o olho esquerdo e deixou-o perdido na escuridão. Aos 15 inventou um método para ler e escrever tão simples que até hoje é usado em todo o mundo.

Louis Braille sabe que não tem permissão para brincar na oficina, muito menos mexer nas ferramentas que o pai usa para fazer as selas e os arreios dos cavalos. Mas quando nos dizem que algo é proibido, mais vontade temos de fazer o contrário, verdade?

Ao ver-se sozinho, Louis pega numa sovela pontiaguda. Tenta furar a muito custo uma faixa grossa de couro, mas o instrumento escapa-lhe da mão e atinge o olho direito. As dores são insuportáveis e só as compressas de água fria ajudam a aliviar o sofrimento.

_ Porque é que as crianças nunca ouvem os mais velhos? – Pergunta Catherine enquanto enxuga as lágrimas do irmão mais novo. O mal está feito e a vista direita de Louis está irremediavelmente perdida.

As coisas pioram muito mais nos anos seguintes. A infeção alastra-se para olho esquerdo e, aos cinco anos, Louis Braille mergulha na mais profunda escuridão.

O que vai ser deste rapaz? – Pergunta o pai a si próprio ao vê-lo a tatear as paredes e os móveis. Nos primeiros anos do século XIX, não havia grande futuro para os cegos. Ou aprendiam ofícios simples como cestaria e tecelagem ou acabavam nas ruas a mendigar. É por isso que a escola é tão importante.

Só que as aulas são aborrecidas para Louis Braille. Ele é mais rápido a fazer contas de cabeça do que os colegas a contar pelos dedos. Mas o mesmo não acontece com a leitura e a escrita. Os professores não fazem a mínima ideia como ensinar as crianças cegas a ler e ele nem sequer sabe como é que se desenham as letras.

Ao ver o filho desanimado, o pai agarra numa tábua de madeira e crava várias tachas douradas até desenhar um A maiúsculo.

_ Isto é um A?

Louis Braille fica maravilhado ao sentir com o dedo a forma da letra e não tarda a pedir ao pai para martelar o resto do alfabeto na tábua. A experiência fá-lo ficar com mais vontade de aprender. O rapaz é tão esperto que até memoriza as lições e várias passagens de livros que os irmãos leem todas as noites para ele.

Uma oportunidade única

Louis Braille

Louis Braille consegue uma bolsa para estudar na única escola para cegos, em França.

A inteligência de Louis Braille dá nas vistas entre os professores da escola e não só. A marquesa de Orvilliers, senhora nobre e riquíssima da cidade, aconselha o pai a inscrever o filho na Escola Real dos Jovens Cegos, em Paris. É o único instituto para crianças cegas e, com tão poucas vagas, só alguns poderiam frequentá-lo.

_ Senhor Simon-René consegui uma vaga. É uma oportunidade única.

_ Mas eu não tenho posses para o meu filho estudar numa escola em Paris – diz o pai.

_ Não terá de se preocupar com isso, o instituto oferece uma bolsa de estudo aos alunos mais promissores.

O pai de Louis fica apreensivo. O filho não está preparado para viver longe da família nem tão pouco numa grande cidade como Paris. Louis Braille, porém, está empolgado.

– Madame, é verdade que eles têm livros para cegos?

_ Sim, é verdade – responde a marquesa comovida com o entusiasmo do miúdo.

_ Papá, por favor, deixa-me ir.

Como resistir? Pai e filho partem para Paris, mas, ao chegar à escola, Simon-René fica desapontado com o que vê. O edifício, junto ao rio Sena, é um casarão a cair aos bocados. O dormitório não tem janelas, as salas são escuras, as paredes húmidas e sombrias.

Louis Braille, naturalmente, não se apercebe das condições da escola, mas para ele, isso nem é o mais importante. Está mais interessado nos famosos livros que a escola usa para ensinar as crianças cegas a ler e a escrever. O diretor, contudo, refreia-lhe o entusiasmo.

_ Os livros são o bem mais precioso que temos e os alunos têm de trabalhar muito para mostrar que são merecedores de tal privilégio.

Louis acha a conversa estapafúrdia, mas só ao fim da primeira semana percebe que o diretor está mais interessado em fazer dinheiro do que na educação das crianças. Os alunos são obrigados a fazer chinelos para vender na cidade e castigados por coisas insignificantes.

Uma noite, quando todos dormem, ele entra às escondidas na biblioteca, tateando os móveis, as cadeiras, as estantes e os armários. Está tudo vazio, a não ser uma mesa com três grandes calhamaços dispostos um ao lado do outro.

Nesse mesmo momento, o diretor, acompanhado pelo senhor Pingnet, o seu adjunto, surpreendem o rapaz.

_ Quem autorizou a tua entrada aqui? – Grita Dufau.

_ Queria saber por que nunca me mostraram os livros e já percebi porquê. Só há três livros para cegos, não é verdade?

_ É verdade – admite Pingnier

O adolescente fica desatinado.

_ O senhor mentiu-me. Não há nenhuma biblioteca gigante!

_ Aqui não há tempo para livros! – Responde o diretor – Volta para o dormitório! Amanhã continuarás a fazer os chinelos, tal como os outros rapazes.

_ Eu não estou aqui para fazer chinelos, mas para aprender a ler e a escrever!

_ Basta de insolências e vai dormir se não quiseres passar o resto da semana trancado a pão e água.

Louis Braille sente-se encurralado. Não pode sequer escolher outra escola porque não há mais nenhuma para crianças cegas.

Dufau é um tirano do piorio, mas Pingnier não é como ele, embora se sinta impotente. Fazer livros para cegos é uma tarefa quase impossível. A única maneira, pouco eficaz, consiste em imprimir páginas inteiras com letras gigantes em relevo.

Um livro com 100 páginas, por exemplo, deverá ter 500 ou mais páginas e a pesar 10 ou 20 quilos para os cegos conseguirem ler. Quem estaria disposto a gastar tanto dinheiro para imprimi-los?

_ Estás a ver o problema não estás? – Perguntou Pingnet a Louis – o ideal é encontrar um sistema menos dispendioso e mais útil para os estudantes cegos.

Uma luzinha no horizonte

Louis Braille

O método usado por militares surge como uma esperança para as crianças cegas.

Nenhuma tentativa para alfabetizar cegos resultou até à data, mas os alunos andam entusiasmados com as notícias que Pingnet trouxe da cidade. Parece que há um novo método revolucionário usado entre os militares que pode mudar tudo.

Charles Barbier de La Serre foi à escola apresentar a sua invenção. O capitão de Artilharia do Exército de Luís XIII engendrou um código rudimentar de leitura a que chamou de escrita noturna, uma série de pontos e traços em relevo que pode ser lido com a ponta dos dedos.

_ Estava a ter muita dificuldade em enviar mensagens às minhas tropas durante a noite. As mensagens eram simples como por exemplo, avançar, retirar, aguardar, esse género de instruções necessárias num campo de batalha e que não podem atrair a atenção do inimigo. Foi então que tive a ideia de fazer sinais que pudessem ser lidos no escuro com simples toques dos dedos. Não foi algo que tenha inventado para as pessoas cegas, mas agora que estou aqui acho que é uma ótima ferramenta para aprender a ler e a escrever.

Os estudantes ficam calados, é difícil perceber a utilidade do invento sem uma demonstração prática.

_ Queira desculpar, capitão Barbier – interrompe Pingnier – posso sugerir que um dos nossos alunos teste a sua invenção durante alguns dias e depois dê a sua opinião antes de tomarmos uma decisão?

_ Porquê? Os alunos dizem ao diretor o que fazer e pensar? – Pergunta o capitão, desafiando Dufau, mas antes que ele respondesse, Pignier retoma a palavra.

_ Acreditamos que as pessoas cegas sabem avaliar melhor do que nós o que lhes é mais útil. Proponho que esse aluno seja Louis Braille. Ele é muito inteligente e estou certo de que daria conta do recado.

Barbier fica furioso. Como se atrevem a pedir a um fedelho de 13 anos para avaliar o meu sistema? – Pensou ele. A decisão, no entanto, está tomada e Louis Braille passa os dias seguintes a testar o modelo, reportando as suas conclusões ao capitão na semana seguinte.

_ O seu método de usar pontos e traços em relevo é exatamente o que precisamos capitão. Mas há muitos problemas que precisam ser resolvidos.

_ Muitos? – Pergunta Barbier abespinhado.

_ Não me leve a mal, capitão, acho que a sua invenção é um grande avanço, mas oito ou 10 pontos para representar uma letra é muito para memorizar e para tatear com apenas um dedo.

_ E o que propões?

_ Acho que precisa de algumas alterações, como por exemplo, pontuação, números ou um sistema que permita aprender a soletrar, coisas que não existem no seu sistema porque os pontos e traços apenas representam sons.

_ E por que raio um cego quereria aprender a soletrar? Não é suficiente aprender as regras básicas para ler e a escrever?

_ Nós precisamos de saber soletrar para escrever corretamente, tal como qualquer outra pessoa que vê, capitão!

Barbier levanta-se furioso e aproxima-se de Louis Braille com os olhos fumegantes de raiva.

_ Como as pessoas que veem?

_ Sim capitão. Uma criança cega terá de usar a gramática, como qualquer outra criança, e seu sistema não tem isso. O senhor não entende isso porque o senhor…

_ Porque vejo! Sim, eu sei! Por isso mesmo consigo ajudar. E se tu tivesses alguma gratidão agradecer-me-ias até ao fim dos teus dias.

Magnífico trabalho, Louis Braille!

O método que Louis desenvolve é imediatamente apreendido pelas crianças cegas, mas…

Barbier é mais caprichoso que uma criança birrenta, mas Louis Braille não desiste. Nos dois anos seguintes, dedica toda a energia a tentar encontrar um sistema mais eficaz. Quando está quase a terminar, volta à aldeia para visitar os pais, mas ninguém lhe põe a vista em cima de tão ocupado que está na oficina do pai a trabalhar no seu novo método.

Passa horas a furar folhas de papel com uma sovela, picotando combinações variadas de pontos, até reduzir no máximo a seis símbolos para cada letra, a quantidade certa para ser possível tatear com apenas um toque de dedo.

Louis Braille apresenta o resultado do trabalho ao pai, demonstrando como é a letra A no seu código.

_ Isto é um A? – Pergunta o pai maravilhado – e como é um B?

Louis mostra-lhe o alfabeto inteiro e ainda os números e a pontuação. O pai ajuda-o a construir uma prancha de madeira que prende as folhas e a régua usada para perfurar pontos.

Louis leva o trabalho para escola. Sem grandes trabalheiras, os colegas acham o modelo muito fácil. Pingnet, contudo, não perceber o alcance do método, mas o rapaz propõe um exercício.

_ Importa-se de pegar no jornal e ditar um pedaço de texto para eu transcrever?

Pignet agarra no jornal e começa a ler o primeiro texto que encontra.

_ Exilado, na ilha de Santa Helena, Napoleão encontra-se cada vez mais debilitado, recusando-se a ser assistido por médicos ingleses.

_ Pode ler mais depressa senhor Pingnet – interrompe Louis enquanto vai perfurando uma folha de papel.

_ Nos últimos meses, já nem se levanta do seu leito, dedicando os derradeiros esforços a redigir o seu testamento.

Louis termina a transcrição ao fim de alguns segundos. Pousa o alfinete, vira a folha ao contrário e começa a ler à medida que passa o dedo indicador sobre o picotado.

_ Exilado, na ilha de Santa Helena, Napoleão encontra-se cada vez mais debilitado, recusando-se a ser assistido por médicos ingleses. Nos últimos meses, já nem se levanta do seu leito, dedicando os derradeiros esforços a redigir o seu testamento.

Pingnet vai lendo o jornal, confirmando ao mesmo tempo que o rapaz consegue traduzir sem qualquer dificuldade o trecho que acabara de ler.

_ Tu conseguiste rapaz! Conseguiste!

_ Bem… A ideia original foi do capitão Barbier, eu só fiz alguns ajustes.

_ E que ajustes! Magnífico trabalho, não é senhor Dufau?

O diretor, não responde. Vira as costas e vai-se embora.

O sistema de Louis Braille é uma oportunidade única para os cegos, mas Dufau não quer saber disso. Proíbe o seu uso na escola e queima todas as transcrições que o rapaz fez de livros, castigando ainda qualquer aluno apanhado a usar o seu método para ler.

Se o sistema fosse adotado oficialmente, pensou ele, os professores iriam perder os seus empregos e os cegos seriam capazes de ensinar a eles próprios. Nunca iria permitir tal ousadia.

Mas Louis continua a transcrever às escondidas os livros de que mais gosta, entregando o trabalho a Pingnet para que ele possa mostrá-lo fora da escola. A manobra de bastidores entre os dois dá resultado e, ao fim de algumas semanas é, mais uma vez, a marquesa de Orvilliers a interessar-se pela proeza de Louis Braille.

_ Fui contactado por uma benfeitora do instituto que quer saber mais sobre o teu sistema, Louis. Caso ele se revele eficaz, está disposta a fazer uma boa doação ao instituto para adotarmos este modelo – diz Pingnet ao diretor.

Como o senhor Dufau só pensa em dinheiro, nem sequer hesita em atender ao pedido, muito embora imponha algumas condições. Desde logo, insiste em chamar também o capitão Barbier para mostrar o seu método. A ideia é que os dois compitam frente a frente para o conselho de administração do instituto decidir qual o mais indicado.

_ A nossa benfeitora parece estar certa que o teu sistema é o melhor, mas isso é algo que terá de ser demonstrado – pensa Dufau.

Um duelo pontilhado

Louis Braille

Braille e Barbier encontram-se de novo para cada um tentar provar que o seu método é o melhor.

A reunião acontece na semana seguinte e Louis Braille é o primeiro a apresentar o seu modelo. Entrega uma folha com um texto transcrito para o seu código a um aluno cego que, sem dificuldade, lê três ou quatro frases de uma assentada. O conselho fica boquiaberto e aplaude com entusiasmo.

_ Vamos lá acabar com esta farsa! – Interrompe o capitão Barbier – Claramente que este estudante teve de antemão acesso ao trecho para o memorizar e debitar agora como se estivesse a ler.

Louis levanta-se do seu lugar, respira fundo e desafia o capitão para um duelo entre os dois métodos.

_ Capitão Barbier, faça o favor de escolher qualquer aluno desta sala e qualquer trecho de qualquer livro para repetirmos a experiência seguindo as suas regras.

_ Pois é isso mesmo que vou fazer e demonstrar como este teu método não passa de uma intrujice!

Barbier escolhe dois alunos cegos que aguardam fora da sala enquanto ambos transcrevem uma passagem da Bíblia para o seu código.

Barbier usa uma quadrícula sobre uma folha cheia de buraquinhos que vai perfurando apressadamente, mas Louis Braille, com uma simples régua com traços e orifícios, consegue terminar a tarefa primeiro do que ele. O capitão acelera a transcrição, terminando uns minutinhos depois.

O primeiro aluno entra na sala, por coincidência, até é conhece muito bem o método de Barbier, pois não é a primeira vez que testa a metodologia. Ainda assim, não o suficiente para ler uma passagem cheia de palavras difíceis e frases longas. O rapazito atrapalha-se, não conseguindo sequer terminar as primeiras palavras.

_ Peço imensa desculpa, não consigo ler porque há demasiados pontos.

Barbier está furibundo, mas não tem outro remédio senão deixá-lo ir sem completar a leitura.

_ Louis Braille, faça o favor de avançar com a sua demonstração – ordena Dufau.

O segundo aluno entra na sala e começa, ainda hesitante, mas rapidamente apanha o ritmo e desengata o código sem dificuldade.

A marquesa aplaude de pé e todos os outros juntam-se a ela, exceto Barbier que agarra na sua invenção e sai da sala.

Tanto tempo perdido!

Louis Braille

Apesar de eficaz, o código de Louis Braille só é oficialmente reconhecido após a sua morte.

Poder-se-ia pensar que a partir de agora não haverá mais obstáculos a impedir o sistema de Louis Braille de entrar no ensino. Mas não. Muita gente resiste à mudança e o seu código acaba apenas a ser usado na Escola Real dos Jovens Cegos, em Paris, onde anos mais tarde Louis se torna professor.

Só muito tempo depois é que o sistema de Louis Braille teve um impacto enorme na vida dos cegos em todo o mundo. Ele nunca soube disso. Aos 26 anos ficou doente com tuberculose e morreu a 6 de janeiro de 1852, com 42 anos.

O reconhecimento oficial do seu trabalho chegou apenas um século depois da sua morte, quando os seus restos mortais foram transferidos o Panthéon de Paris. Por essa altura, o seu sistema já é amplamente conhecido em todo o mundo. Em 1854, dois anos após a sua morte, o código é oficialmente reconhecido como o melhor para ensinar crianças cegas a ler e a escrever. Pouco tempo depois, os livros em Louis Braille começam a ser impressos.

A internacionalização do Braille

Louis Braille

O código de Louis é hoje usado nos computadores, smartphones, relógios ou brinquedos.

A partir daí, o código é adotado no congresso de Paris, em 1878, como o modelo internacional para cegos. Um ano mais tarde, os alemães fazem o mesmo, acrescentando mais algumas letras ao alfabeto como o w e o trema colocado nas vogais ä, ö, ü (que representam, os fonemas: ae, oe, ue) e ainda o beta grego ß (que substitui em algumas palavras o “SS”).

O código ganha tanta visibilidade internacional que, nos finais do século XIX, surgem as primeiras máquinas de escrever para cegos e tipografias para livros em Braille.

Nos dias de hoje, a invenção de Louis pode até ser usada no computador, que imprime páginas e traduz do Braille e para o Braille. Mais espantoso, ainda, é o software que reconhece a voz e traduz para o Braille tudo o que se vê no monitor. Há muitas outras aplicações que usam o modelo de Louis como relógios, telemóveis ou brinquedos para montar e desmontar.

O Braille é hoje um sistema usado em dezenas de línguas, em inglês, em hindu, em árabe, em chinês ou em hebraico. É o código para qualquer cego ler e escrever em qualquer parte do mundo. E tudo graças a um rapaz que sempre acreditou que, não é por se ser cego, que se tem de viver na escuridão.

 3 perguntas a Louis Braille

👨🏿‍🦯Como funciona o teu código?

O Braille é um método de escrita e de leitura assente em 63 sinais em relevo. Os símbolos são dispostos em combinações variadas a não ultrapassar os seis pontos por célula. Cada sinal gráfico é apresentado num molde de 2 colunas e 3 linhas, formando uma casa ou uma célula. Só há duas formas de representar os pontos em relevo: levantados ou achatados. Estes pontos são saliências no papel com um espaço muito pequeno entre eles, para que os caracteres ocupem um espaço ínfimo, mas afastados o suficiente para serem facilmente tateados.

Como é feita a leitura?👨🏿‍🦯

A leitura é feita ao toque de um ou dois dedos indicadores ao mesmo tempo, embora haja quem use outros dedos. Para uma leitura sem paragens, o método de Braille exige ambas as mãos.

  • O dedo da mão direita deve seguir a linha até ao fim, começando do lado esquerdo e acabando na extremidade direita.
  • O indicador esquerdo deve descer para linha seguinte e começar a ler antes que a outra mão termine a linha anterior.
  • A mão direita vem depois ao encontro da esquerda e prossegue a partir do ponto em que esta parou.

O código prevê combinações de pontos para todas as letras e para a pontuação da maioria dos alfabetos. Quanto mais prática, maior a velocidade de leitura, podendo as pessoas cegas ler até 200 palavras por minuto.

Que materiais são precisos para escrever em Braille?

👨🏿‍🦯

A escrita Braille necessita de uma folha mais grossa que o normal, uma placa plástica ou metálica com várias linhas e células (pauta Braille) e um punção, uma espécie de estilete com a ponta arredondada, usado para perfurar o papel. A folha é colocada em cima dessa placa e com o estilete perfura-se o papel, seguindo as linhas e as células da pauta. O papel é marcado da direita para a esquerda. Ao terminar, vira-se a folha do avesso e passa-se o dedo por cima do picotado, lendo da direita para a esquerda.

Fontes consultadas:Ligue Braille | Snof | Associação de Cegos Louis Braille |

Não percas, também, a homenagem do Bicho-que-Morde a um grande homem da música: As nove sinfonias de Beethoven.

Impressão digital. A história na pontinha dos dedos

A impressão digital entrou na investigação criminal há 130 anos e, desde então, nunca mais a dispensamos. As técnicas forenses podem ter evoluído enormemente, com amostras de ADN, análises laboratoriais sofisticadas, infravermelhos ou perícias balísticas. Mas as dedadas deixadas na cena do crime continuam uma pista tão atual como em 1892, quando Juan Vucetich, um inspetor da polícia argentina criou o primeiro método para registar e catalogar as impressões digitais.



Somos 7,8 mil milhões de pessoas a viver neste planeta e todos diferentes, já sabemos. Mas, entre tudo o que nos distingue, encontramos sempre algo a mostrar de onde viemos e de que somos feitos. Um nariz arrebitado a fazer lembrar o bisavô, um feitio doce (ou tramado) da nossa tia ou um talento herdado da mamã ou do papá. A única característica que não se repete é a impressão digital. Por isso mesmo, esta é a ciência forense mais segura e precisa, conhecida por papiloscopia.

Podes ver, nas séries policiais da televisão, muita tecnologia a ser usada para nos impressionar: imagens 3D do corpo humano projetadas em ecrãs transparentes, amostras de sangue ou de ADN a rodopiar em centrifugadoras de laboratório, partículas minúsculas aumentadas por lentes ulrapotentes e sabe-se lá mais o quê. Mas, ao fim de mais de um século, se não pudéssemos contar com a velha e boa impressão digital, a investigação criminal estaria ainda na Idade da Pedra.

Muito antes da polícia usar este método para caçar os criminosos, já os egípcios, os gregos ou chineses usavam a impressão digital na Antiguidade para assinar contratos ou autenticar empréstimos. Mas só a partir dos finais do século 17 é que ela começou a ser estudada.

O Bicho-que-Morde construiu uma linha do tempo com os principais momentos da história da impressão digital. Entra com ele nesta viagem e descobre como a evolução desta ciência já tramou a vida de muitos burlões e de criminosos violentos.

Os pioneiros a decifrar a impressão digital

impressão digital

👉1684   O médico e botânico britânico Nehemiah Grew é o primeiro europeu a descrever a impressão digital, com desenhos precisos de padrões de cristas de dedo. No ano seguinte, o alemão Govard Bidloo apresentou o seu atlas da anatomia com observações que se tornaram a base da identificação forense das impressões digitais.

👉1686/87   Usando o microscópio para observar as marcas de dedos e mãos, Marcello Malpighi, professor de anatomia da Universidade de Bolonha (Itália), identificou cristas, espirais e laços em impressões digitais deixadas em superfícies.

👉1788   O anatomista alemão Johann Christoph Andreas Mayer foi o primeiro europeu a reconhecer que as impressões digitais eram exclusivas de cada indivíduo.

Os primeiros crimes desvendados

impressão digital

👉1823   O checo Jan Evangelista Purkyně identificou nove padrões de impressão digital, entre os quais o arco em forma de tenda.

👉1840   Após o assassinato do político Lord William Russell, o médico inglês Robert Blake Overton recomenda à Scotland Yard que verifique a existência de impressões digitais no local do crime. Mas a polícia inglesa ignora o conselho por achar que um médico de província não devia meter o bedelho em assuntos policiais. Se lhe tivessem dado ouvidos, poderiam não só ter descoberto o autor deste homicídio, como de outros serial killers, como é o caso de Jack, o estripador.

👉1877   O anatomista alemão Georg von Meissner introduziu a impressão digital em todos os contratos com os aposentados do Estado, a fim de evitar a falsificação de assinaturas por parte dos familiares.

👉1858   Cansado de ser enganado, William James Herschel registou as impressões digitais de todos os funcionários da administração britânica na Índia e acabou com o problema dos burlões que, todas as semanas, apareciam, mais do que uma vez, para receber o salário. Quanto mais impressões digitais ele recolhia, com mais certezas ficava de que se tratava de um tipo de identificação única.

👉1880   O médico escocês Henry Faulds descobriu que ao raspar as impressões digitais dos dedos, elas voltam a crescer exatamente iguais às anteriores. Entusiasmado com a descoberta, correu a contar à Polícia Metropolitana de Londres, que simplesmente o ignorou. Onde é que já ouvimos esta história???

👉1892   O antropólogo e matemático inglês Francis Galton definiu alguns pontos e características entre as quais poderiam caracterizar-se as diversas impressões digitais. Os estudos de Galton são a base da ciência de identificação por impressão digital.

👉1892    Juan Vucetich, um antropólogo e oficial de polícia argentino, criou o primeiro método científico para registar as impressões digitais. Nesse mesmo ano, Francisca Rojas acusou o vizinho ter assassinado os seus dois filhos. A polícia, no entanto, descobriu uma dedada ensanguentada que correspondia ao polegar direito de Francisca. Este foi o primeiro crime conhecido a ser resolvido com recurso a impressões digitais. A partir daí, a polícia argentina adotou o método de Juan Vucetich, que foi sendo progressivamente usado pelas forças policiais de todo o mundo.

Como é que a polícia fazia antes?

👇

Clica aqui para descobrir:
As polícias usavam o método denominado de antropometria, criado em 1879, pelo criminologista francês Alphonse Bertillion. A técnica identificava um suspeito através da medição do antebraço, da coxa, da circunferência do crânio, da distância entre os dois olhos, entre outros 243 critérios. Mas o método acabou por ser definitivamente abandonado em 1970, passando as polícias do mundo inteiro a usar a impressão digital para identificar os suspeitos.

 Uma ciência nova

Impressão digital

👉1901    O cientista francês Paul-Jean Coulier desenvolveu um método para transferir para papel a impressão digital deixada em superfícies, usando vapor de iodo. A técnica permitiu que a London Scotland Yard começasse a recolher as impressões digitais encontradas nos locais de crime.

👉1902     França é o primeiro país europeu a condenar um homicida com base em evidências de impressão digital.

👉1903    As impressões digitais começaram a ser recolhidas em grande escala para se construir uma base de dados em Nova Iorque. Em 1946, o FBI já tinha mais de 100 milhões de impressões digitais manualmente registadas em cartões de identificação

👉1910  Edmond Locard criou o primeiro laboratório forense, em França, onde recolhia as impressões digitais deixadas nas luvas que os criminosos abandonavam na cena do crime.

👉1980  As autoridades japonesas criam, na década de 1980, o Sistema de Identificação Digital Automatizado (AFIS), usado para comparar uma impressão digital com as previamente arquivadas num banco de dados. A tecnologia melhorou muito, no final do século XX, quando os processadores e as memórias dos computadores se tornaram mais eficientes, permitindo solucionar crimes ocorridos há muitas décadas.

E assim chegamos aos dias de hoje

impressão digital

👉2004    O Departamento de Defesa dos Estados Unidos desenvolve o primeiro Sistema de Identificação Biométrica (ABIS). Além da impressão digital, o método utiliza diversos dados para a identificação, como voz, íris, retina ou formato do rosto. Para evitar o roubo de identidade, os dados biométricos são criptografados.

Atualmente, o sistema encontra-se totalmente automatizado, permitido encontrar uma correspondência exata entre uma amostra e vários modelos biométricos armazenados. Na investigação criminal é até possível comparar imagens de videovigilância com as fotos dos arquivos policiais. As suas aplicações vão muito além da segurança pública, podendo, inclusive, ser usado para desbloquear um smartphone através do reconhecimento facial.

👍Se gostas de um bom policial não percas esta história: Conan Doyle. A luta pela inocência de Oscar Slater


Língua morta. Elogio às palavras caídas em desuso

palavras em desuso

Não há decretos, nem ministros a decidir quais as palavras que morrem e quais as que podem ficar. As línguas, em qualquer país, estão sempre a mexer. Ora é uma palavra que cai, ora é outra que, aos poucos, vai entrando nas nossas conversas. A língua é como um ser vivo, rica em expressões que enriquecem o nosso vocabulário, mas também com palavras caídas em desuso.


Querem ouvir uma história levada da breca? Ora prestem lá atenção ao que o Bicho-que-Morde tem para dizer.

No cimo do monte, viviam dois irmãos. Um mais velho e lingrinhas e outro mais novo e lanfranhudo. Juntos saíram, como de costume, para mais uma jorna no campo. A meio da manhã deu-lhes a larica e o farnel quiseram comer. O lingrinhas tinha o presigo e o lanfranhudo o conduto. Logo desataram a porfiar porque o que um queria o outro tinha. Embrulharam-se num sarapatel, nem repararam na cagalhota que do nada apareceu e lhes comeu a merenda. Quando os manos deram conta, só sobrou uma bucha. Não tiveram outro remédio senão reparti-la irmãmente. Doravante, não merece a pena bulhar. Ninguém sai a ganhar, pensaram os dois. A cagalhota, que se pôs na alheta, não pensará o mesmo, certamente.

Lindas cachopas e gaiatos janotas que nos vossos aposentos estais a matutar. Não fiqueis apoquentados se muitas destas palavras não conheceis. Não são trenguices, nem chalaças, são antes modos de falar antigos que já quase ninguém usa.

Bicho-que-Morde quis dar vida às palavras caídas em desuso. Perguntou aos mais velhos e foi assim que colecionou umas tantas. Perguntem agora aos papás e aos avós se conhecem outras mais.

E, entretanto, dão-se alvíssaras a quem adivinhar o significado destas palavras caídas em desuso.

palvras caídas em desuso

 ✅Lingrinhas

Descobre aqui o significado.
Magrinho (também chamado em tempos idos de pau-de-virar-tripas).

✅Lanfranhudo

Descobre aqui o significado.
Carrancudo, feio, rezingão.

✅Presigo

Descobre aqui o significado.
Qualquer alimento que se come com o pão (queijo, fiambre, toucinho).

✅Conduto

Descobre aqui o significado.
Alimentos que acompanham a refeição (batatas, massas ou arroz).

✅Porfiar

Descobre aqui o significado.
Discutir, brigar por algo.

✅Sarapatel

Descobre aqui o significado.
Confusão, balbúrdia; guisado feito com sangue e vísceras de porco ou carneiro.

palavras caídas em desuso

✅Cagalhota

Descobre aqui o significado.
Mulher baixa e com pescoço curto.

✅Bucha

Descobre aqui o significado.
Bocado de pão.

✅Açougue

Descobre aqui o significado.
Talho.

✅Capitoso

Descobre aqui o significado.
Teimoso.

✅Entanguido

Descobre aqui o significado.
Encolhido com o frio.

✅Empáfia

Descobre aqui o significado.
Arrogância, soberba ou orgulho não justificados.

palavras caídas em desuso

Garganeiro

Descobre aqui o significado.
Lambão, comilão (também usado para pessoas gananciosas).

✅Sacripanta

Descobre aqui o significado.
Falso, hipócrita.

✅Para-águas

Descobre aqui o significado.
Guarda-chuva.

Por obséquio, importa-se de repetir?

palavras caídas em desuso

Xiça penico, pintar a manta e muita baril já estiveram na crista da onda, como expressões e interjeições usadas a torto e a direito e, muitas delas, não há tanto tempo assim. Depois das palavras esquecidas, espreitem agora as expressões que também caíram em desuso. E não se esqueçam de perguntar aos mais velhos se conhecem outros exemplos.

✅Andar sobre brasas

Descobre aqui o significado.
Aflito, preocupado.

Borra-botas

Descobre aqui o significado.
Zé-ninguém, pessoa insignificante.

✅Ir ao baeta

Descobre aqui o significado.
Ir ao barbeiro.

✅Ir / vir de escantilhão

Descobre aqui o significado.
Cair e rebolar (pela ribanceira abaixo, por exemplo), ser levado apressadamente para algum lugar (de ambulância para o hospital, por exemplo).

✅Não entender patavina

Descobre aqui o significado.
Não perceber nada, expressão com origem na Idade Média quando os portugueses não conseguiam entender o que diziam os frades italianos originários da cidade de Pádua (ou Padova), que eram os patavinos e visitavam Portugal com frequência.

palavras caídas em desuso

✅Suar as estopinhas

Descobre aqui o significado.
Fazer um grande esforço.

✅Rachar canhotas

Descobre aqui o significado.
Cortar lenha.

✅Senhora ou senhorita?

Descobre aqui o significado.
Pergunta que os homens faziam às mulheres para saberem se eram casadas ou solteiras.

✅Unhas-de-fome

Descobre aqui o significado.
Forreta.

palavras caídas em desuso

Se gostos de brincar com a língua portuguesa, temos 7️⃣ sugestões de leitura para ti

1️⃣ Erros, mentiras e traições do português

2️⃣ Por que gostam tanto os portugueses dos dimutivos?

3️⃣ Por que há certas palavras que não têm tradução?

4️⃣ Por que meeting e não reunião?

5️⃣ Quantas palavras tem a língua portuguesa?

6️⃣ Quantas pronúncias têm os portugueses?

 7️⃣ Quanto pesam as palavras?

Os grandes porquês sem resposta da ciência

Por mais que a ciência, o conhecimento e a tecnologia avancem, haverá sempre porquês sem respostas. Alguns mistérios estão prestes a serem desvendados, outros longe disso e, em alguns casos, nunca vão ter respostas definitivas. Não é por isso que desistimos. A cada dia tentamos chegar mais perto.

Como começou a vida?

Porquês sem resposta

Há cerca de 4 mil milhões de anos, umas quantas substâncias químicas juntaram-se, dando origem às primeiras moléculas capazes de se reproduzirem. Nós, os humanos, estamos ligados a essas moléculas, mas o grande mistério é saber como e por que estas substâncias se organizaram formando algo semelhante à vida.

Teorias há muitas. Desde a sopa primordial de Stanley Miller que, em 1953, provou ser possível vários gases se combinarem entre si originando moléculas de aminoácido. Até teses mais antigas e bizarras, envolvendo microrganismos transportados por meteoritos ou extraterrestres até ao mar. Nenhuma delas tem o consenso da comunidade científica e, como tal, esta é mais uma pergunta a juntar-se à listas de porquês sem resposta.

O que nos torna humanos?

porquês sem resposta

O ADN por si só é insuficiente para nos distinguirmos dos restantes animais. O genoma humano é, por exemplo, 99% idêntico ao do chimpanzé. Por outro lado, um monte de habilidades que se pensavam ser exclusivas dos humanos – linguagem, capacidade para inventar ferramentas ou reconhecer o próprio reflexo no espelho – foi presenciado em outros animais.

Talvez seja a cultura e o efeito que acaba por ter sobre os nossos genes (e vice-versa) que fazem a diferença. Os investigadores acreditam que, ao dominar o fogo, o homem deu um grande passo para desenvolver um cérebro grande e complexo. Mas os cientistas também estão convencidos de que é a nossa capacidade para a entreajuda entre povos e para o comércio que melhor nos distingue de outros animais.

De onde vem a consciência?

porquês sem resposta

Para perceber o que procuram os cientistas é preciso, antes de mais, saber o que é a consciência. Entre as inúmeras maneiras de a definir, poder-se-ia dizer que é a nossa capacidade ver e sentir não só o mundo ao redor como a nós próprios.

Não basta somente sentir essa consciência, mas também saber que se tem essa capacidade de perceber o que se passa dentro e fora de nós próprios – sentimentos, pensamentos e ações. Em traços gerais, será sentir que temos uma alma ou uma mente. Desconhece-se se essa consciência está ligada a diferentes regiões do cérebro ou apenas a uma única parte.

Uma boa fatia da comunidade científica acredita que para encontrar uma resposta é preciso identificar as diferentes partes do cérebro envolvidas neste processo. Só assim será possível descobrir como o circuito neuronal funciona e conseguir finalmente desvendar como nasce a consciência. Algo que tanto a inteligência artificial como as tentativas para reconstruir cérebros podem vir a ajudar (sim, é verdade, há cientistas que julgam ser possível fabricar um cérebro artificial, com os seus cerca de 85 mil milhões de neurónios).

Susan Greenfield, investigadora da Universidade de Oxford, defende que a consciência resulta das ligações contínuas entre os neurónios desde o primeiro ao último momento de vida. O cérebro tira uma fotografia e armazena as experiências na memória. Cada vivência, como andar de avião, ler um livro ou brincar à chuva, provoca uma mudança na forma como o cérebro organiza as suas ligações. Quanto mais aprendemos sobre o mundo, mais conexões acontecem no nosso cérebro.

Os investigadores mais desconfiados (os céticos) duvidam dessa teoria, crendo que, enquanto se procurar a consciência entre as sinapses e as ligações cerebrais, não se chegará a lugar nenhum. Essa corrente defende que estímulos cerebrais e sensações são assuntos muito diferentes.

Ou seja, a sensação de frio, por exemplo, depende de estímulos no cérebro, não sendo o mesmo que a perceção de frio. Uma coisa é reconhecer o frio e outra é sentir esse frio. Além dessa diferença, contestam também a teoria das memórias armazenadas no cérebro. O grande argumento deles é que as nossas lembranças são experiências do passado e as ligações que acontecem no nosso cérebro só conhecem o presente.

Vá-se lá saber quem tem razão. A única certeza, por enquanto, é que este é mais um dos porquês sem resposta. Mas a ciência evolui e, tal como um dia já se acreditou que a raiz da razão estava no coração, os cientistas podem vir a surpreender com as suas novas teorias.

Por que sonhamos?

porquês sem resposta

Considerando que um terço das nossas vidas é passado a dormir, poder-se-ia julgar que já sabemos tudo o que há para saber sobre sono e sonhos. Nada disso. Os cientistas estão ainda à procura de explicações mais completas que nos ajudem a perceber porque dormimos e sonhamos.

Os seguidores do psicanalista mais famoso, Sigmund Freud, acham que os sonhos mostram aqueles desejos que gostaríamos de realizar. Outros questionam se os sonhos não passam de lampejos acidentais de um cérebro adormecido.

Estudos com animais e os avanços nas tecnologias que desenvolvem imagens cerebrais conduzem-nos a conclusões mais complexas, sugerindo que os sonhos podem ter um papel na memória, na aprendizagem e nas emoções. Os ratinhos, por exemplo, mostraram que, durante os sonhos, repetem as experiências que tiveram quando estavam acordados, ajudando-os a resolver tarefas complicadas como encontrar a saída de labirintos.

De que é feito o Universo?

porquês sem resposta

Depois de conquistar a Lua, o homem enviou sondas a Marte e a Júpiter, capturou imagens de galáxias a milhares de milhões de anos-luz e até tem duas sondas – Voyagers I e II – que já atravessaram a fronteira do sistema solar. E, ainda assim, esta continua a ser uma das grandes perguntas sem resposta. Tendo em conta a imensidão do Universo, todas as conquistas até agora feitas no Espaço representam quase nada.

Cerca de 95% do que existe no Universo permanece desconhecido e nem sequer se sabe de que matéria é feito. Os átomos compõem tudo o que vemos e tudo o que somos, mas são somente 5% do que existe. O restante é composto por aquilo a que os cientistas decidiram chamar de «matéria escura» e «energia escura». Nunca vimos ou tocámos nessas matérias e só sabemos que existem através de meios e efeitos indiretos.

A matéria escura, identificada em 1933, atua como uma cola invisível, ligando galáxias e aglomearados de galáxias. Os astrónomos calculam que a esmagadora maioria massa do Universo seja feita de matéria escura, isto é, matéria que não conseguem ver.

A energia escura, por outro lado, surge para tentar perceber porque o Universo se expande a um ritmo cada vez mais veloz (expansão acelerada), apesar da ação gravitacional. Ainda ninguém conseguiu explicar como acontece essa aceleração, mas uma das hipóteses é que seja consequência de uma nova forma de matéria, apelidada «energia escura», não detetada até agora. A energia escura, revelada em 1998, pressiona a expansão do Universo a velocidades cada vez mais incríveis. É “escura” porque interage com a matéria escura, entre outras, e é “energia” porque representa mais de 70% da energia total do Universo.

Estamos sozinhos no Universo?

porquês sem resposta

Provavelmente não, mas como ainda não há qualquer prova oficial de vida alienígena, esta é mais uma das perguntas sem resposta. Todos os dias, os astrónomos usam sondas e satélites para vasculhar o Universo à procura de lugares onde a água possa ter originado formas de vida. E, todos os dias, radiotelescópios buscam sinais que possam ter sido emitidos por alienígenas. Em 1977, aliás, captaram algo muito promissor que ficou conhecido como Wow! – um forte sinal recebido pelo radiotelescópio Big Ear que, lido por um computador, resultou numa sequência de letras e números com duração de 72 segundos.

Significa isto que o homem tanto é capaz de usar as tecnologias para procurar água e oxigénio noutros planetas como detetar sinais inteligentes em pontos cada vez mais distantes. Ou seja, nas próximas décadas, tudo pode acontecer. E o que não faltam são lugares para explorar. Só na Via Láctea, há pelo menos 60 mil milhões de planetas que poderão estar habitados por qualquer forma de vida.

 

Há mais universos além do nosso?

perguntas sem resposta

Não há provas de nada, claro, e desconfia-se que esta será uma das eternas perguntas sem resposta. O certo é que os cosmólogos acreditam na existência de mais universos para lá do nosso. Multiverso é o nome para descrever um grupo de universos possíveis, baseado numa lógica de pura matemática. Ou seja, como o espaço é infinito, existirão provavelmente outros universos pela simples razão de que, a partir de uma certa distância, todos os arranjos entre moléculas começam a repetir-se, imitando sempre os mesmos padrões.

 

Como derrotar as bactérias?

perguntas sem resposta

Os antibióticos são uma das maiores conquistas da medicina moderna. Não foi à toa que o médico e investigador escocês Alexander Flemming ganhou, em 1945, um Nobel com a descoberta da penicilina, fungo identificado em 1928, que passou a ser usado como o primeiro antibiótico. O feito permitiu chegar a medicamentos que venceram muitas doenças mortais, tornando também possíveis as cirurgias, os transplantes ou a quimioterapia.

Foi um enorme legado, que agora está em perigo. Só na Europa cerca de 25 mil pessoas morrem a cada ano por causa de bactérias multirresistentes. O flagelo é tão assustador que a Organização Mundial de Saúde considera estar perante uma «ameaça global» à saúde pública. Tudo isto porque os antibióticos passaram a ser receitados por quase tudo e quase nada, enfraquecendo a nossa resistência às bactérias.

Felizmente, a sequenciação do ADN tem ajudado a descobrir antibióticos que nunca desconfiámos que as bactérias pudessem produzir. A par dessas descobertas, surgiram métodos muito eficazes como o transplante de “boas” bactérias para curar algumas infeções graves. Ou ainda descobertas de bactérias nas profundezas dos oceanos que podem vir a ser muito úteis para num futuro próximo vencer algumas batalhas desta guerra. Mas, até prova em contrário, são as bactérias multirresistentes que têm conquistado terreno.

As superbactérias começaram a desafiar a medicina em 1950, quando o Staphylococcus aureus, causador de infecções cutâneas e respiratórias, deixou de responder à penicilina. A função do antibiótico é matar as bactérias para combater a infecção. Quando deixa de fazer efeito, é preciso encontrar um novo antibiótico ou uma nova classe deles.

O ritmo dessas descobertas tem sido demasiado lento, tendo em conta a velocidade com que as bactérias multirresistentes se desenvolvem. Basta lembrar que, no século passado, 10 classes de antibióticos foram desenvolvidas e, neste século, até agora, apenas duas, para perceber que a guerra está longe do fim.

 

Vamos encontrar a cura para o cancro?

perguntas sem resposta

Esta é outra das perguntas sem resposta. O cancro, sendo uma doença em constante evolução, causada pelo descontrolo dos nossos genes, é uma coisa viva que se adapta às condições mais hostis para conseguir sobreviver. A boa notícia é que, através de várias descobertas no campo da genética, estamos a aprender cada vez mais sobre as suas causas, como se espalha e também a melhorar os tratamentos e a prevenção.

Outra grande vantagem é saber à partida que metade de todos os cancros podem ser prevenidos apenas com bons hábitos alimentares, exercício físico e um estilo de vida mais saudável. Beber e comer com moderação, não passar horas a fio sentado no sofá, evitar exposições prolongadas ao sol, ficar afastado das zonas poluídas ou fugir do tabaco são excelentes trunfos que ajudam a fintar o cancro.

 O que existe no fundo do oceano?

perguntas sem resposta

Os oceanos são como o Universo. Quanto mais conhecemos, mais percebemos que sabemos pouco ou quase nada sobre eles. Em ambos os exemplos, cerca de 95% estão ainda por explorar e, no caso dos oceanos, ainda não foi possível ver ou chegar ao mais profundo das suas águas. O belga Jacques Piccard e o americano Don Walsh foram os primeiros e os únicos oceanógrafos a descer mais fundo do que alguma vez alguém conseguiu.

Ambos viajaram num veículo para explorar águas desconhecidas que submergiu na Depressão Challenger, localizada na Fossa das Marianas. Situada na parte ocidental do Oceano Pacífico, essa trincheira é resultado de um choque entre duas grandes placas tectónicas – a das Filipinas e a do Pacífico.

A Depressão Challenger foi o ponto que Piccard e Walsh exploraram em 1960 a bordo do seu Trieste. A aventura foi um marco para a história da oceanografia, mas apenas mostrou uma parte mínima do chão do mar. É tão difícil alcançar o fundo do oceano que, na maioria das vezes, só se consegue atingir grandes profundidades através veículos não tripulados.

As descobertas até agora feitas, como o peixe barreleye com a sua cabeça transparente ou os crustáceos que podem vir a revelar-se úteis no tratamento do Alzheimer, são apenas partes ínfimas de um estranho mundo escondido pela superfície dos mares.

O que há no fim de um buraco negro?

perguntas sem resposta

É mais uma daquelas perguntas sem resposta e para as quais ainda não existem ferramentas que permitam conclusões cientificamente fundamentadas. A teoria da relatividade geral de Einstein defende que, quando um buraco negro é criado por uma estrela enorme que morre, ele continua revolvendo e perfurando o seu interior até formar um ponto infinitamente pequeno e denso, a que se dá o nome de singularidade. Mas, nessas escalas tão ínfimas, a física quântica provavelmente também tem algo a dizer. O problema é que a relatividade geral e a física quântica nunca se deram muito bem – há décadas que tanto uma como a outra têm resistido a todas tentativas de cooperação. No entanto, uma tese recente – Teoria-M -, que procura compreender os eventos antes do Big Bang, poderá, um dia, vir a explicar o centro invisível de um buraco negro.

Podemos viver para sempre?

perguntas sem resposta

 

São estranhos os tempos que vivemos. Começamos a pensar que a velhice, mais do que uma evolução natural da vida, é uma doença que pode ser tratada e, quem sabe, até evitada ou adiada por muito tempo. A cada dia que passa, sabemos mais sobre o que nos faz envelhecer e o que permite alguns animais viver mais do que outros.

Apesar de ainda não termos todos os ingredientes para fabricar o elixir da eterna juventude, as pistas recolhidas sobre danos ao ADN, o equilíbrio de envelhecimento, o metabolismo e a capacidade reprodutiva, mais os genes que regulam tudo isso, permitem ter uma compreensão cada vez mais completa que poderá conduzir a tratamentos medicinais.

O grande desafio, contudo, não passa somente por viver mais. Viver melhor, por mais tempo, é a grande questão que esbarra em doenças como diabetes ou cancro, típicas da idade. Cientistas acreditam que tratar o envelhecimento, por si só, poderá ser a chave, mas esta continua a ser uma das eternas perguntas sem resposta.

Como resolver o problema de excesso de população?

perguntas sem resposta

Desde a década de 1960, o número de habitantes na Terra duplicou para mais de 7 mil milhões, e estima-se que, até 2050, haverá pelo menos 9 mil milhões de terráqueos a viver no planeta. Onde vamos viver e como produzir comida e energia suficientes para alimentar e sustentar essa população?

Há quem acredite que colonizar Marte é uma forte possibilidade. Ou então construir prédios subterrâneos. Há também quem já tenha dado os primeiros passos para criar carne em laboratório e quem tenha importado a moda dos asiáticos de comer insetos. Parecem ideias saídas da ficção científica? Talvez, mas até agora são as melhores respostas para uma das grandes perguntas sem resposta.

É possível viajar no tempo?

perguntas sem resposta

O estudo de Einstein publicado em 1905 foi o primeiro passo para esta aventura. O autor da teoria especial da relatividade mostrou que, quanto mais rápido se viaja, mais devagar o tempo passa. E que o tempo não é igual em todo o lado, apenas a velocidade é que é constante. E foi assim que descobrimos um atalho para encurtar o tempo. Agora, só é preciso inventar a tecnologia que permita aumentar a velocidade ao ponto de ser possível viajar milhares de anos no futuro.

Essa proeza, contudo, já foi conseguida, mas apenas com partículas subatómicas. No caso dos humanos, exigiria energia em quantidades astronómicas que o nosso corpo não aguentaria. Ou então manipular a gravidade, o que também é uma tarefa pouco provável à luz da ciência atual.

Mas, o certo é que estudos, teorias e cálculos demonstraram que viajar no tempo é possível de duas formas: acelerando até se chegar próximo da velocidade da luz ou sobrevoando uma zona onde a força da gravidade seja extrema, como poderia acontecer com uma estrela de neutrões ou com um buraco negro.

As teorias só são válidas para o futuro, regressar ao passado é, por enquanto, pura ficção científica. O desafio aqui é muito maior, não basta chegar perto da velocidade da luz, teríamos de ultrapassá-la. Físicos e filósofos tendem a acreditar que as viagens ao passado esbarram no “paradoxo dos avós”, descrito em 1949 por Kurt Gödel, que defende que, ao viajarmos até ao passado, poderíamos evitar o nosso próprio nascimento. Bastaria que conseguíssemos impedir os nossos avós de se conhecerem.

Não é que seja impossível. Neste momento, está tudo em aberto, mas ainda nenhuma teoria conseguiu demonstrar essa possibilidade. E o que não faltam são teorias, desde paradoxos temporais, buracos de minhoca, que funcionam como portais do tempo, ou realidades paralelas. Tudo especulações, por enquanto. Boas especulações, é certo, mas não passam ainda de mais perguntas sem respostas.

💥😵 O @bichoquemorde tem mais uma boa sugestão de leitura para ti: Por que é (quase tudo) uma questão de perspetiva?

Uma encomenda especial: os filmes de Jacques Tati

Jacques Tati

Era uma vez uma carta de uma tia, em Portugal, para uma sobrinha na América. Uma carta que chegou atrasada, mas trouxe uma bela prenda de aniversário: uma caixa cheia de filmes de Jacques Tati. Já ouviram falar dele? Foi quem nos deu a conhecer o senhor Hulot. O personagem mais trapalhão dos filmes franceses mostrou-nos que de nada vale ter um grande carro na garagem ou o melhor smartphone no bolso se, depois, na correria das cidades, esquecemos de cuidar uns dos outros.

Jacques Tati

Olá Eva, minha maluquinha. ❤

Aqui está a minha prenda de aniversário para ti com séculos de atraso! Desculpa a demora, mas o lado positivo é que podes sempre esticar mais um bocadinho a tua festa. Faz de conta que o relógio andou para trás e que hoje é outra vez o teu dia. Esta é uma prenda muito especial como, na verdade, são todas as prendas que se oferecem com o coração cheio. Dentro desta caixa que o carteiro trouxe vais encontrar os principais filmes de Jacques Tati, realizador, argumentista e ator nascido em França, que eu adoraria ter conhecido quando ainda era criança. Será que já o conheces?

jacques tatiJacques Tati fez filmes cómicos que, além de fazerem rir, fazem também pensar. E com a vantagem de pessoas de qualquer país e com qualquer idade conseguirem entendê-los com muita facilidade porque praticamente não existem diálogos. Os efeitos sonoros, a música e a mímica são a chave para perceber as histórias que ele conta quase sem palavras. O Sr. Hulot é a personagem mais popular que Tati criou e que ele próprio interpreta. É um homem de meia-idade, solteiro e nada preocupado com estatuto, dinheiro, marcas de automóveis ou outras coisas artificiais.

O mundo para o Sr. Hulot tem outros lados mais interessantes e por vezes bem estranhos, que ele só vê porque não se deixa arrastar pelo ritmo acelerado das cidades modernas. Se não fosse uma invenção saída dos filmes de Tati e andasse pelas ruas de Paris, de Lisboa ou de Nova Iorque, o senhor Hulot seria visto como mais um maluquinho à solta por muito boa gente com dificuldade em entender que as pessoas não têm de parecer todas iguais.

No cinema, porém, a sua estatura alta, magra e desengonçada dá vontade de rir. Mas as suas peripécias fazem-nos pensar também como muitas coisas dos adultos são, no mínimo, absurdas.

O mundo, segundo o Sr. Hulot

 Hulot seria visto como um doido à solta por muita gente com dificuldade em entender que as pessoas não têm de parecer todas iguais.

O Sr. Hulot é trapalhão, está sempre a fazer asneiras, mas isso só mostra que errar é também uma boa maneira de aprender. As embrulhadas em que se mete, contudo, nem sempre são culpa dele. É mais porque tudo nas cidades acontece rápido, não dando tempo para ele se ajustar à pressa que toda a gente tem na rua, no escritório ou no trânsito para chegar sabe-se lá onde.

Mas atenção, o Sr. Hulot não detesta as novas tecnologias ou o conforto dos grandes centros urbanos, como às vezes parece. Só aponta os seus aspetos mais ridículos para mostrar que, por mais que as modernices facilitem o dia-a-dia, não podemos usá-las para nos afastarmos uns dos outros. Nem tão-pouco para virarmos clones uns dos outros, conduzindo os mesmos modelos de carros, trabalhando em cubículos perfeitinhos, habitando caixotes envidraçados, ou buscando unicamente o lado prático e produtivo das cidades sem reparar que vida ficou, entretanto, cinzenta e sem piada.

Jacques TatiA melhor parte disto tudo é que o senhor Hulot também tem um sobrinho de quem gosta muito. Quando estão juntos, Gérard brinca que se farta na parte velha da cidade, entra em muitas aventuras com outras crianças, lambuza-se com doces, suja-se de terra e pó e faz toda a espécie de traquinices.

Não é apenas porque o tio o deixa à vontade que o miúdo gosta tanto dele. É principalmente porque Hulot é diferente dos adultos que ele conhece, mais preocupados com carros novinhos em folha, eletrodomésticos de última geração ou casas tão limpas e organizadas, que mais parecem montadas para catálogos de decoração do que feitas para as famílias viverem lá dentro.

O tio, pelo contrário, não se importa de viver num bairro desarranjado, mas ao mesmo tempo preenchido com rotinas deliciosas. Os vizinhos cumprimentam-se todos os dias, o varredor distrai-se à conversa e esquece de limpar os montinhos de folhas secas, os cães rafeiros brincam sem trela por entre as ruínas e há sempre barafunda nas bancas de fruta e hortaliças. É um mundo novo para Gérard, habituado às boas maneiras e aos gestos contidos que os papás ensinaram.

Um tio e um sobrinho quando se juntam…

Quando está com o tio, Gérard lambuza-se com doces, suja-se de terra e pó e faz toda a espécie de traquinices.

«O Meu Tio» é, aliás, um dos filmes de Jacques Tati, senão o filme, com mais sucesso internacional. Ganhou o Prémio Especial do Júri em 1958 no Festival de Cannes, conquistou o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro no ano seguinte e tornou-o milionário. Só que a fortuna durou pouco. O filme seguinte, «Play Time – A Vida Moderna», com um prejuízo de 8 milhões de francos, levá-lo-ia seis anos mais tarde à ruína.

Tati apostou em grande neste filme, construiu uma cidade de raiz num estúdio em Saint Maurice, com 15 mil metros quadrados, onde cabiam edifícios de ferro e vidro, ruas, estradas, escritórios, centro comercial, aeroporto e escadas rolantes. Os cenários eram tão impressionantes, que durante as rodagens ficaram popularmente conhecidos como a «cidade de Tati». Ele achava que a cidade desempenhava o papel principal no filme e acreditava que era mais fácil montar uma do que parar, por exemplo, o trânsito numa avenida movimentada de Paris ou fechar um supermercado para fazer as filmagens.

Além disso, estava convencidíssimo de que o sucesso do filme iria compensar a trabalheira e o investimento. Só não contava com tantos contratempos. Além dos problemas logísticos para fabricar uma cidade, teve ainda o azar de ver quase tudo destruído por um temporal que o obrigou a injetar mais dinheiro e a arrastar as filmagens por três anos. Quando «Play Time» estreou, em 1967, as pessoas só comentavam a loucura que foi enterrar 15 milhões de francos num filme, por mais inspirado que fosse. A crítica também não ajudou, com os jornais franceses mais influentes a deitarem abaixo a obra de Tati.

jacques tatiFoi uma golpada profunda no prestígio e no orgulho dele, mas apesar do fracasso comercial, Tati regressou ao cinema para fazer mais dois filmes que ficaram para a História do Cinema – «Trafic – Sim, Sr. Hulot» (1971) e Parade (1974). Hoje, mais de três décadas depois de ele morrer, o estranho mundo que Tati inventou continua a levar muita gente às salas de cinema.

Mas, olha, estava tão embalada que acho já contei mais do que devia. Vou ficar por aqui para não estragar a surpresa, se bem que, por mais que conte as aventuras de Jacques Tati ou do Sr. Hulot, nada, mesmo nada, nos prepara para os filmes dele.

Espero que gostes tanto como eu e aposto que os teus papás vão adorar revê-los contigo. Há mais de 60 anos que o Sr. Hulot diverte crianças e adultos. Os meus filmes preferidos são o «O Meu Tio», «Play Time» e as «As Férias do Senhor Hulot». Diz-me, depois, de qual ou quais gostaste mais. Ou até se nenhum deles é propriamente a tua praia, não fiques atrapalhada. 😜

Beijos e muitas saudades da tua titi ❤

Jacques TatiFicha biográfica:

  • Nome completo: Jaques Tatischeff
  • Nome artístico: Jaques Tati
  • Profissão: realizador, argumentista e ator (durante a juventude, foi também jogador de rugby do Racing Club de France e, antes de entrar para o cinema, foi ainda mímico e comediante de boulevard).
  • Nasceu: 9 de outubro de 1907, em Le Pecq
  • Morreu: 5 de novembro de 1982, em Paris

Filmes

  • 1947 – Escola de Carteiros (curta-metragem)
  • 1949 – Há Festa na Aldeia
  • 1953 – As Férias do Sr. Hulot
  • 1958 – O Meu tio
  • 1967 – PlayTime – Vida Moderna
  • 1971 – Trafic – Sim, Sr. Hulot
  • 1974 – Parada

Descobre também a história por detrás de «O Principezinho»

Prisioneiros de Zomba. Canções à solta pelo mundo

prisioneiros de Zomba

A prisão de alta segurança de Zomba foi durante muitos anos um lugar riscado no mapa de Malawi. Boa parte dos reclusos cometeu crimes sérios, mas outros estão condenados por coisas tão ridículas como feitiçaria ou homossexualidade. É nesta cadeia velha e a cair aos bocados que surge uma banda de música. Os prisioneiros de Zomba cantam para esquecer este lugar, mas as canções deles escaparam das grades e chegaram ao mundo inteiro.


Em qualquer lugar de Zomba, as montanhas são a única paisagem que se vê no horizonte. Para chegar às aldeias, demoram-se várias horas indo por caminhos estreitos e cheios de curvas que, em algumas partes, só podem ser percorridos a pé ou de bicicleta.

É uma cidade bonita, no sul de Malawi, com pouco mais de 100 mil habitantes, que cultivam arroz, milho, tabaco ou produzem leite. Mas para quem, como eu, vive perto da prisão central, é difícil reparar na beleza deste lugar. Só consigo ver muros, grades e portões.

Sou guarda há mais de 20 anos e ainda não me acostumei. Ao voltar a casa só me apetece esquecer este sítio, mas este sítio não me sai da cabeça. A música é o único remédio. Quando pego na viola e começo a cantar com a minha banda, já nem me lembro que tenho de regressar à prisão no dia seguinte.

A escuridão na prisão

Prisioneiros de Zomba
Crédito: Minidocumentário “I Will Not Stop Singing” (Marilena Delli)

A cadeia de Zomba foi contruída para 300 reclusos, mas tem mais de 2000 detidos em celas apertadas.

Se para mim é difícil, mais complicado é para quem vive dentro dos muros. A prisão central de Zomba é um edifício velho, construído no tempo em que os britânicos fizeram do Malawi uma das suas colónias. Foi planeada para 340 reclusos, mas tem mais de 2000 homens e meia centena de mulheres.

Nas celas, os prisioneiros de Zomba dormem no chão, encostados uns aos outros. Quando um se quer virar para outro lado, todos os outros têm também de virar ao mesmo tempo que ele.

A única refeição que eles comem por dia é uma papa de farinha de milho. Por vezes, têm sorte e ganham um punhado de feijões cozidos no prato. A carne é um luxo de algumas noites de Natal, mas nem sempre.

Eu nem devia queixar-me. A vida deles é muito mais dura do que a minha. É que não tem comparação. Foi por isso que pensei em ensinar um bocadinho de música para que, de vez em quando, pudessem também esquecer este lugar. Só que primeiro é preciso autorização do diretor-geral. Bati à porta do gabinete dele logo a seguir à hora de recolher.

_ Entra Thomas Binamo, o que queres comigo? – Perguntou Little Dinizulu Mtengano.

_ Como está senhor diretor? Desculpe o incómodo, mas tive uma ideia que pode ser boa para a prisão.

_ De que falas?

_ Sabe, senhor diretor, nas minhas horas livres canto e toco guitarra numa banda, às vezes até animamos as festas nas aldeias.

_ Fico contente em saber, mas porque me contas isso?

_ Estava pensar que podia ensinar música aos prisioneiros de Zomba.

_ Olha que não é nada má ideia, Thomas. É uma maneira de os manter longe das brigas e de outras confusões piores. Mas podíamos aproveitar também para ensinar outras coisas importantes.

_ Está a falar de quê senhor diretor?

_ Podias escrever canções que ensinassem hábitos de higiene e espalhassem mensagens de prevenção de doenças como a sida. A música é um excelente meio para ensinar.

_ Acho muito bem.

_ Ótimo! Ainda esta semana vou arranjar uma concessão que deve dar, pelo menos, para comprar alguns instrumentos.

Uma ideia com pernas para andar

Prisioneiros de Zomba
Documentário Zomba Prision Project (Marilena Delli)

Uma banda de música é um projeto simples, mas pode mudar a vida na prisão de Zomba.

Foi logo no dia a seguir que o diretor começou a tratar da papelada. Ele sabe que o meu objetivo é fazer com que os reclusos esqueçam o inferno que é esta prisão. Não é preciso ser muito perspicaz para perceber que tenho razão.

O senhor Mtengano tem perfeita consciência de que as condições em que os prisioneiros de Zomba vivem estão longe de serem razoáveis, mas os governantes da capital nunca se preocuparam com os reclusos desta ou de outras cadeias. Não é agora que iriam começar, sobretudo, porque a esmagadora maioria dos reclusos nem sequer sabe ler ou escrever. Para quê gastar dinheiro com um bando de analfabetos? – é o que pensam eles.

Na prisão de Zomba é bem pior. É a única cadeia de alta segurança para o país inteiro. Aqui dentro, estão detidos homens e mulheres que cometeram crimes muito sérios – roubaram, agrediram e até mataram. Mas também há outros condenados por coisas tão ridículas como feitiçaria ou homossexualidade. Boa parte deles espera anos pelo julgamento e, quando a audiência é finalmente marcada, não conseguem estar presentes, porque o sistema prisional não providencia o transporte até ao tribunal.

Há prisioneiros que nem sequer tiveram direito a um advogado que os defendesse. Muitos foram condenados sem saberem o que dizia a sentença, porque o juiz falava em inglês e eles só percebem chichewa, um dos principais dialetos de Malawi.

A prisão central é, portanto, um pontinho apagado no mapa de Malawi. É bastante complicado obter qualquer tipo de regalia para os prisioneiros de Zomba, mas o diretor-geral usa os melhores argumentos para convencer as autoridades da capital, em Lilongwe, de que o projeto, não sendo dispendioso, terá enormes benefícios para prevenir surtos de violência ou de doenças dentro das prisões.

O dinheiro chega finalmente passado uns meses e dá para comprar um par de guitarras, uma bateria e mais alguns instrumentos de precursão, além de teclados, baixos e ainda um gerador de energia. É um dia de festa, com uma multidão à volta dos instrumentos montados na carpintaria. Centenas de prisioneiros de Zomba querem participar na minha banda, mas, como tal não é possível, arranja-se maneira de formar vários grupos corais.

A prisão de Zomba, que até há pouco tempo parecia um cemitério de almas infelizes, transforma-se do dia para a noite. Em todas as esquinas ouve-se alguém a cantar. Às vezes, uma voz solitária aqui e outra acolá, outras vezes, dezenas de gargantas afinadas a dar espetáculos no pátio, nas celas, no refeitório, qualquer lugar serve para abrir a goela e soltar notas e acordes musicais.

Um casal no fim do mundo

Prisioneiros de Zomba
Documentário “House of Dance” (Marilena Delli)

Ian e Marilena andam pelo mundo a recolher músicas quando ouvem falar nos prisioneiros de Zomba.

Os prisioneiros de Zomba estão viciados nesta brincadeira, sempre a cantarolar e cada vez mais alto. Tão alto que, um dia, chega aos ouvidos de um casal de brancos que, vindos do nada, aparecem aqui. «O que será que eles querem?» – Pergunto a mim próprio quando os vejo passar o portão principal. Não esperei muito até ambos virem ter comigo.

_ Olá, boa tarde. Tu é que és o Thomas? – Quis saber o homem.

_ Sou eu.

_ Chamo-me Ian Brennan, sou americano e produtor de música. Esta é a minha mulher Marilena Delli, é italiana e faz documentários e fotografia. Ouvimos dizer que tens uma banda de música aqui dentro da prisão.

_ Sim, é verdade, mas como é que um branco do outro lado do mundo sabe que, neste fim de mundo, há uma banda de música?

– Esse é o nosso trabalho, Thomas. Há mais de 30 anos que andamos pelos lugares mais escondidos do planeta à procura de artistas e canções que nunca foram contagiados pelas grandes indústrias discográficas da Europa ou da América.

_ Estamos à procura de vozes e sons puros e já estivemos no Ruanda, no Sudão do Sul, no Vietname, na Argélia ou na Palestina. Há coisa de dois anos, estivemos aqui perto e ouvimos falar sobre vocês – continuou Marilena.

_ E o que querem connosco? – Pergunto um pouco desconfiado.

_ Queremos ouvir e gravar a vossa música, mas não tem sido fácil obter autorização. Já enviámos toneladas de papéis e formulários preenchidos, mas parece-me que as vossas autoridades não gostam de nos ter por perto. Conseguimos finalmente marcar uma reunião com o diretor-geral e é para lá que temos de ir agora. Sabes onde fica o gabinete dele?

_ Venham comigo.

O senhor Mtengano já está à porta do gabinete à espera deles. Entramos todos. Estou doido para saber no que isto vai dar.

_ Boa tarde, meus senhores – disse o diretor num tom muito sério -. Sabem que só vos recebo por cortesia e porque insistiram muito. Nós aqui não permitimos a permanência de estranhos, espero que possam compreender.

_ Deixou isso bem claro na nossa troca de emails – disse Ian –, mas queremos propor um acordo que pode ser positivo para ambas as partes.

_ Diga lá.

_ A música não é a minha única especialidade. Também trabalhei em prisões americanas e, durante muitos anos, dei cursos em que ensino os reclusos a resolverem conflitos sem necessidade de usarem a violência. Até escrevi vários livros sobre este assunto – disse Ian, tirando da mochila dois calhamaços que ofereceu ao diretor.

_ Agora é que esta história começa a ficar interessante – solta Mtengano, desfazendo finalmente a cara feia e abrindo um sorriso carregadinho de dentes brancos

– Que tipo acordo propõe?

_ Dou aulas e em troca o senhor deixa-nos passar algum tempo com os reclusos e guardas a ouvir a música que eles fazem.

_ É justo, mas não posso conceder mais do que duas semanas, combinado?

_ Ok. É melhor que nada.

Ian e Marilena começam logo a trabalhar. Da parte da manhã, ele dá os cursos aos prisioneiros e à tarde andam ambos pela prisão a ouvir a nossa cantoria. Parecem uns tontos de um lado para o outro, ele com o microfone estendido a captar sons no pátio, na oficina ou à porta das celas e ela sempre a fotografar ou a filmar.

Ian corre como uma barata tonta atrás da música

prisioneiro de Zomba
Documentário Zomba Prision Project (Marilena Delli)

A cantoria na cadeia acontece em qualquer lado e nos lugares mais inesperados. 

A verdade é que não é difícil ficar zonzo nesta cadeia quando se anda atrás da música. A cantoria acontece em qualquer lado e nos momentos mais inesperados. De repente, abre-se uma porta e aparece um sujeito todo contente a cantar. E, logo a seguir, surge Ian a tentar registar os bocadinhos de cantigas que apanha aqui e ali.

A oficina é, entretanto, transformada num estúdio com alguns aparelhos que o casal trouxe. Ian e Marilena estão encantados com o nosso dialeto. Dizem que é uma língua muito musical e que as nossas canções tão depressa são tristes e doces como alegres e cheias de ritmo. Nunca tinha pensado nisso. Nós aqui cantamos e pronto. Não demoramos muito tempo a matutar sobre as nossas canções.

Cantamos a vida nesta prisão, o arrependimento pelos crimes, as angústias por não sabermos o futuro dos nossos filhos. Coisas que a gente vê e sente na pele. Só isso.

Há prisioneiros que nem sequer sabiam que conseguiriam escrever canções até Ian os desafiar.

_ Eu não sou escritor – avisou Stefano Nyerenda ao ouvir a proposta do americano.

_ Por que não tentas? Não tem de ser nada de complicado ou longo, pode durar menos de 30 segundos se quiseres.

Stefano decidiu experimentar. Durante algumas noites, andou a escrevinhar e compôs uma música a que chamou «Women Today Take Care of Business». É o que ele pensa sobre elas. As mulheres são as principais responsáveis pelo progresso do país, trabalham dentro e fora de casa, a cuidar das crianças, a vender no mercado ou a gerir pequenos negócios.

E os homens? Esses, são preguiçosos – diz o rapaz na sua canção –, passam o tempo a dormir debaixo das árvores ou a jogar bawo, um jogo de tabuleiro muito popular no Malawi.

E, por falar em mulheres, onde é que elas andam? – Pergunta-me Ian, um dia –. Não acredito que só os homens têm talento…

Ian e Marilena decidem espreitar a ala feminina. São 35 mulheres que ali estão detidas. Não têm banda ou instrumentos, exceto uns baldes rotos que usam como tambores para dar ritmo aos coros e danças tradicionais que fazem no pátio. Nenhuma delas canta. Pelo menos é o que dizem, mas Ian e Marilena não vão na conversa.

_ Nada, nadinha?! – Provoca a italiana.

Ninguém responde, mas o casal insiste.

_ Gostávamos muito de vos ouvir. Quem sabe, até gravar algumas canções.

Silêncio. Outra vez.

Ian e Marilena ainda fazem mais algumas tentativas, mas ao perceber a resistência delas, decidem deixá-las em paz.

Estão quase a sair do pátio quando Gladys Zinamo toca no ombro do americano.

_ Eu fiz uma canção – diz ela, escondendo a cara com as mãos.

O casal dá meia volta e regressa ao pátio para ouvi-la. Parecem duas crianças entusiasmadas. A música dela, “Taking My Life“, conta como um dia os ladrões entraram em casa dela, levaram tudo e depois ela é que foi parar à prisão. Gladys foi condenada em 2010 por ser cúmplice do assalto na loja onde trabalhava [mas acabou libertada em 2013 por não se ter provado o crime].

Assim que ela acabou a canção, apareceu outra mulher também com vontade de cantar. E logo a seguir outra e depois mais outra. Gladys quebrou a barreira e Ian e Marilena estiveram horas a ouvir canções como «I Kill No More» e «Goodbye All My Friends».

Durante 10 dias, o americano não faz outra coisa senão gravar. Junta mais de seis horas de cantigas com cerca de 60 músicos. Assim que começa a ouvir o resultado do seu trabalho, percebe que tem ali material suficiente para lançar um disco. Selecciona 19 canções e uma área coral tradicional interpretadas em línguas tribais (na maior parte em chichewa).

Começa então a grande viagem destas 20 músicas compostas por 14 prisioneiros e dois guardas (eu sou um deles ☺). De Malawi seguem para França, onde são misturadas por David Odlum, um irlandês que é dono do estúdio Black Box. E depois vão para São Francisco, nos Estados Unidos, para serem gravadas pela discográfica Six Degrees Records.

Demora pouco menos de um ano e meio até o álbum ficar pronto. As gravações de Ian na prisão terminam em agosto de 2013 e, em finais de janeiro de 2015, surge o álbum «I Have No Everything Here». Ian regressa à prisão de Zomba para distribuir o álbum pelos guardas e prisioneiros. É um dia de festa e todos julgamos que este é o último capítulo de uma maravilhosa aventura.

Que engano tão grande! A aventura está só no princípio…

Em dezembro, as nossas músicas aparecem numa lista como um dos melhores álbuns de 2016. Ainda hoje estou para saber como é que em Los Angeles, na Califórnia, um júri descobriu quem somos nós. A notícia de que o nosso álbum está nomeado para um Grammy na categoria de Músicas do Mundo demora ainda umas semanas a chegar a Zomba. Mas, quando chega, é a LOU-CU-RA!

Jornalistas de todos os cantos chegam a Zomba e os prisioneiros aparecem nos jornais do mundo inteiro, do Japão à Finlândia, da Índia ao Chile, do Canadá à África do Sul, da Austrália à China e, claro, também na imprensa de Portugal.

Um prémio melhor que o Grammy

prisioneiros de Zomba
Six Degrees Records

Os reclusos achavam que não serviam para nada, mas descobriram que sabem cantar, compor canções e tocar instrumentos. 

Durante meses, foi um rodopio de fotografias, reportagens, entrevistas, filmagens e, no final, acabámos por não ganhar. É verdade que tínhamos uma esperança pequenina, mas sabíamos que era difícil. Por isso, nem nos importamos muito que o prémio fosse para uma cantora do Benin, Angélique Kidjo, uma lenda viva da música africana. A nossa recompensa foi muito melhor. Quem diria que os prisioneiros de Zomba seriam os primeiros artistas do Malawi a serem nomeados para os Grammy?

E quem diria também que o mundo iria falar de Malawi por causa de nós? Muitos dos prisioneiros de Zomba, que antes pensavam que nunca teriam perdão pelos seus crimes, acreditam agora que é possível alguém lhes abrir a porta quando saírem daqui. Muitos achavam que não prestavam para nada e agora descobriram que sabem cantar, escrever letras de músicas, compor canções ou tocar um instrumento.

Melhor ainda, esta aventura levou-nos mais longe ainda. Hoje, o nosso grupo chama-se Zomba Prison Project e em setembro de 2016 lançámos o segundo álbum – «I Will Not Stop Singing». Somos muito mais do que uma banda de música. O dinheiro da venda dos álbuns e dos donativos feitos no site da discográfica Six Degrees Records servem agora para ajudar os reclusos que nunca tiveram um advogado que os representasse.

Aos poucos, vamos conseguindo fazer algumas coisas. Três mulheres foram, entretanto, libertadas e outras três sentenças estão a ser revistas. O objetivo é que os fundos angariados através deste projeto possam ajudar mais e mais prisioneiros de Zomba como Fronce Afiki, a rapariga que compôs uma das canções mais alegres do primeiro álbum – “When They See Me Dance“.

Ela foi libertada em 2014 e regressou à sua aldeia, onde vive com os dois filhos numa casa de tijolos de barro que ela própria construiu. Fronce continua a cantar e a compor. Na canção mais recente, diz às raparigas que um marido não é tudo o que se pode esperar desta vida. Cada uma delas deve estudar, descobrir o seu talento, tocar um instrumento, aprender a tecer, um ofício qualquer, desde que seja o sonho delas.

A canção tem sido um sucesso na aldeia. As crianças vão ter com ela depois do jantar ou quando ela está a moer milho à porta de casa. Fronce canta e elas cantam também.

Vídeo

«Please Don’t Kill my Child», do álbum «I Have No Everything Here» (Thomas Binamo)

🦜Descobre também a história fantástica de Raoni em: Um guardião da Floresta nunca dorme.